(Editora Record, 574 pgs)
“As Vinhas Da Ira” é mais que um livro: é quase um Monumento Norte-Americano, daqueles que exige respeito e veneração idênticos ao que alguns patriotas sentem frente à Estátua da Liberdade ou à Casa Branca… Exagero? Talvez sim, mas parece-me quase unânime a opinião de que o clássico de John Steinbeck merece ser guardado num santuário como uma das preciosidades mais valiosas na história da literatura made in USA no século 20 – segundo Leo Gilson Ribeiro, é “um dos três ou quatro livros americanos claramente discerníveis como obras-primas” (Caros Amigos # 59) – o que não é dizer pouco.
Lançado em 1939, o livro causou impacto imediato, conseguindo a proeza de se tornar rapidamente um clássico em várias frentes:The Grapes of Wrath foi de imediato visto como um marco na história do jornalismo literário e da grande reportagem, um modelo inimitável de “literatura engajada”, e um clássico instantâneo da literatura estadunidense como um todo. Pra destacar a importância dessa obra, é só lembrar que esta obra-prima de John Steinbeck (1902-1968) recebeu o badalado Prêmio Pulitzer, foi diretamente responsável pela premiação de seu autor com o Nobel de Literatura em 1962 e foi magistralmente adaptada para o cinema pelo grande John Ford, talvez o maior dos mestres do western em todos os tempos, já em 1940 (ainda que o filme tenha vários problemas criticáveis, como expus aqui).
“As Vinhas Da Ira” é um retrato detalhado de uma época conturbada da história norte-americana, feito através de uma narração literária impecável – mas isso não é tudo: o livro contêm ainda fragmentos de um protesto político feroz e empolgante. Steinbeck não só se pôs a contar uma bela história, e com um talento literário e jornalístico inegável, mas também povoou essas páginas com seus gritos de indignação e rebeldia, com vários chamados à misericórdia e à união… Dá até pra dizer que esse é um dos melhores livros-reportagem já escritos, se nosso conceito de livro-reportagem não for muito restrito e excludente, já que a utilização de personagens fictícios não impede que a obra seja um retrato fiel de uma situação histórica real.
Arrisco até a dizer que “As Vinhas Da Ira” foi na história da literatura dos EUA algo parecido ao que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, foi para a brasileira. Além disso, o “manifesto político” de Steinbeck que ainda não perdeu nada de sua relevância. Só pensar no fato incrível de que um livro de mais de 60 anos de idade – e gringo, ainda por cima… – pode servir perfeitamente para refletir sobre MST, concentração fundiária e reforma agrária no Brasil do século 21…
Com certeza Steinbeck nunca pretendeu fazer com “As Vinhas da Ira” nada parecido com “jornalismo imparcial”, nem muito menos com uma literatura que fosse meramente descritiva e factual. Não estaria errado chamar esse livro de um “romance de esquerda” ou um exemplo do que é fazer “literatura engajada” – apesar do perigo de ficar colocando esses rótulos redutores, que podem acabar por fazer de uma obra-prima literária algo que parece ser mera “propaganda ideológica”.
Steinbeck toma posição, explicitamente, a favor de um determinado estrato social e se coloca como simpatizante e defensor da “causa camponesa”. Não vejo problema nisso – onde já se viu dizer que bom escritor tem que ser apolítico e neutro? Pelo contrário: acho até bem empolgante e louvável ver um autor que põe a literatura no campo de batalha e acredita nos poderes dos livros para transformarem o mundo (ou ao menos transformarem os homens – que depois mudarão o mundo…). Steinbeck é um autor lutando ao lado do povo, que empunha suas palavras como se fossem armas e utiliza as imagens literárias, e as vidas de suas criações fictícias, como argumentos na luta política real…
Os eventos descritos no romance ocorrem durante a Grande Depressão do começo dos anos 1930, época em que os EUA passavam por maus bocados: após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, fato simbólico do início de um período de dura recessão econômica, que se estenderá até mais ou menos 1935, a situação está cataclísmica em vários territórios na terra do Tio Sam. Em alguns estados do Leste americano, especialmente Oklahoma, a crise econômica não é a única catástrofe com que os camponeses precisam lidar: uma tempestade de poeira violentíssima, conhecida por lá como Dust Bowl, faz com que os campos rurais sejam dizimados, o que obriga a população camponesa a fugir em direção ao Oeste numa enorme diáspora – alguns calculam em mais de 100 mil imigrantes…
Outra figura marcante da cultura musical e poética da primeira metade do séc. XX, o singer-songwriter folk Woody Guthrie, também marcou época sendo o cronista dos eventos descritos por Steinbeck e fez história com suas Dust Bowl Ballads que viriam a inspirar grandes artistas posteriores, de Bob Dylan a Joe Strummer.
Grande parte de “As Vinhas da Ira” narra um período na vida de uma família de camponeses, os Joad, pequenos arrendatários de terra trabalhando na agricultura em Oklahoma. Tom Joad, o segundo filho, acaba de sair da prisão e retorna à casa da família, encontrando o lugar absolutamente devastado e abandonado. Algo de feroz e impiedoso arrasara aquelas terras, agora ermas e silenciosas, cobertas de poeira e desertidão… Motivados por folhetos publicitários que convocam trabalhadores às centenas a irem até a Califórnia, e iludidos por doces sonhos de que encontrarão um paraíso em seu destino, a família Joad pega a célebre rodovia 66, afastando-se à força de seu lar e da terra que amam. Para trás ficam as casinhas desertas, nos campos agora dominados pela poeira e pelas máquinas.
Intercalando-se aos capítulos que contam a saga da família Joad, aparecem alguns “ensaios político-econômico-sociais” que, numa linguagem poética e arrebatada, são como pequenos manifestos de Steinbeck. Neles o narrador toma a palavra para si, deixando seus personagens temporariamente em segundo plano, como que adormecidos, para logo fazê-los retornar ao centro palco a fim de provar com um exemplo particular o que estava dizendo sobre a situação geral.
Não foi somente a ira da natureza em descontrole a responsável pela metamorfose. Aqueles campos foram invadidos por algo mais: o espírito capitalista, o industrialismo, a mecanização rural. O campo havia sido dominado pelas forças do mercado, que Steinbeck pinta com cores sombrias, seu verbo repleto de rebeldia. Os bancos e as companhias privadas – essas “criaturas que não respiram ar, nem comem carne: elas respiram lucros e alimentam-se de juros” – haviam avançando com seus tratores para perturbar a vida pacata e tranquila de milhares de camponeses, entregues desde então ao desemprego e à fome…
O narrador-manifestante, enquanto a família Joad penetra na rota 66, vai se lamentando pelo ocorrido, praguejando e se rebelando contra a desumanização do campo e contra o uso da terra como instrumento industrial. Amedrontado pela invasão dos monstros de ferro, o narrador parece temer que os campos se transformem em lugares desertos, sem seres humanos, onde engrenagens e mecanismos industriais exploram a terra, sem nenhum sentimento e nenhuma gratidão: “a satisfação que o trabalho proporciona desaparece” e “com o sumir do encanto some-se também a profunda compreensão e ligação do homem à terra” (pg. 154).
Os Joad, apenas uma entre milhares de famílias na estrada, tem também suas sérias dificuldades. Além da falta de dinheiro, dos problemas no veículo, do cansaço e da doença, acabam enfrentando duas mortes na viagem. Porém, algo de notável e revigorante surge nos acampamentos onde os camponeses se juntam às beiras da rodovia: surge nesses “mundos móveis” um forte espírito de misericórdia e de ajuda mútua.
Nesses lugares “acontecia uma coisa estranha”, diz o narrador: “as vinte famílias tornavam-se uma só família, os filhos de uma eram filhos das outras, e de todas. A perda de um lar tornava-se uma perda coletiva, e o sonho dourado do oeste um sonho coletivo” (pg. 262). A Mãe, mais à frente, conversando com Rosa de Sharon, sua filha grávida, profetiza:
“Virá o tempo em que tudo isso vai mudar, quando a morte será parte da morte geral, e o luto uma parte do luto geral, e morte e luto são as duas partes de uma mesma coisa. E aí não vai ter mais coisas pessoais. E aí uma dor não mais doerá tanto, porque não será mais apenas uma dor pessoal…” (pg. 282)
Essa explosiva união de gente com muito pouco a perder começa a preocupar os poderosos, que viam nos “mundos móveis” perigosos locais de subversão d’onde poderiam eclodir revoltas e revoluções:
“Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose sem atinar com a sua natureza. (…) A causa escondia-se bem fundo e era simples – a causa era fome, barriga vazia, multiplicada em milhões; fome na alma, fome de um pouco de prazer e um pouco de tranquilidade, multiplicada em milhões” (pg. 201).
Essas multidões de americanos, provindo do Leste, que trabalham por merrecas nas grandes propriedades do Oeste, “famintos e ferozes”, que “tinham tido a esperança de encontrar um lar e só encontravam ódio”, eram chamados pejorativamente de okies. Essa gíria é o equivalente a algum dos inúmeros xingamentos que as pessoas do Sudeste brasileiro dirigem aos migrantes nordestinos, por exemplo. As multidões de migrantes que chegam à Califórnia, cheios de esperança, são tratados com ira e fúria e obrigados a morar nas periferias miseráveis, as Hoovervilles.
Ao redor, enormes campos vazios e improdutivos que poderiam estar sendo utilizados para alimentar todas aquelas pessoas famintas, mas que estavam inacessíveis: a lei legitimava a propriedade privada dos latifúndios, e o crime contra a humanidade estava legalizado… soa familiar? Quem ousasse invadir a terra para plantar seria tratado com os devidos mecanismos de repressão policial e estatal. O narrador-manifestante, profético, faz suas premonições sobre os resultados a que levaria essa situação insustentável, e continua sua crítica pesada contra seus inimigos:
“…os grandes proprietários, que têm acesso à história, têm olhos para ler histórias e saber do magno fato: a propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada a ser espoliada. E do fato complementar também: quando uma maioria passa fome e frio, ela tomará à força aquilo de que necessita. E também o fato gritante, que ecoa por toda a história: a repressão só conduz ao fortalecimento e à união dos oprimidos. Os grandes proprietários ignoraram os três grandes gritos da história. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos despojados, dos espoliados cresceu, e todos os esforços dos grandes proprietários orientavam-se no sentido da repressão. O dinheiro era gasto em armas e gases para proteção das grandes propriedades, e espiões eram enviados com a missão de descobrir conspiratas latentes que precisavam ser abafadas. A transformação econômica era ignorada, planos para a transformação não tomados em consideração; e apenas os meios de destruir as revoltas eram levados em conta, enquanto as causas das revoltas permaneciam irremediadas” (pg. 322).
Há um limite na capacidade de um homem suportar a fome e a desgraça, e após atingido um certo ponto de saturação este homem se torna uma bomba relógio de dinamite pura. Como Knut Hamsun em “Fome” e Joseph Conrad em alguns treços de “Coração das Trevas”, Steinbeck também destaca a força sobre-humana que se exige de um esfomeado ao qual se pede que aja de acordo com os preceitos do direito e da moral da civilização. “Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas em seu estômago, mas também na barriga torturada dos filhos? Não se pode assustar um homem assim… ele já passou por todos os transes” (pag 320).
Da mesma maneira que Marx, nos momentos em que se deixava dominar pelo espírito messiânico, acreditou que o movimento histórico iria inevitavelmente acabar gerando o comunismo, Steinbeck faz seu narrador ser o porta-voz da vitória final dos oprimidos: a inevitabilidade histórica da vitória dos pequenos camponeses sobre os latifundiários é constantemente prometida nos “manifestos”.
Os grandes proprietários “sentiam-se diante de um pavor permanente: trezentos mil… se um dia esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil famintos e miseráveis; se algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia as terras lhes pertencerão, e não haverá força alguma, não haverá quantidade suficiente de armas para detê-los. E os grandes proprietários, que através das suas empresas tornavam-se ao mesmo tempo mais e menos que simples seres humanos, corriam para a sua própria destruição, e usavam todas as armas que concorriam para a sua própria destruição. Todos os pequenos meios, toda a violência, todos os ataques policiais às Hoovervilles, todos os agentes de polícia que, peito estufado, vagueavam por entre os acampamentos dos esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do dia da destruição e contribuíam para a infalibilidade da chegada desse dia” (pág. 322-323).
Mas engana-se quem se põe a ler “As Vinhas da Ira” esperando um livro ingenuamente “otimista”, que deixaria pra trás todo o realismo e sensatez pra se transformar em um ilusório livro sobre uma revolução das classes oprimidas perfeitamente bem-sucedida. A obra de Steinbeck, bastante realista, não se renderá a finais felizes e soluções fáceis. O livro é sim um chamado à luta (um sonoro “Pequenos camponeses de todo mundo, uni-vos!”), mas a vitória dos oprimidos, caso se concretizasse no livro, o transformaria num sentimental e falso júbilo por uma vitória que, no mundo real, não chegou a ocorrer.
O problema persiste, e não foi somente um momentâneo período de dificuldades econômicas durante a Grande Depressão – e nem é só um fenômeno circunscrito aos EUA. O Brasil da década 2020s ainda passa por uma situação muito similar: imensa concentração de terra na mão de poucos (com certas fazendas com territórios maiores que países europeus…), mecanização agrícola causando alto desemprego estrutural no campo, queima de safras para manter preços enquanto 50 milhões de brasileiros estão perto de passar fome… Sem falar que as Hoovervilles não são muito diferentes dos acampamentos do MST e que o governo e a polícia, muito mais que atentar para as causas da situação, investem em opressão, em guerra ideológica e midiática, em chacinas sanguinolentas como a de Eldorado de Carajás…
As imagens finais do romance são poderosas (e infelizmente não foram aproveitadas na adaptação cinematográfica de John Ford, que termina de um modo bem menos marcante…). Alerta pra spoilers a seguir! Tio John, que recebe a incumbência de enterrar o filhinho recém-nascido de Rosa de Sharon, resolve deitar o feto ensanguentado no leito de um rio, para que este seja levado pelo fluxo e mostre aos inimigos o crime que eles cometeram. A “mumiazinha”, morta após ser tão chaqualada e sentir-se tão esfomeada durante os nove meses de gestação, flutua morta rio abaixo, indo mostrar o tamanho da brutalidade que os latifundiários e poderosos estavam criando.
Após esse sepultamento fluvial, com o aperto da tempestade, os Joad são obrigados a ir embora, e em certo momento de sua viagem param em um galpão para se abrigar da chuva, onde se desenrolará o ato final do romance. Um homem e seu filho também estão abrigados no local, e o garoto avisa aos recém-chegados sobre a difícil condição de seu pai, que não come nada há muitos dias. As mulheres da família Joad – Mãe e Rosa de Sharon – entreolham-se e, sem palavras, compreendem-se perfeitamente e sabem o que têm de fazer. Pedem aos homens que deixem o local, e então Rosa, com os seios cheios do leite que deveria ser dirigido ao seu filho falecido, oferece o seu líquido à boca do estranho esfomeado.
E então, mesmo que o mundo inteiro esteja contra eles, mesmo que a Natureza os castigue com tempestades de poeira e dilúvios, mesmo que a polícia lhes espanque como moscas, mesmo que os proprietários de terras e capitais os explorem e os tratem como burros de carga, eles sabem que ao menos venceram em um aspecto – e num dos mais importantes. Sabem que são seres humanos que não pisam na cara de outros entes humanos. Sabem que não tem nem ganância excessiva nem um egoísmo gigante que impeçam um ato de caridade. Sabem que, enfim, apesar de tudo, tem um coração onde ainda flui um pouco de compaixão, e que, apesar de tudo, da miséria, da fome, da humilhação, mantiveram dentro de si uma sensibilidade e uma dignidade humana num mundo de pedra e dominado pela brutalidade. Num livro totalmente dominado pelo chamado à união e à misericórdia, a moça que oferece o seio cheio de leite à boca de um desconhecido esfomeado é o fecho perfeito para um livro primoroso: não conheço símbolo mais bonito que ilustre o que significa solidariedade e caridade em condições de desolação e opressão.
Por Eduardo Carli de Moraes
CAMINHOS ALTERNATIVOS:
CAROS AMIGOS (Leo Gilson Ribeiro)
BRAVO!
PLANO A PLANO
ALBA OLMI
ROTTEN TOMATOES
MIL FOLHAS
CMI BRASIL: AS VINHAS DA IRA E MST
PLANO CRÍTICO
Publicado em: 03/02/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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