“Pode apostar
A rebeldia do aluno é santa
Não senta na apatia da injustiça
Agita e inferniza e a rua avança
Escola não tem medo de polícia
Pode apostar
Balbúrdia de aluno é o que educa
Ensina o governante que caduca
Retroceder não é uma opção
Respeito é pra quem dá educação.”
FLAIRA FERRO
Em 15 de Maio de 2019, um tsunami de gente inundou as ruas do Brasil: estima-se que mais de um milhão de manifestantes saíram as ruas em mais de 200 municípios (dados do CNTE divulgados por Brasil de Fato). Os protestos massivos, protagonizados sobretudo pelo movimento estudantil e pelos trabalhadores da educação pública, ficaram conhecidos como “Tsunamis da Educação”. “A onda gigante de defensores da educação pública, gratuita, democrática e de qualidade é uma força da natureza que não se pode conter”, escreveu José de Ribamar Virgolino Barroso.
Em repúdio ao congelamento de verbas e cortes orçamentários que o ministro bolsonarista Weintraub ameaçava realizar, acusando a rede federal de educação de estar repleta de “balbúrdia”, perversão sexual e doutrinação marxista, multidões de cidadãos reivindicaram investimento digno em educação. Bradavam com vozes e cartazes que queriam “mais livros e menos armas”, “nenhum direito a menos”. Celebrando o legado de Paulo Freire, a galera colocava o bloco na rua, apostando na tese de que “o conhecimento destrói mitos”.
Tamanha foi a potência do 15M que uma segunda manifestação nacional foi convocada por entidades como a UNE, a UBES e a ANPG, além de centrais sindicatis, para 15 dias depois, no dia 30 de Maio de 2019, dando propulsão às mais significativas jornadas de lutas contra o desgoverno de Bolsonaro em seu primeiro ano de presidência. Outros tsunamis também ocorreram em Junho, Julho e Agosto pelo país afora, erguendo trincheiras de resistência contra o avanço da tesoura precarizadora e privatizadora empunhada pelo regime fascista-neoliberal nascido do golpe de 2016 e da fraude eleitoral de 2018.
Estas históricas mobilizações cívicas são o tema principal do filme longa-metragem Hoje A Aula É Na Rua – Um Prelúdio ao “Tsunami da Balbúrdia”, realizado por A Casa de Vidro com recursos da Lei Aldir Blanc/Goiânia e já disponível na Internet:
Dirigido pelo jornalista, filósofo e professor Eduardo Carli de Moraes, Hoje A Aula É Na Rua retrata os levantes nas ruas de Goiânia e de Brasília no período entre Maio e Agosto de 2019, incluindo os acontecimentos no 57º Congresso da UNE. Tematizando as práticas de midiativismo que se tornaram cada vez mais presentes no cenário comunicacional do país sobretudo a partir das Jornadas de Junho de 2013, com a emergência de iniciativas como a Mídia Ninja e posteriormente dos Jornalistas Livres, o filme discute também a importância dos midiativistas para a historiografia dos movimentos sociais.
Esta obra audiovisual retrata várias performances artístico-culturais nas ruas, a exemplo das atividades realizadas por estudantes e professores da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, que propuseram uma “Tropa de Choque” alternativa, com estudantes portando livros-escudos e lápis-lanças, ou a grande “centopéia humana” encarnada por alunos da Faculdade de Artes Visuais da mesma universidade. Polifônico e policromático, o filme serve como palco para a manifestação de vozes plurais, contendo em entrevistas e falas públicas de figuras como:
* Franck Tavares (Professor de Sociologia da UFG)
* Angela Cristina Ferreira (Integrante da Comissão de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno)
* Dalmir Rogério Pereira (Professor de Artes na EMAC/UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Ciências Sociais / UFG)
* Renato Costa (Ativista e Estudante de Jornalismo / UFG)
* Kleuber Garcez (Compositor, cantor, violonista)
* Aymê Virgínia (Cientista social habilitada em políticas públicas pela UFG)
* Beatriz Durães (Estudante universitária e integrante do Correnteza)
* Iago Montalvão (Eleito presidente da UNE em 2019)
* Guilherme Boulos (PSOL/MTST)
* Gleisi Hoffmann (Presidenta do PT)
* Leci Brandão (Artista e Política do PC do B)
Dentre outros.
A obra serve também como um “aperitivo” para outro filme, o TSUNAMI DA BALBÚRDIA (a ser lançado em 2022) [Instagram], híbrido de ficção e documentário que busca conta a história de um casal de manifestantes que se engajou nos Tsunamis. Estrelado por Nix e Jhey, com Julia Lee Aguiar na direção de fotografia, Lucas Wagner Nunes na assistência de direção, Fabi Vianna na direção de arte, Renato Costa na produção, além de roteiro e direção de Eduardo Carli, o projeto abriu um financiamento colaborativo para levantamento de recursos em prol da continuidade de seus trabalhos.
Dentre os motivos que incitaram a rebeldia dos balburdianos durante as jornadas dos Tsunamis da Educação, certamente estão as mentiras propagadas pela engrenagem de desinformação sob o comando do bolsonarismo: acusadas de serem antros anárquicos de promoção da “balbúrdia”, as instituições federais de ensino “foram justamente as que mais tiraram notas máximas (4 e 5) no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2019. Mais de 70% dos cursos oferecidos por universidades e institutos federais obtiveram conceito alto. Os resultados foram divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).” (Fonte: Vermelho)
O programa “Future-se” também esteve no alvo dos manifestantes e os motivos do descontentamento com tal proposta foram bem esclarecidos no artigo de Paulo Kliass em Outras Palavras: “O programa do Ministério da Educação se mantém em absoluta sintonia com as demais medidas de desmonte e destruição de políticas públicas que vem sendo praticadas desde o impedimento de Dilma Rousseff”, afirma Kliass. “Os tecnocratas encarregados de sua elaboração e implementação são da mesma fornada dos que vem implodindo o Estado brasileiro a partir de seu interior.”
Denunciando uma “tecnocracia ultraliberal a serviço do capital”, este pesquisador aponta que o “Future-se” revela “o mesmo comportamento dos que passam a tesoura horizontal nas verbas da saúde, apenas para cumprir metas burocráticas estabelecidas. “Agora uma parte dessa tecnocracia se colocou como missão destruir a estrutura universitária pública, que vem sendo construída há décadas com muito projeto, esforço e recursos federais”, escreve Kliass. “A estratégia malandra sempre aparece em momento de crise. Como as administrações das universidades e institutos federais estão com seus orçamentos à míngua, os problemas de gestão são mesmo enormes. E então, magicamente, eis que surge a proposta redentora. Tchan, tchan, tchan! As universidades agora estarão “livres” para passar o pires junto ao grande capital privado. Bancos, grandes corporações e grupos multinacionais poderão oferecer seus recursos diretamente para o custeio das instituições de ensino superior. Uma loucura!
Mas atenção! Os mesmos tecnocratas que estão patrocinando a venda das empresas estatais federais nos garantem que no caso do ‘Future-se’ não se trata de privatização. Ufa! – suspiramos todos aliviados com tamanho anúncio tranquilizador. A partir de agora, o grande capital privado passou a ser imbuído do dom da filantropia e vai servir de forma neutra e isenta aos interesses maiores da grande maioria da população brasileira. Eles passarão a se comportar exatamente como deve ser feito pelo Estado: vão destinar recursos a fundo perdido para educação, ciência, tecnologia e inovação sem nenhuma exigência de contrapartida desse gesto benemérito e generoso. A comunidade, emocionada, agradece e chora…” (KLIASS, 2019)
Desde então, o fenômeno de 2019 recebeu as atenções de pesquisadores na universidade e fora dela. No livro O pânico como política: o Brasil no imaginário do lulismo em crise, destaca-se que “a juventude protagonizou o Tsunami da Educação e arrastou as universidades e setores da classe trabalhadora para as ruas. As mulheres, que foram a vanguarda do movimento Ele Não, estão ativas, enfrentando a misoginia bolsonarista.”
Em artigo para a revista Docência do ensino superior e cidadania – o papel da sociedade na construção de direitos sociais (UFMG, 2019), a pesquisadora Fabiana de Oliveira Bernardo também analisou o fenômeno. “Nesse contexto, as manifestações populares são um alento. Elas indicam a importância que a educação em nível superior possui perante a população – que tem ido às ruas para defendê-la e lutar contra retrocessos. Vale frisar que a educação superior brasileira não é um nível de escolaridade obrigatório e isso, ao fim e ao cabo, tira do Estado a responsabilidade por sua oferta indistinta mas, considerando-se que essas instituições de ensino superior são públicas, e portanto, para todos, faz-se necessário que sejam mantidas políticas que ofereçam aos estudantes condições de acesso, aprendizagem e permanência para todos os grupos sociais que ali se encontrarem.” (Acessar PDF do artigo completo)
Já o livro Crise e pandemia: quando a exceção é a regra geral (organizado por Letícia Batista Silva e André Vianna
Dantas. – Rio de Janeiro: EPSJV, 2020. 245 p.) também analisa o fenômeno dos Tsunamis da Educação, concluindo que “para o novo governo, o público deveria ser reduzido, restrito e de má qualidade, reafirmando aquilo que passou a ser sua tônica: a construção de um projeto que aprofundasse as desigualdades de classe, raça e gênero no país.” (Artigo “Escola Pública Em Tempos de Pandemia”, de Ingrid D’avilla Freire Pereira).
Publicado em: 01/03/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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