O cineasta canadense James Cameron – nascido em 1954 em uma província de Ontario – é um fenômeno de bilheteria como poucos na história da indústria do entretenimento: Avatar (2009), com rendimentos de quase 3 bilhões de dólares, e Titanic (1997), que faturou 2 bilhões e 200 milhões, estão entre os 3 filmes mais rentáveis de todos os tempos. Agora, ele anuncia seu plano de lançar mais 4 sequências de seu maior sucesso: The Way of The Water (2022), The Seed Bearer (2024), The Tulkun Rider (2025) e The Quest for Eywa (2027). Na iminência desta enxurrada de Avatares, pareceu-me uma boa ideia reconsiderar criticamente o filme que agora nos aparecerá como o primeiro de uma série de 5 arrasa-quarteirões.
O que me surpreendeu no arrasa-quarteirão e papa-dólares Avatar, lá em seu lançamento em 2009 (que em 2022 vive um revival nas salas de cinema), foi a surpresa de perceber nele vibrações “decoloniais”. O filme que à época levou Cameron para além das alturas de sucesso comercial e crítico que tinha conquistado com o épico melodramático e papa-Oscar Titanic, tinha o curioso caráter de denúncia contra uma certa cultura hegemônica no meio social do qual o filme é proveniente. Avatar é uma estranha obra cultural que eclode dentro de uma indústria movida a lucro mas que surpreendentemente mostra-se como um soco no estômago do que Angela Davis chamaria de “o Complexo Industrial Militar”.
Curioso fenômeno: um crowd-pleaser, vendedor de ingressos a rodo, não costuma confrontar o establishment ideologicamente. E Avatar ousa ser claramente um acusação contra a invasão imperial que os seres humanos machos e estadunidenses, fundamentalistas de mercado e fanáticos do extrativismo, realizam no Planeta Pandora. É uma hecatombe ecológica e um etnocídio brutal o que estão em tela. Os seres humanos, no filme, aparecem como ecocidas vomitadores de chamas e balas, perpetradores de genocídio e desmatamento. Eles buscam acalmar suas consciências pesadas pelo fardo do assassinato em massa cometido contra as populações nativas do planeta invadido perguntando: ora, não são apenas árvores, não são apenas índios, que importa massacrá-los?!?
Emblema fílmico do colonialismo, a obra é “didática” ao mostrar a invasão dos humanos como algo visto pelo viés dos Navi (as criaturas de peles azuladas e olhos verdes que povoam Pandora) como uma chocante intervenção alienígena. O desfecho do filme Avatar – atenção pro spolier! – mostra os humanos tomando um pé na bunda e sendo enfiados num foguete de volta pra casa. Os Navi dão um chega-pra-lá no imperialismo. Vazem, canalhas! Os minérios são nossos! A Resistência anti-colonial triunfa (ao menos por enquanto).
A graça do filme começa por aí: os seres que mais se parecem conosco, os espectadores, são os vilões do filme, e nós somos interpelados com um chamado ético para identificar-nos com os Navi. O “povo indígena” invadido e ameaçado, que vê a biodiodiversidade que sustenta sua existência coletiva começar a ser massacrado pelo ecocida invasor, é não apenas descrito com deslumbrância acachapante, mas sua sabedoria ecológica supera em muito a humana.
Os humanos é que são aqui os aliens. Com ganância nos corações e atirando muitas balas por seus rifles, estes trigger-happy humans representam para os Navi a hecatombe na forma de uma força bélica alienígena, vinda de fora do mundo.
Jake Sully, o protagonista do filme (interpretado por Sam Worthington), já de partida é descrito como alguém que foi moído pelo status quo da máquina bélica da Yankeelândia: está numa cadeira de rodas, seu irmão morreu recentemente, e ele vê-se confrontado com toda a prepotência tóxica do general que manda e desmanda nas tropas. Tem hora que Avatar beira a vibe de Full Metal Jacket de Kubrick – as opressões relacionadas com a rigidez da hierarquia militar fazem com que sujeitos subjugados a esta maquinaria busquem rotas de fuga.
Avatar é a rota de fuga de Jake Sully neste épico espacial, nesta odisséia em Pandora. Seu alter-ego, seu avatar, a partir de quem ele pode andar, voltar a pular e a correr com uma agilidade que sua condição de paraplégito impede, o seduz como uma fuga para um mundo melhor. Ele é um militar mutilado, sugado pelos assuntos da guerra por ser um peão nela. Mas… vive nesta guerra a posição rara, extraordinária, do invasor que acaba aliado ao povo invadido e que acaba por liderar a Resistência contra o invasor. Não apenas sua mutilação, suas pernas imóveis, seus ferimentos de batalhas pregressas, conduzem-no a uma consideração negativa do belicismo dos U.S.A. (United States of Aggression), mas também o enamoramento em que ele sucumbe diante da mocinha Navi chamada Neytiri (interpretada por Zöe Saldaña).
Avatar mostra o conluio do fundamentalismo de mercado com o Estado capitalista imperial invadindo o mundo Pandora de maneira semelhante ao que ocorre na conquista de Marte descrita nas Crônicas Marcianas de Ray Bradbury (obra-prima da literatura fantástica).
Jake Sully consegue esquivar-se do destino comum do soldadinho máquina-mortífera, exterminador de quem difere dele, pois sua disability, sua deficiência, o torna muito mais um objeto de chacota dos outros soldados do que alguém que tenha “glória” no Exército.
Se Avatar certamente pode ser descrito como sci-fi, como estou convicto, não é apenas pelo futurismo envolvido nestas star wars, mas é também pois o filme questiona o campo científico que está enrolado no rolê todo. A ciência é descrita aqui como mancomunada ao aparato bélico, mas também é mostrada em seus ímpetos de biohacking, de reinvenção da carne, numa ânsia de formar uma Cronenbergiana new flesh.
Neste seu O Vermelho e o Negro futurista, Jake Sully é seduzido por estes dois mundos: o Exército e a Ciência. Eles o puxam em suas direções, mas ele também, neste meio campo onde está sendo disputado pelas Forças Armadas e pelo Laboratório de Ciências Cibernéticas, está em sua própria jornada existencial de busca por “redenção” – e novas pernas, de preferência.
Este paralítico das pernas, este ser que não anda senão por procuração (através de seu avatar), quer ser Ícaro. Seu avatar poderá planar nos céu sobre dragões. Mas ele, Jake Sully, morreria sem oxigênio se precisasse andar 10 passos até a máscara – como naquela dramática cena, no fim do filme, em que ele quase morre sem ar com a máscara de oxigênio a poucos centímetros de distância.
O filme coloca em tema, também, o que sociólogos tem chamado de gameficação, ou seja, o desejo de fuga ou escape de condições degradadas ou mutiladas de existência, causadas justamente pelo predomínio do capitalismo heteropatriarcal belicista, fugas estas que envolvem uma outra vida que o sujeito “comanda” a partir de seus avatares eletrônicos. Só que Cameron dá concretude a isto ao invés de propor apenas um simulacro.
Parece-me que Jake Sully, por seu corpo queer, é um corpo um pouco estranho ao sistema de guerra: por ser um mutilado ainda imiscuído nos combates, uma cicatriz viva das agruras bélicas e das feridas fundas que estão em sua carne, ele é atraído pela ciência alternativa dos indígenas.
Jake Sully se interessa no que ela pode ter de mais interessante para ele, pragmaticamente: a cura. A xamânica cura de quem está conectado à Internet da Natureza. Há quem taque pedras em James Cameron por este seu suposto “eco-sentimentalismo”. Mas vejamos mais a fundo. A jornada toda de Jake controlando remotamente seu Avatar evidencia, é claro, sua pertença à classe dos militares – ele se apresenta aos Navi como warrior. Mas ele parece muito mais atraído pela classe científica e também pela classe dos médicos ou curandeiros. Apesar das desavenças que possui com a cientista-chefe interpretada por Sigourney Weaver, vê-se que Jake está mais alinhado a ela do que ao general.
