Os carolas vão se incomodar. Os recalcados vão gritar de horror e talvez fujam correndo do cinema no meio da sessão. Alguns Estados vão mobilizar aparatos de censura para impedir a distribuição do filme (como fez a Rússia ao bani-lo por decreto de seu Ministério da Cultura). Mas as blasfêmias de Benedetta (2021, 128 min) têm razão de ser: debatendo a repressão sexual, a histeria, os processos inquisitoriais, as instituições religiosas de enclausuramento, as estruturas de poder no seio da Cristandade e o caos social suscitado por uma peste, o filme de Verhoeven pulsa e vibra com a coragem de polemizar e mobilizar.
O cineasta holandês, responsável por Instinto Selvagem e Robocop, está de volta com uma drama histórico picante, violento e provocativo: em seu retrato da freira lésbica italiana Benedetta Carlini (1591-1661), Verhoeven exercita sua já notória capacidade de nos impactar com enredos repletos de sexo e sangue, na orgia da entremescla entre Eros e Tânatos. Baseado em fatos reais, o filme adapta eventos narrados no livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy, da historiadora Judith C. Brown (Oxford, 1986).
Alguns podem considerar que causar polêmica é um ato apelativo, mas muitas vezes há artistas que, pouco interessados apenas nos aplausos das platéias, utilizam suas obras para suscitar o debate público através de uma polêmica que eu chamaria de produtiva. Nietzsche, no Anticristo, foi o provocador de um debate importante acerca do impacto cultural da hegemonia do cristianismo, confrontando dogmas e seitas através de sua polêmica apologia de uma ética trágico-dionisíaca. Verhoeven também faz de suas capetices nesta que é uma das obras mais expressivas de sua filmografia.
Quando uma estátua da Virgem Maria é transformada num dildo de madeira, e duas freiras-amantes se regozijam com o auxílio deste pau artificial, fica claro que o cineasta holandês faz parte de uma escola de cinema que inclui Lars Von Trier, Abdel Kechiche ou Pier Paolo Pasolini, artistas que não se acovardam diante da perspectiva de serem odiados pelos fundamentalistas, defenestrados pelos ortodoxos e pregados na cruz do opróbio pelos fanáticos.
Por um lado, o filme é uma reconstrução histórica impressionante e que evoca A Religiosa de Denis Diderot, iniciando pela internação que o patriarca Carlini realiza de sua filha Benedetta em um convento da cidade italiana de Pescia. Na obra-prima escrita pelo iluminista francês, já esmiuçada aqui no site d’A Casa de Vidro, o convento é descrito como uma máquina de moer mulheres.
O pai não podia suspeitar do que estava por vir: sua filhota, ali internada para tornar-se “noiva de Cristo” e permanecer distanciada dos pecados da carne, acaba em um intenso envolvimento erótico com a irmã Bartolemea.
Em um ensaio instigante de “Um Apartamento em Urano”, Preciado explora as ardentes polêmicas suscitadas pelos filmes “Ninfomaníaca” de Lars Von Trier e “Azul é a cor mais quente” de Abdellatif Kechiche. Refletindo sobre as relações entre sexualidade e cinema, avança uma tese bem interessante: longe de apenas retratar ou representar a sexualidade humana (o que seria afirmar que o cinema apenas reflete ou traduz as práticas e fantasias sexuais), os filmes também podem produzim paradigmas, imor tabus (ou, mais raramente, quebrá-los) e sustentar ideais aos quais os espectadores são convidados a se conformar. Amparando-se na obra da italiana Teresa de Lauretis, afirma:
“Na modernidade, a fotografia e o cinema funcionam como autênticas tecnologias do sexo e da sexualidade: produzem as diferenças sexuais e de sexualidade que pretendem representar. O cinema não representa uma sexualidade preexistente, mas é (junto com o discurso médico, jurídico, literário etc.) um dos dispositivos que constroem o marco epistemológico e que traçam os limites dentro dos quais a sexualidade aparece como visível.” (PRECIADO, 2019, Zahar, p. 103)
Uma das intenções de Verhoeven é tornar visível uma sexualidade queer no interior do ambiente claustrofóbico dos conventos. Sem dúvida, será de interesse acompanhar o surgimento de uma fortuna crítica sobre a obra, que tenderá a gerar reações muito interessantes no âmbito dos movimentos LGBTQIA+ (no Brasil, a estréia do filme se deu no Festival Mix Brasil). O podcast History Is Gay chamou fenômenos assim, que envolvem relações homoeróticas entre pessoas internadas em claustros religiosos, de cloistered queers, afirmando “there are lots of monks and nuns with a strong desire for ‘special friendship’ with each other.”
O filme é também problematizador das masculinidades tóxicas e dos abusos de poder. A parceira sexual de Benedetta faz sua entrada intempestiva no convento ao fugir de seu pai abusador que, após a morte de sua mãe, tomou a própria filha como esposa e pratica uma espécie de estupro incestuoso reiterado. A procura de um amor lésbico, no caso desta mulher traumatizada pelos abusos sexuais do pai e também dos irmãos, revela uma tentativa de fugir do enclosure de machos brutais que a enxergavam como serviçal sexual.
Em outro momento do filme, quando as transas tórridas das duas freiras lésbicas são reveladas a partir da denúncia da madre Felicitá (Charlotte Rampling, excelente no papel), vemos também as autoridades da Igreja agirem com base nos preceitos do patriarcado tóxico. Como era de praxe nos processos da Inquisição, a mulher pecaminosa é despida à força, amarrada por seus 4 membros e torturada genitalmente pelo avesso do dildo. Se o dildo é um instrumento do prazer, um falo artificial que está ao serviço do prazer da lésbica, o instrumento de tortura com o qual a vagina é penetrada naquela situação encarna a violência repressora de uma masculinidade que “se diz ungida de água benta” (Marina Iris), mas consegui produzir em suas vítimas apenas os sintomas mórbidos de uma histeria alucinatória.
Benedetta, em seus pesadelos, visões e fantasias talvez esteja encenando em sua mente um Jesus que lhe meteram a fórceps no espírito, um “salvador” que protege de cobras peçonhentas que representam os prazeres carnais. Jesus como ícone da repressão sexual que, em sua travessia homoafetiva, Benedetta subversivamente passa a recusar. Em uma cena-chave, o crucificado solicita dela que remova tudo que os separa e, neste pequeno poema gráfico que sua imaginação pinta, Benedetta “castra” Jesus, afeminando o profeta. Sem pênis, o crucificado fica assemelhado a uma mulher trans em transição. A imaginação de Benedetta, pouco conformada aos dogmas do cristianismo, e sua libido exaltada pelo corpo de Bartolomea, criam a figura que, no ápice do filme, chega bem perto de ser queimada viva na fogueira.
A religião instituída sempre foi e continua sendo uma monstruosa máquina ideológica destinada a produzir conformidade àquilo que as autoridades religiosas desejam, e entre os dogmas está a redução da sexualidade humana à reprodução da espécie (sex is for making babies). Neste sentido, a dissidência sexual, a subversão de gênero, todas as formas de amar e trepar que rompem com o paradigma do matrimônio heterossexual reprodutivo acabam sendo lançados no domínio dos párias.
As lésbicas, os gays, os sodomitas, a eles é prometido o inferno no além-túmulo e a tortura na terra. Os normais, fiéis defensores de dogmas inflexíveis, podem ser extremamente cruéis e perversos com aqueles que se mostram desviantes das normas e estranhos aos caminhos comuns da carne “pura”. Verhoeven sempre soube emprestar uma certa beleza visceral e charme sexy àqueles que ousam explorar mais livremente uma sexualidade secular, liberta das correntes com que a fé pretende enjaular nossos corpos. Em Benedetta, mostra-se um cineasta que amadureceu bem, envelhecendo sem encarolar, e cada vez mais aplicando a seu cinema um procedimento genealógico-histórico que o aproxima de grandes artistas como Nietzsche e Diderot, como argumentei parágrafos antes.
O filme também é repleto de fenômenos de auto-imolação – Felicitá, já empesteada, anda rumo às chamas que haviam sido preparadas para Benedetta, pouco tempo depois do suicídio de sua filha. Em outros pontos do filme, as auto-flagelações abundamm como que para sublinhar o sombrio de uma ideologia que perseguia as delícias da carne, acusando-as de pecados, e disseminava a culpa e o pesadume. Neste sentido o filme chega a ser pedagógico ao ensinar sobre os vínculos entre a repressão da sexualidade e a produção de posturas e práticas psicopatológicas de auto-mutilação e auto-flagelamento.
Poderíamos até invocar as teses de Wilhelm Reich sobre a função do orgasmo para sugerir que o convento-claustro é uma máquina de produzir neurose através da repressão sexual, e que Benedetta encarna um dificultoso processo de terapia-pela-desrepressão, em que sua libido vai quebrando correntes através de práticas queer e homoafetivas que o cistema teológico-político só pode enxergar com horror e perseguir com brutalidade.
Em Benedetta, Verhoeven polemiza produtivamente sobre os vínculos entre religiões instituídas e produção em massa de neuroses causadas pelo excesso de repressão, tudo em meio a um retrato histórico que impressiona pela reconstituição de um passado pestífero que, por incrível que pareça, revela similaridades com nosso século 21 onde ainda grassam as ervas daninhas da extrema-direita mancomunada com o fanatismo religioso (como mostra a aliança bolsofascista-neopentecostal no Brasil). Em nome de Deus, os homens seguem cometendo os piores horrores e massacrando a salutar diversidade de expressões do amor e da sexualidade que se encarna em todas as práxis queer.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 10/03/22
Refinery 29 – Culled Culture – Cinema Omnivore –
https://www.youtube.com/watch?v=jScq6v-qAY0
Publicado em: 10/03/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia