O aprendizado das despedidas pode até ser amargo para a língua, mas é parte integrante e necessária desta arte maior que é o aprendizado da própria vida. Vida-travessia que nos obriga às despedidas – de lugares, de amores, de nós mesmos e nossas prévias peles – sinto-me chegado a um daqueles fins-de-linha. Você é obrigado a descer do trem e seguir viagem num novo veículo, embarcado em outro vagão. Na escola-da-vida, caso queiramos mesmo ser bons aprendizes na arte suprema que é o bem-viver (que inclui o bem-morrer), temos mesmo que aceitar cursar a disciplina “Despedidas”. E nela está incluída o mais difícil de todos os desapegos que é a despedida da própria vida – aquilo que faremos, quer queiramos ou não, e não se trata de “se” mas de “quando” (a ninguém é permitido esquivar-se da morte que a vida vem findar, a despeito de nossos esperneios e recusas…). Despeço-me, pois, desta casa alugada em 2019 e onde existiu e reXistiu um ponto de cultura goianiense cuja atividade, creio eu, ajudou a cena a efervescer.
Então que assim seja: aceno adeus a esta saudosa maloca – “os hómi tão c’os milhão, nóis encontra outro lugar…”, cantarolo por aqui, me recusando a conceder-lhes a “razão” que o eu-lírico de Adoniran lhes concedia. A Casa de Vidro que antes havia na Primeira Avenida foi demolida e, ao menos para mim, isto gera afetos a serem elaborados, e expressá-los não é totalmente descabido: talvez hajam pessoas que pelo ponto de cultura circularam, que nele cantaram, tocaram, dançaram, filmaram, leram, assistiram, comeram, beberam, fumaram, debateram, cozinharam, se insurgiram etc., que possam se identificar com algo deste campo afetivo aqui desnudado, e talvez sentir até algum nível de identificação.
Carla Damião me escreve, vendo as fotos de onde agora jaz o que éramos, citando Adoniran: “Dim dim donde nóis passêmos dias feliz de nossas vidas…”. E bem a propósito, pois venho me lembrando muito também dos divertidos versos que remetem ao “Pogréssio, Pogréssio, eu sempre escuitei falar…”. Seguimos em frente carregando memórias e imagens que guardam um pouco do ali (con)vivido. E tenho convicção de que o ponto de cultura viveu uma boa morte em seus últimos e intensos dias, em que rolou a filmagem do videoclipe dos Fritos da Terra, com a roda final de percussão afro do Coró de Pau (com pódio queimando e tudo…); com a realização dos belíssimos festivais de música ao vivo finais – Confluências 10, Oclam nas Casas, Jardim Elétrico, Choldraboldra; com os agitos audiovisuais em forma de mostras e de filmagens; com os ensaios das bandas residentes e avulsas, sobretudo Banana Bipolar, Mundhumano, Bugio Curió, Fritos da Terra e Trupe Tudo nos Trinks. Rumamos para nova fase, em nova sede, ainda que o Jardim – e alguns sabem de meus intensos pendores epicuristas – vá fazer uma falta da porra, assim como a música em carne viva que fazia dele, nos últimos tempos, um autêntico Soundgarden.
Sabendo que pra quase todo mundo o que ocorreu é o perfeitamente normal, o totalmente banal, venho trazer minha voz dissonante, meu bocadinho de discórdia, dizendo que não deveríamos normalizar coisas assim e passar em silêncio resignado o fato de que um Ponto de Cultura em Goiânia, após 5 anos de atividades, foi demolido pela especulação imobiliária e pela comercialização do fitness cada vez mais pervasivo em nossa sociedade de narcisismos virais.
Eis o rolo compressor da “modernização capitalista”, varrendo o velho pra substituí-lo pelo novo, passando por um estado intermediário que é de escombros e ruínas. Eis o Progresso que em seus métodos usa a destruição em prol da reconstrução (tem até um tal de Schumpeter que trompeteia por aí as virtudes da “destruição criativa” do capitalismo, abençoado seja!). Enxergo isto tudo pelo prisma de minha incurável “melancolia de esquerda” – Enzo Traverso bem discorreu sobre isto, e Walter Benjamin foi dela uma encarnação das mais fortes… – e também com uma certa raiva-revolta que me impeliu até a me tornar pixador por um dia. Taquei um spray de tinta preta no muro com os dizeres “Foda-se the survival of the fittest” como último ato antes de entregar as chaves à imobiliária. Ato tresloucado ou não, molecagem besta ou válida, foi um modo de tirar a rolha da alma e vomitar afora um sentimento diante do que nossa sociedade está virando com a proliferação dos crossfits, bluefits, cutefits e sei lá mais que outras denominações.
Pois eu suspeito muitíssimo dos benefícios para a saúde física destas academias de ginástica que proliferam junto com distribas de bebidas, farmácias de drogas industriais, arranha-céus etc. O cultivo do corpo físico é da maior importância, mas é ingenuidade demais acreditar que tais corporações do fitness estão aqui para nos cumular com benefícios. Há algo mais sinistro acontecendo, como o fato de milhares de pessoas encararem um trânsito da porra dentro de veículos automotivos que queimam petróleo para se dirigirem a estabelecimentos onde pedalarão bicicletas imóveis e andaram sobre plataformas rolantes, para assim tornarem-se mais fit, ou seja, mais adequadas aos paradigmas vigentes em nosso cistema a respeito do corpo belo, malhado, musculoso etc.
Há uma canção do Radiohead presente no Ok Computer, também conhecido como um dos melhores álbuns já gravados, chamada “Fitter, Happier (and more productive)” que carrega uma cáustica ironia contra este sujeito do capitalismo tardio que deseja estar em plena consonância com os valores impostos por um Spenceriano darwinismo social que propõe, em perversão do darwinismo originário, uma hierarquização, na struggle for existence, entre os mais fit, que transmitirão seus bons genes à próxima geração, e os unfit, cujo patrimônio genético será aniquilado (e nem vou começar uma enfadonha discussão sobre o tanto de capacitismo, etarismo e sobretudo eugenismo que há nisto tudo).
Como se não bastasse, a Bluefit nasceu em minha terra de origem, o ABC paulista, e teve sua primeira sede em Santo André – hoje já são centenas de Bluefits 24h, infestando inclusive Goiânia, e a empresa é majoritariamente controlada pela Abu Dhabi Mubadala. Bem, Abu Dhabi é a capital dos Emirados Árabes Unidos (E.A.U.), um país que alguns acusam de ser “uma ferramenta a serviço dos EUA e Israel”; em 2020, os E.A.U. assinaram com Israel os Acordos de Abraão, considerado vastamente por boa parte dos palestinos como uma traição à causa de libertação da Palestina do jugo imperial a que é submetida pelo sionismo. Dá o que pensar!
Aqui jaz um Ponto de Cultura… que descanse em paz e que prossiga nosso free jazz!… vamos improvisando novos rumos em meio a incertezas e escombros… rumando pro Novo Mundo, mas talvez não pro mundo novo… A tão má e já velha survival of the fittest, socialmente proliferante, avassala a cultura independente – que agoniza mas não morre. A especulação imobiliária manda e desmanda, e nossas vozes, ainda que em coro, ressoam menos que britadeiras e tratores… Escrevo tais palavras sob o impacto de ter visitado o sítio da demolição em curso, o fim concreto da casa que abrigou tantas vivências memoráveis. Planejo voltar lá neste próximos dias pras últimas filmagens documentais em meio às ruínas urbanas que antes ocupávamos com nossos criativos estrondos. Quem quiser deixar um último testemunho, uma última poesia ou canção, uma última performance ou desenho, chame e bora marcar. Espero vcs com câmeras e mics em meio às ruínas e às reviravoltas da reinvenção… E sigo disposto às criativas colaborações que catalisaremos em outros picos, em outros corres, num futuro que se constrói também com a sabedoria das serpentes: “a pele velha… deixa no chão! a pele velha… deita no chão!”
“NINGUÉM VAI ACABAR COM O ROLÊ!”… @fritosdaterra , Sempre Caberá Mais Um
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 29 de Março de 2025
Publicado em: 29/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia