Foto: #MemorabiliaACasaDeVidro – assim estávamos em Fevereiro de 2020.
Nos primórdios d’A Casa de Vidro, quando eu buscava uma sede onde instalar a produtora cultural (que já vinha produzindo o Confluências em outros espaços de Goiânia como a Evoé e a Trip), um dos fatores mais sedutores que fez pesar a escolha por este imóvel na 1ª Avenida foi seu amplo e biodiverso jardim.
Ao visitar a Casa pela primeira vez, acendeu-me no quengo um “eureka!” de que estaríamos assim num espaço que, de acordo com os preceitos de Gilberto Gil, poderia ser um Ponto de Cultura, integrante da Teia Nacional da Cultura Viva, que pudesse ser um lócus de resguardo da sociobiodiversidade ferida. Pois vivemos em meio a um colapso, sem precedente nos últimos milhões de anos, da sociobiodiversidade da Terra, e isto deveria importar mais do que por enquanto o faz.
Agora, em Janeiro de 2025, eis um aspecto pouco comentado deste fim-de-ciclo d’A Casa de Vidro mas que também me enche desta mescla de angústia e indignação que me ferve n’alma e define minha inquietude existencial incurável: toda a vida vegetal neste território está prestes a ser aniquilada pelas motosserras. Motosserra que é, aliás, um fetiche quase erótico pro Milei, o fascista fdp que hj desgoverna a Argentina, e que foi também um pet-item para a consumação daquela mega-catástrofe sócio-ambiental propulsionada pelo Bolsofascismo (2019-2022). Vocês que já comeram muita acerola e jabuticaba e taioba e banana aqui no “Jardim de Epicuro” d’A Casa de Vidro talvez se sensibilizem com os afetos que tô aqui pelejando pra expressar.
Ontem (27/01), a imobiliária Millenium me aporrinhou stressantemente querendo impor uma visita da Construtora BP, que foi contratada pela Bluefit, pois eles querem iniciar os processos de “retirada” de árvores daqui. Mas que pressa da porra hein seus bostas! Nós locatários ainda estamos dentro do lote e cuidando de vários corres relativos à mudança. Ainda está correndo nosso tempo regulamentar antes da desocupação – e eles querem forçar a barra para acelerar a “limpeza” deste solo que precisa ser descontaminado desta presença atrapalhante da flora e da fauna a ela conexa.
Normalmente, esta Casa é “do barulho”, da música alta e empolgante, dos batuques e ritmos vários, mas quando se faz silêncio este Jardim é também um campo de escuta para os pássaros e insetos que pululam por aqui. Tudo isto virá abaixo em prol de uma cultura hegemônica que o velho Spencer pagaria o maior pau: “the survival of the fittest”. As motosserras vão vir pra “limpar” o terreno, e depois a demolição virá tirar do caminho esta velha casa caindo-aos-pedaços, pois “o velho” precisa dar lugar ao “novo”. É a locomotiva do Pogréssio, né seu Adoniran?
Onde hoje há terra onde sementes podem germinar, logo tudo será cimento, aço, alumínio, concreto… Centenas de carros vomitadores de gases de efeitos estufa estarão debaixo deste chão que por hora meus pés pisam. Centenas de máquinas estarão servindo à Geração Malhação ao som de algum poperô comercial radiotransmitido pela Jovem Pan.
Lá atrás, quando a pandemia e o pandemônio vieram fuder com nossas vidas com esta somatória indigesta de neofascismo governamental e terraplanismo sanitário, a gente embarcou na aventura agroecológica da Casa de Vidro. Hoje olho pra trás e a enxergo com nostalgia. A Rede Agroecosol foi uma parceira preciosa para oxigenar aqueles tempos irrespiráveis. André Baleeiro, Nina Porto e Arilene estiveram à frente deste belo projeto – também muito inspirado pelas práticas e teorias de nosso amigo comum Sérgio Loiola – que oferecia cestas agroecológicas aos cidadãos goianienses nos findis dA Casa.
Fizemos belíssimas, comoventes Feiras Agroecológicas, inclusive com som ao vivo – aquela manhã com a Forró Fiado foi o ouro! Depois, a Agroecosol descontinuou. Abatida também pelas dificuldades econômicas. Agroecologia, permacultura, veganismo, estas são vertentes que não dão lucro em nossa sociedade agrotóxica, carnista, supermercadista, carrista e o escambau.
Na foto acima, um tanto utópica-idílica, temos a Casa de Vidro em seus primeiros tempos. Tremulando bandeira do MST. Com varal celebrando as bruxas e falando que, se a Idade Média voltar (e não voltou, neste tempo de Senhores Tecnofeudais como Musk?), estaríamos entre os que arderiam nas fogueiras da Inquisição. Segundo Michelet, em “A Feiticeira”, um dos melhores livros já escritos, muitas das mulheres que o Cristianismo queimou em massa por séculos eram gênias da botânica e preparadoras de poções poderosas a partir de seus saberes com plantas de poder.
Também estávamos na vibe do “ninguém solta a mão de ninguém” que nos parecia slogan bacana para inspirar solidariedade diante da hecatombe encarnada pelos asseclas do Jair Genocida Bolsonaro como Weintraub e Salles. Pra não falar que sempre enxergamos nosso “maconheirismo”, nossa militância antiproibicionista e em prol da legalização da maconha, como parte de uma luta ampla pelo reconhecimento das plantas de poder injustamente massacradas por repressões injustas.
Na psicoterapia destes últimos meses cheguei a um conceito central pra descrever o que me aflige e me deixa assim… disfórico, inquieto, insone, quase que permanentemente angustiado e revoltado – é o puro suco da “angústia da desintegração”. Ettore foi buscar tal diagnóstico nas páginas de Roland Barthes. Senti na hora a perfeição do termo. Tenho vivido meses imerso na angústia da desintegração. Depois meu amigo e comparsa na banda Fritos da Terra, Leon Borges, criou uma versão alternativa: “angústia da debandada”. A angústia rege a orquestra desafinada e cacofônica deste frito da terra.
Pra finalizar este textão, só digo isto: bicho e planta também merecem nossa angústia. Um jardim inteiro vai ser morto, uma pá de pássaros e insetos vão perder seu micro-habitat, e já tem gente demais no mundo, inclusive na assim chamada “esquerda”, que liga o foda-se pra todas as formas de vida que não as humanas. Estamos rumando para o Novo Mundo, mas lá não teremos Jardim. E é por isso também que esta mudança envolve uma dimensão que, apesar de micro-escalar, eu chamaria mesmo de trágica pois envolve – não apenas para a A Casa de Vidro Ponto de Cultura, mas para o Setor Universitário, para a cidade de Goiânia, para o Cerrado – algo que eu chamaria, ainda que sob o risco de ser zoado por estar sendo melodramático, de perda irreparável. Rumamos em frente em meio a perdas irreparáveis e penso que este Jardim em iminência de morte merece nosso lamento indignado, nossa indignação lamentosa, ou seja lá como queiram chamar este afeto incômodo que se enraíza na angústia e germina frutos de revolta.
As motosserras estão chegando…
– Eduardo Carli de Moraes, A Casa de Vidro, 28 /01/2025
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Publicado em: 28/01/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia