“Meu Nome É Bagdá” (Brasil, 2020), dirigido por Caru Alves de Souza, é um filme pulsante, repleto de corpos políticos em aliança contra as opressões do dia-a-dia.
Protagonizado pela jovem atriz Grace Orsato, o filme faturou o Prêmio do Júri para melhor longa metragem da mostra Geração do Festival de Berlim.
A partir de uma premissa aparentemente simples, que pretende fazer a crônica do cotidiano das minas skatistas em São Paulo, a obra avança para a discussão de temas bastante pertinentes – a macheza tóxica, a violência policial, a cultura dos estupro e a sororidade na prática.
As Olimpíadas de Tóquio, com a consagração da medalhista-de-prata Rayssa Leal no skate (ela também sagrou-se a vencedora do prêmio do espírito olímpico), torna o filme ainda mais afinado com o debate contemporâneo suscitado por fenômenos como Rayssa. A “fadinha” que brilhou em solo japonês, faturando uma medalha olímpica aos 13 anos idade, pôs no centro do debate esportivo a presença feminina em espaços costumeiramente restritos aos machos. Este é o âmago de um filme repleto de camadas de sentido.
Em seu segundo longa-metragem (sua estréia havia sido com De Menor), a diretora Caru – filha da cineasta brasileira Tata Amaral – criou não apenas um filme gostoso de assistir, de montagem sincopada, repleto de humor e “pimenta”. Criou também um autêntico manifesto que ecoa pautas como “lugar de mulher é onde ela é quiser” e “meu corpo, minhas regras”.
Destaco duas cenas que me impactaram muito. A primeira mostra Bagdá tomando um baculejo dos policiais militares que decidiram perseguir a trupe de skatistas que ela integra. Sendo a única mina do rolê, Bagdá sofre com violências policiais que se manifestam de maneira física mas também simbólica. Ela é acusada de parecer um moleque, de violar a sagrada distinção macho-fêmea sobre a qual constrói-se o conservadorismo de gênero.
Deste modo, o filme desvela uma faceta pouco comentada da violência policial no Brasil – o quanto esta é movida não apenas por racismo mas também por homofobia. Em outras palavras, um sociólogo que quisesse investigar a presença da macheza tóxica em nossa sociedade poderia encontrar na fração da população constituída por “machos fardados” uma fonte de informações relevantes sobre a ideologia machista e suas traduções cotidianas.
Bagdá só está curtindo o rolê com seus amigos, fazendo rap, fumando um beck e andando de skate, mas aos olhos do policial, rottweiller do status quo, ela é uma delinquente das normas de gênero e merece ser estapeada e machucada até que aprenda o seu lugar-de-gênero – deve-se espancá-la e agredi-la para que ela se “feminilize”.
O PM fala pro outro: “E aí, Magalhães, isso aí é homem ou mulher?” Nota-se aqui a animalização-do-outro, a jovem de menor tratada como um “isso”, uma aberração que não se consegue enquadrar nos esquemas binários da heteronormatividade compulsória. Bagdá, figura andrógena, mina-moleque, bagunça com os dogmas dos PMs e desperta neles a fobia-da-diferença. O PM continua, investindo violentamente, com voz grossa e truculenta, contra Bagdá: “Se você fosse minha filha, eu ia enfiar a mão na tua cara até você virar mulher de verdade.”
Esta sequência é excelente para pensar o imbricamento entre a ideologia da extrema-direita brasileira (o bolsonarismo) e suas “bases” no aparato repressor do Estado na figura destas pessoas que tiveram seus cérebros lavados com a doutrina do “ter filho gay é falta de porrada”, como falou na maior sem-vergonhice o próprio Jair Bolsonaro, contumaz praticante de crimes de homofobia e de discurso de ódio contra a população LGBTQ+.
O ponto de mutação do filme é quando Bagdá descobre as outras minas do rolê de skate e descobre a sororidade não como conceito téorico, como norte ético, mas na prática dos corpos que se defendem fazendo alianças. Na sequência da festa, quando o boy folgado tenta roubar-lhe um beijo e depois tenta forçá-la a continuar nos amassos eróticos, mesmo que ela tenha de maneira reiterada manifestado seu “não”, o filme aborda o quanto a cultura do estupro está imbricada com estas ideologias que vicejam entre bolsonaristas, militares, ruralistas e evangélicos – o substrato da extrema-direita produtora do genocídio de 2020-2021.
A atitude de Bagdá diante de todo tipo de macho agressor com o qual ela depara em seu cotidiano é de confronto e não de conformismo. Ela junta as minas para pôr o boy aprendiz-de-estuprador em maus lençóis inclusive com os brothers.
