Esse belíssimo filme começa cômico quando o pastor de ovelhas Pádraic (Colin Farrell) bate à janela de Colm (Breendan Gleeson) para convidá-lo a visitar o pub do povoado. Evento banal demais para dar em qualquer dor de cabeça, certo?
Errado. Surdo às investidas, o velho companheiro fita o vazio, mas não diz palavra. Surpreso, Pádraic narra o fato à irmã, Shioban, astuta o suficiente para sugerir que Colm já não apreciava o irmão.
Diagnóstico preciso: Colm repele duramente outras investidas de Pádraic: “Você é chato. Você passou horas falando do recheio da merda de Jenny”. Começa para o pastor uma espécie de crise de identidade, de recorte adolescente, mas força decuplicada pelo peso da meia-idade, quando o lume do nosso caminho se estreita demais para acreditarmos que dias melhores virão…
Colm complementa sua avaliação dizendo que não quer mais perder tempo com papos sem sentido. Ele agora vai compor uma obra para violino. Isso porque fica a memória de Mozart, mas não de gente “gentil”.
Em sua busca de sentido (e emenda) para essa relação partida, o melhor adjetivo que Pádraic recebe frente ao espelho-Colm é um “você é gentil”. Colm faz pouco dele. Ninguém se lembra dos caras bacanas. Colm o humilha além da imaginação, e até dizem a Pádraic que Colm é mais instruído, diferente demais dele, eram como água e óleo. Um Édipo Rei do aborrecimento, Pádraic busca por toda parte o chato da aldeia como bode expiatório, mas cai fulminado pelo próprio espelho.
Há quem diga que só compreendemos um vínculo após sua ruptura, e o conduzimos em nossa vida cegos ao emaranhado de expectativas que se movem entre nossas palavras. Mas sim, esperamos dos amigos companhia, compreensão e cooperação, e assim prosseguimos a emprestar os ouvidos deles para nossos queixumes. Não nos valeria notar os sinais de desagrado, prevenindo danos maiores? Falamos demais e ouvimos de menos? Buscamos o amigo além da conta? Ou aquém? A firmeza de Colm em rejeitar Pádraic sustenta-se na negação de todo o homem, todinho, sem que Nada reste, e isso machuca este pobre solteirão, agora tratado como um bacilo da peste. Quem nunca amargou a frieza de um amigo? A unilateralidade do rompimento machuca. As conversas no pub eram a muralha entre Pádraic e o Nada, e ele a tentará reconstruir com a tenacidade dos condenados à morte.
Há quem diga, também, que somos humanos porque novelos de vivências se emaranham em nós, numa combinação na qual o novo germina bruto, inesperado. Wallon elaborou o conceito de prestância observando como as crianças organizam sua imagem corporal, seu repertório motor inicial em função do amor dos adultos. Como elas, Pádraic também faz um novo número cênico ao confrontar Colm de cara cheia e ânimo nada gentil. Porém Colm, imune aos truques amorosos do inoportuno infante, reitera a ameaça de se livrar de um dos seus dedos a cada vez que o ex amigo o importunar. Ao invés de companhia, aversão. Um desespero com a mesmice da vida prolifera na alma de Colm – como o bacilo de uma tristeza complexa demais para se dizer em público. Mas ele a confessa ao padre, aplicando um bordado trágico na camisa interior deste cinzento drama tchekhoviano.
Em que momento transbordou o copo de Colm com a chatice daquelas conversas fiadas, é fato indeterminado – assim como a força da aversão que faz este amigo cortar os dedos para manter a distância o chato da aldeia. Melhor livrar-se de um mal do que buscar algum bem de valor incerto? Colm continua a ser, mesmo na tragédia, um homem de vida cinza. Talvez, uma mistura de discípulo de Kierkegaard com personagens de Tchekov (estes, tristes rãs que demoram a tomar consciência do charco) como nos sugerem as profetisas banshees da acidentada costa irlandesa, prontas a lembrar aos seus compatriotas de que, chata ou não, a vida tem fim.
Publicado em: 05/07/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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