Ele prefere enlaçar-se em afetos ardentes com uma Navi, que talvez possa curá-lo, muito mais do que adere ao projeto do Exército. Ele é um pouco como um corpo estranho no setor bélico onde desenham-se os últimos modelos de robôs de guerra a serem comandados no combate contra os Navi, em prol de seu deslocamento forçado, para que os poderes colonizadores se apossem dos recursos minerais. Se não quiserem sair do caminho, serão chacinados – dizem os humanos ao Navi. Não surpreende que Jake fique um pouco envergonhado por ser humano e passe para o lado dos Navi, como um herói da resistência anti-colonial. Ironia da história, que a História registra muitos episódios parecidos.
Avatar, assim, fala sobre o passado: ensina de maneira acessível o que significou a Conquista da América, ainda que seu enredo esteja situado no futuro. O passado da invasão imperialista do “Novo Mundo” – também maravilhosamente cinematografado por Terence Mallick em The New World, um dos que rivaliza com Cameron pelo posto de mais impecável cineasta tecnicamente falando.
Está em Avatar também uma ressonância da invasão da América no massacre dos nativos, a chacina dos indígenas (Navi). Matá-los não é algo que o poder invasor-imperial se proíba. Para acessar as riquezas minerais do subsolo, os humanos-alienígenas impõe em Pandora um regime de genocídio. Ou os Navi vazam daquela terra, ou os humanos vão torrar tudo com seus mísseis teleguiados e lança-chamas. Tem hora que Avatar quase fede a gás lacrimogêneo (se o cinema apelasse a nosso olfato, em algumas cenas passaríamos mal de tanta tosse!). E a gente acaba torcendo pelos Navi – cheios de piedade pelos indígenas de pele azulada que os humanos desapiedados massacram sem dó em prol dos lucros.
Para além disto, o filme inclui ainda pitadas de ecologismo e doutrinas hippie-chique: Cameron irá descrever os Navi como profundamente conectados com a biodioversidade de seu mundo – e os invasores humanos como destruidores do ecossistema deslumbrante onde os Navi existem. Ou seja, Avatar talvez participe de um movimento que inclui Greta Thunberg, Fridays for Future, New Green Deals: prepara o terreno para uma espécie de tomada do mainstream pela cultura pop environmentaly conscious.
Os que estão cientes das monstruosidades relacionadas ao desmatamento, ao extrativismo, à extinção de espécies animais e vegetais, podem encontrar em Avatar enredo que enreda os sistemas produtivos humanos, e as ideologias a eles grudadas, na teia mortífera de uma destrutividade insana. Avatar registra estas atrocidades com aquelas cenas perfeitamente coreografas, maravilhosamente montadas, que fazem Cameron superar o excesso de Rambices de Aliens (o segundo filme da série inaugurado por Ridley Scott com Alien – 8º Passageiro). Deixando Tarantino no chinelo, chutando para escanteio o cinema ultra-violento do autor de Kill Bill, Cameron faz um uso da violência fílmica que é ético e pedagógico.
Agora, ao fim de 2022, James Cameron pousa novamente no cenário cinematográfico. Traz na bandeja a sequência de Avatar, O Caminho das Águas, e promete ainda outros dois filmes (pelo menos). Teremos, assim, no mínimo uma tetralogia – como Matrix já é. Reassitir o filme de 2009 vale a pena, por todas as razões que tentei expor acima, mas por uma última que me parece crucial: este ecologismo hippie-chique que o filme veicula com seus deslumbrantes efeitos visuais fala sobre o amor inter-espécies, aproximando-se assim do que Donna Haraway conceitua sob o nome de “espécies companheiras”. Jake Sully e sua namoradinha Navi simbolizam um pouco deste amor que atravessa a fronteira da espécie. Um amor para além do especismo.