Na cena em que Bagdá e sua trupe de minas skatistas confronta o agressor da festa, ela encena a agressão, mostra a todes e alastra a informação do que foi feito com ela: sua boca tapada pelo macho, seu corpo agarrado à força, sua boca beijada à revelia, seus seios e sua bunda tocados em permissão etc. Trata-se de uma cena onde o teatro invisível de Boal está a serviço de uma sororidade didática que ensina ao macho tóxico uma lição básica, mas que eles parecem ter dificuldade de compreender e traduzir em atitudes cotidianas – não é não.
Destaco ainda o brilhantismo com que o filme constrói o contexto familiar anômalo de Bagdá, que vive num lar sem pai, sem tio, sem macho, criada junto com as duas irmãs pela mãe – interpretada com maestria pela multi-artista brasileira Karina Buhr. A selvática Karina encarna uma mãe excêntrica, que circula por meios queer, levando Bagdá a conviver com o cabeleireiro-bicha e com a mulher-trans.
Isto torna Meu Nome É Bagdá uma nova obra-prima do que poderíamos chamar de Cinema Queer Brasileiro, uma vertente que explora os comportamentos fora-do-padrão, que destoam dos moldes impostos pela sociedade careta, mas positivando o que os fóbicos enxergam negativamente através do prisma do preconceito.
O filme também funciona muito bem como comédia de costumes, desconstruindo a golpes de sarcasmo tanto as revistas de moda destinadas ao público feminino, e que pretendem ensinar o que é ser uma mulher de verdade, quanto os papos machistas que se ouvem nos botecos e nas pistas de skate quando o lugar de fala é daqueles que “pensam com a cabeça de baixo”, além de terem duas bolas que não rolam e um passarinho que não voa.
A construção da personagem principal enquanto andrógina, queer, rebelde aos padrões de gênero, insurgente comportamental em tempo integral, passa por um estratagema que pode parecer meio óbvio: a ausência de autoridade paterna no lar. O pai está ausente da vida de Bagdá e ela também não tem irmãos homens com quem conviver. Acaba sendo criada em um ambiente feminista e queer que a conduz a uma insubmissão alegre, mas que a coloca também em rota de colisão contras as patrulhas da normalidade.
Karina Buhr, que já havia mostrado seus talentos enquanto cantora e compositora que confronta os moldes pré-definidos através de seu ethos selvático, prova ser uma atriz performática de primeira qualidade em Meu Nome É Bagdá, promovendo através de sua atuação divertida e contundente um verdadeiro desmanche do machismo instituído. A filha, neste aspecto, aprendeu sororidade não apenas com a trupe de minas skatistas, mas também com a mãe, acolhedora da diferença, audaz aventureira lúdica.
Para além de todos estes charmes, o filme ainda insere em seu plot, em seu melting pot, uma improvável comédia sci-fi através da caçula da família, fascinada por ETs (os de Marte, mas os que há na Terra também…). É um elogio do imaginário subversivo que Meu Nome É Bagdá acaba realizando em suas cenas mais lúdicas, onde o espectador é abduzido para uma realidade brincalhona, transfigura pela narração surreal, em que a caçula e suas manas e mãe brincam de construir histórias com alienígenas. Boa maneira de exercer os poderes simbólicos necessários para encarar uma sociedade que trata o estranho como alien e que deseja que o metro dogmático do normal possa servir para podar e recalcar tudo aquilo que se recusa a deixar-se medir pela ótica estreita dos conformados a normas rígidas e esclerosadas.
Máquina de subversão em formato de filme, Bagdá descontrói a macheza tóxica com a graça de comportamentos queer que nos conquistam com seus charmes irresistíveis. Saímos do cinema mais bruxas e selváticas do que antes, seja lá qual tenha sido nossa prévia configuração de gênero e seja lá qual tenha sido a história pregressa de nossos preconceitos.
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro
28 de Agosto de 2021
SINOPSE – Bagdá é uma skatista de 17 anos, que vive na Freguesia do Ó, um bairro da periferia da cidade de São Paulo. Bagdá anda de skate com um grupo de meninos skatistas do bairro e passa boa parte de seu tempo com sua família e as amigas de sua mãe. Juntas elas formam um grupo de mulheres pouco convencionais. Porém, Bagdá finalmente encontra um grupo de meninas skatistas, e a sua vida muda completamente.
O fórum dos cinéfilos Making Off disponibilizou em torrent o filme – faça o download. Detalhes do release:
Vídeo Bitrate: 2.236 KbpsÁudio Codec: AAC LCÁudio Bitrate: 48 KHz KbpsResolução: 1998x1080Formato de Tela: OutrosFrame Rate: 24.000 FPSTamanho: 1.548 Gb
Publicado em: 28/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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