“Apertem os cintos, Donald Trump voltou!”, alerta Sidarta Ribeiro em texto recente para a Sumaúma. “Levando o fetiche da mercadoria ao limite mais grotesco, retorna ao poder o vendedor de bugigangas trambiqueiro, dono de cassino falido, cínico astro de TV, notório fraudador de impostos, mentiroso patológico serial, abusador compulsivo de mulheres, golpista impenitente e narcisista laranja.” (1)
A esta notável lista de (des)qualificativos do Agente Laranja à testa do Império Estadunidense, só faltou adicionar a de falso profeta e mobilizador tóxico das piores forças do cristofascismo.
Donald Trump é também a encarnação mais sem-máscara da má fé na geopolítica contemporânea e sintoma de algo gravíssimo: o triunfo eleitoral e a re-eleição de alguém que, enquanto gestor público de criminosa irresponsabilidade, conduziu os EUA durante a pandemia de covid19 ao topo de óbitos globais, com mais de 1 milhão e 200 mil cadáveres produzidos pelo negacionismo da crise sanitária. Os eleitores querem mais desta hecatombe ambulante. E o fazem com muita fé (e pouca razão).
Produzido pela Heretical Reason (Razão Herege), o filme Bad Faith: Nacionalismo Cristão e a Guerra Profana Contra a Democracia (2024, 88 min), dirigido por Stephen Ujlaki e C. Jones, narrado por Peter Coyote, inicia com o ataque ao Capitólio do 6 de Janeiro de 2021, frisando o quanto aquele riot Trumpista foi impulsionado não apenas por extremismo político fascistóide mas por fanatismo religioso.
Versão Yankee daquilo que o Brasil testemunharia em Brasília com a intentona golpista do 8 de Janeiro de 2023 dos generais bolsominions e seus gados de manobra, naquela ocasião o Capitólio foi violentamente invadido e depredado por um movimento golpista, liderado por nacionalistas cristãos, que não aceitavam a derrota de Trump para Joe Biden e Kamala Harris nas eleições.
Qualquer semelhança do Capitólio invadido com o levante dos idiotas bolsonaristas na Praça dos 3 Poderes, antes mesmo que o mandato Lula 3 completasse 10 dias, não é mera coincidência: é manifestação das afinidades eletivas entre estes dois movimentos cristãos nacionalistas extremistas. O Trumpismo e o Bolsonarismo – e obviamente também o sionismo israelense – nos obrigam a questionar mais a fundo a questão da má fé e os cataclísmicos efeitos que esta causa no mundo.
Evitar o questionamento crítico dos vínculos entre a fé e o fascismo, por reverência excessiva à primeira, não passa de covardia intelectual e falta de fibra ética: a fé merece sim estar no banco dos réus, julgada no debate público, quando faz colapsar a laicidade do Estado e enfia a fórceps em nossas goelas as políticas “pro-life” que criminalizam o aborto até mesmo em casos de estupro e fetos com microencefalia, por exemplo.
O supremacismo, este câncer ideológico medonho, não se manifesta apenas no âmbito das relações étnico-raciais, ou seja, enquanto supremacia branca com sua arrogância de superioridade racial: o ilegítimo intento de predomínio dos caras pálidas sobre as pessoas de cor.
Há também a noção de supremacia religiosa, antiquíssima, que tanto sangue e vísceras já fez correr através da história humana. Esta se manifesta nos EUA na postura de cristãos que acreditam que os fiéis de outras religiões, ou os desprovidos de fé, devem viver submetidos e subalternos diante do poder supremo dos nacionalistas cristãos. Uma expressão significativa disto na ficção seria The Handmaid’s Tale de Margaret Atwood (na literatura e em sua ressonância na teledramaturgia através da série produzida pela Hulu) – é o que argumenta no filme o Steve Schmidt (7’43). A Gilead explorada pela obra-prima da ficção especulativa publicada pela autora canadense em 1984 é uma excelente síntese de uma ditadura cristofascista e patriarcal que muitas forças hoje em dia buscam transpor da literatura para o real.
Outro exemplo proveniente das séries: no começo de Severance, a chefona da Lumon, interpretada por Patricia Arquette, explica um pensamento que recebeu de sua mãe: “sobre o Inferno, há uma boa e uma má notícia; a boa é que o Inferno não passa de uma mórbida fantasia humana; a má é que os humanos quase sempre dão jeito de fazer acontecer o que imaginam.” O Inferno pode até não existir, mas muitos cristãos fanáticos estão determinados a construi-lo na Terra. Como têm feito com profusão de diabruras a aliança judaico-cristã evangélico-sionista que dá sustentação à violenta colonização da Palestina e ao tenebroso genocídio em Gaza.
Donald Trump n’A Casa Branca – eis uma espécie de equivalente de Homer Simpson trabalhando na usina nuclear… – torna o Inferno real e concreto mais palpável. O que convêm frisar é que Trump só se alçou a esse poderio pois é também um charlatão religioso que conquistou muitos asseclas. É gente cheia de fé que está votando na “profecia Trump”; é gente dogmática em seu supremacismo que compara o depravado bilionário com o King Cyrus. O filme Bad Faith nos ajuda a compreender que Donald Trump, Bolsonaro e Netanyahu são sim fenômenos teológico-políticos, inexplicáveis sem a má fé na equação.
Vejam o caso de Israel, o “Estado Judeu”, que aqui vou rebatizar hereticamente de IsraHell, o país produtor de inferno-na-terra para os palestinos. IsraHell se arroga o direito de negar todos os direitos humanos elementares e todos os itens mais básicos do direito internacional por causa de seu supremacismo religioso. Sua crença mórbida e inabalável na superioridade do judaísmo sobre esta fé inferior que é o islamismo. A subjugação palestina é também fruto sórdido do fanatismo religioso sionista, o equivalente na Palestina histórica ao que tornou-se o Nacionalismo Cristão nos Estados Unidos da AmériKKKa.
Em sua recente entrevista ao lado do genocida Netanyahu, o Agente Laranja defendeu a limpeza étnica em Gaza, com a expulsão de todos os palestinos para países vizinhos e um takeover Yankee para reconstruir aquele território como uma espécie de resort de luxo no Mediterrâneo. Na ocasião, Trump chamou Gaza de um “hellhole”, ou buraco infernal, esquecendo-se de mencionar que foi sobretudo a unholy alliance entre Israel e EUA que deu causa a este Inferno na Terra em que Gaza foi transformada. As 15.000 crianças assassinadas em 15 meses o foram por homens que rezam à noite para um deus de fantasia que não deixa de inspirar atos sórdidos ainda que seja inexistente. Os delírios megalomaníacos de fanáticos religiosos existem, ainda que as supostas divindades com quem conversam não passem de espectros imaginários.
Trump 2.0 é também ocasião mais que oportuna para refletirmos sobre The Second Coming of The KKK. Este livro de Linda Gordon, entrevistada pelo filme, afirma que a Klan nos 1920s chegou a ter 8 milhões de membros, sendo que a imensa maioria eram cristãos evangélicos brancos. A própria entidade – celebrada no cinema de Griffiths – afirmava que tinha 40.000 ministers (pastores) entre seus membros. O jornal da notória entidade racista e segregacionista chamava-se The Good Citizen, ou O Cidadão de Bem.
Tem quem se diga revolucionário mas que tem medinho de fazer críticas à religião. Mas que catzo de revolucionário é este que respeita profundamente a fé dos crápulas que praticam genocídios e instituem regimes de apartheid? Vocês querem mesmo que eu me convença que a fé de Netanyahu, a fé de Hitler, a fé dos Klu Klux Klaners merece respeito e ser tratada com luvas de pelica?
Ora, as eleições e suas estatísticas de votos não nos deixam mentir: o campo cristão evangélico está cada vez mais propenso a favorecer Trumps e Bolsonaros. Achar que é possível conservar a “fé” como fenômeno puro, bom, inocente, pura jóia, é auto-cegueira das brabas, covardia diante da tarefa crítica de abordar a fé em sua ambiguidade, o que significa também em seu potencial para ser má e não apenas boa.
Um filme como “Auto da Compadecida 2”, por exemplo, demonstra o dogma da fé-na-fé que estou aqui atacando através da personagem interpretada por Thaís Araújo: a pregação da Compadecida vai no sentido de pintar a fé como boa, como algo que faz bem ao povo nutrir para encarar com mais confiança as vidas muitas vezes áridas e famintas do sertão nordestino; seria um melhor filme se explorasse com mais sarcasmo e ímpeto crítico o outro lado da moeda, a fé malévola, explorada por sacripantas que querem lucrar com a indústria do turismo e o comércio de crucifixos e santinhos.
A má fé é ingrediente essencial à receita da caquistocracia em que ricaços eleitos por ricaços montam equipes lotadas de uma monocultura humana: só os white, male, wealthy. Costumam também ser armamentistas, falocêntricos, crentes na solução armada – ao invés de dialogada – dos conflitos sociais. É um Rambismo tão másculo quanto explosivo – e que leva os cientistas nucleares a adiantarem o Doomsday Clock, numa marota provocação de que este tipo de meme é a cara do pré-Apocalipse:
Má Fé, o filme, parte da intentona golpista ao Capitólio, em seu início, e perto de seu desenlace traz à memória o episódio de terrorismo doméstico em Charlottesville, em que o terrorista amerikkkano matou uma mulher e feriu 19 pessoas com seu carro. Os EUA adoram sair pelo mundo perseguindo terroristas islâmicos quando em seu próprio território tem um problema gravíssimo de terrorismo “white supremacist”.
O assalto ao Capitólio, em Janeiro de 2021, foi precedido pela Jericho March de Dezembro de 2020, e ambos foram capitaneados pelos nacionalistas cristãos que têm fé em Donald Trump como instrumento do Onipotente Deus-Pai para tornar a AmériKKKa grandiosa de novo. Grana graúda dos tele-evangelistas que tem milhões na conta bancária pagaram para que os vândalos fossem a Washington D.C. para a ocasião em que, para evocar o que Bob Dylan cantou, “the vandals took the handles”.
O riot trumpista-cristão no Capitólio – também abordado pelo filme Fight Like Hell – foi feito por cidadãos fanatizados de direita que tiveram seus corações e mentes infiltrados pela ideologia tóxica da religious right. Uma galera que se sente super righteous depredando prédios públicos por ter aderido ao fake.
Em breve, estréia no Brasil o Apocalipse Nos Trópicos, de Petra Costa, o sucessor de Democracia em Vertigem. O filme nos dará ensejo para mais reflexões sobre a presença evangélica no neo-fascismo brasileiro. A má fé dos fãs de JesUstra, dos apóstolos do “armai-vos uns aos outros”, segue perigosamente entre nós, e nada faremos para erguer uma barreira contra o cristofascismo se tivermos um tíbio temor de pôr os pontos de interrogação lá onde merecem estar: na intersecção entre o teológico e o político, a fé e o poder, o cristianismo e o fascismo.
Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 8/2/2025
https://acasadevidro.com/badfaith/
(1) RIBEIRO, Sidarta. Nosso futuro vergonhoso já foi encomendado. URL: https://sumauma.com/nosso-futuro-vergonhoso-ja-foi-encomendado/
(2) Extraído do verbete da Wikipedia: COVID-19 pandemic in the United States. URL: https://en.wikipedia.org/wiki/COVID-19_pandemic_in_the_United_States
(3) Citação do primeiro episódio da primeira temporada de Severance.
Filme baixado no Fórum Making Off – https://makingoff.org/forum/index.php?showtopic=71391&hl=%2Bbad+%2Bfaith
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Publicado em: 08/02/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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