O filme ainda sugere em Pandora a existência de algo parecido com o Reino dos Fungos em nossa Terra: no subsolo, uma espantosa Internet conecta o mundo vegetal numa web que é quase world wide. Os Navi de Pandora estão plugadões nesta Internet que não necessita de modem, mas sim de uma cosmovisão que nos antene e sintonize com o cosmos complexo que habitamos.
Para os Navi, como Jake aprendeu, a energia não se possui, a energia só se usufrui provisoriamente. A energia flui. Nossos corpos interdependentes dançam na realidade e a interconexão não é wishful thinking, é fato da existência. A interconexão é coisa da Vida. Teria Joseph Campbell adorado este filme?
James Cameron nos fornece representações muito vívidas disto, da interconexão como fato da vida. Por isto as chamo de cenas “pedagógicas”, no sentido de que tem o poder de ensinar, ou a pretensão de educar, quando mostra por exemplo a conexão entre os Navi e seus “dragões de estimação”. Há operando em Avatar um sistema de plugagem biológica, organismos plugando-se uns nos outros, e é isto que Jake Sully, o forasteiro do mundo humano, paraplégico em busca de redenção, começa a tentar dominar, tendo sua namorada por mestra, iniciadora, parceira xamânica. Ele que em Pandora “esconde-se” por dentro, como piloto oculto, de uma criatura feita à imagem e semelhança de um Navi.
Avatar parece pintar diante de nossos olhos, através das funduras de seu 3D, uma espécie de Antropoceno modelo exportação: a humanidade levando para outros rincões do Universo o que fudeu seu planeta de origem, entregando às corporações mineradoras e ao aparato industrial-militar do Estado neoliberal-neofascista os destinos do povo infeliz que leva sua vida em meio à Árvore Sagrada, sob a qual as toneladas de riqueza mineral de mais de 1 trilhão de dólares repousa, convocando a carnificina.
Não sabemos pra onde irá o enredo de Avatar, mas James Cameron parece ter apostado as fichas do resto de sua vida na transformação da série de filme no seu Star Wars, rivalizando com Lucas, ou no seu magnum opus potencialmente “triunfador” sobre a tetralogia Matrix.
Com seu gosto pela bombast, seu ecologismo hippie-chique, seu “lirismo” neo-romântico e tecno-xamânico, o “cara” vem aí para balançar de novo o cinema mundial com sua megalomania. Neste caso, estamos diante de um artista com poder raro de enfeitiçar as massas e de consagrar-se como autor de alguns dos maiores sucessos comerciais da história da 7a arte, pau a pau com Spielberg.
Por tudo isto aqui esboçado, fiquemos atentos! Avatar é mais que o popcorn descartável com que normalmente a indústria de Hollywood nos empanturra. Algo do destino da consciência das massas no futuro imediato está inextricavelmente linkado com a recepção que centenas de milhões de consciências, plugadonas na cultura pop contemporânea, farão desta re-entrada em cena de Avatar. Ela se faz em um momento chave do Antropoceno, quando estamos perto do ponto-de-não-retorno e onde o cinema talvez se alce à pretensão de que não pode mais se esquivar: ensinar alguns caminhos para fora do buraco do já-corrente Caos Climático.
Os caminhos que nos serão sugeridos, é evidente, estejamos prontos a criticá-los! Mas sem ignorar que a maioria dos espectadores irá sugar estes filmes com os afetos mais do que com o cérebro, com a ânsia do coração mais que com a frieza de uma razão criticante. E que talvez esta seja a lição que Avatar nos lança: através da ficção científica, pode-se ensinar algo relevante para nossa sobrevivência em meio à teia de interconectividades que as atitudes hegemônicas de extrativismo, desmatamento, poluição, ecocídio e genocídio estão aniquilando.
Por Eduardo Carli de Moraes
Outubro de 2022
Publicado em: 10/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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