“É preciso tratar de fugir o mais depressa possível deste mundo para o outro…”
PLATÃO, Teeteto, 176 (Consulte a citação aqui)
O autor da Apologia de Sócrates maneja a figura de seu mestre, transformado numa espécie de personagem literário e de peão num xadrez ideológico, tornando-o um perigoso profeta, proponente de um Estado totalitário (delineado em minúcias por Sócrates na obra Politéia, equivocamentemente traduzida como A República), calcado numa moral idealista que, levada ao extremo, torna-se uma idolatria da morte. A ética da mortificação estará aqui sob o escalpelo do nosso escrutínio crítico inspirado nos escritos de Nietzsche, de Oswald de Andrade e de André Comte-Sponville, três desveladores do quanto o platonismo foi fundamentalmente uma apologia da morte e uma filosofia necrófila.
O platonismo instaura uma cisão no real, uma rachadura no mundo, que opera como um facão que desce sua lâmina sobre uma maçã: duas metades nascem deste corte, num dualismo tão simplista quanto intransigente. O platonismo, em outros termos, opera uma fratura que rasga o Ser em dois: de um lado, está este nosso mundo de todos os dias, “entregue a si mesmo” e “abandonado por Deus” (Político, 238-274), este cruel mundo onde Sócrates pôde ser condenado à morte por Atenas e onde tantos outros males e sofrimentos inegavelmente existem; do “outro lado”, como o platonismo postula, há o mundo onde habitam os valores supremos, eternos e incorruptíveis, aquele Bem, aquela Beleza, aquela Justiça (escritas com maiúsculas pois postulados como valores absolutos) que na Terra, para usar a expressão de André Comte-Sponville, “brilham mais por sua ausência”.
Não se trata, para Platão, de aprendermos a amar este mundo que nos rodeia, que afeta nossos sentidos, que instiga nossos desejos, mas sim de “fugir” para este outro mundo (postulado), e que em linguajar filosófico é de praxe chamar de “Transcendência”. O mundo imanente não presta, só é valoroso o comportamento que se devota ao mundo transcendente, e que ascende a este nas asas da razão.
O platonismo não somente instaura uma dualidade de mundos, como além do mais estabelece uma hierarquia moral entre eles: o mundo-de-lá (a Transcendência) é o que verdadeiramente presta; já o mundo-de-cá, pra falar com clareza, não presta e a ele não devemos nos apegar. Nietzsche fez a crítica deste ideário chamando-o de ideal ascético. Em outras palavras: o valor mora na Transcendência; a Imanência é o reino do pecado, do vício, do erro, e dele devemos aspirar a nos evadir pela via da ascese. Donde esta concepção da virtude em que acredita-se que fazer o Bem significa imitar modelos transcendentes. A virtude, para Platão, torna-se uma mímese da transcendência, uma imitação deste outro-mundo (suposto), e trata-se de “tornar-se, pela prática da virtude, tão semelhante à divindade quanto é possível ao homem” (República, X, 613. Ver também VI, 500).
Esta Transcendência que Platão quer nos fazer crer que existe, o que nos garante que exista de fato e que não seja um delírio idealista, uma fantasmagoria nascida da fantasia humana? Se todo o sistema moral e político do platonismo fundamenta-se sobre este alicerce de um Outro Mundo, morada do Bem e fonte de todos os valores, questionar esta base não equivale a ir direto ao calcanhar de Aquiles do empreendimento filosófico platônico? Não foi nesta região que também Nietzsche perpetrou seu espetacular atentado contra o platonismo e, por extensão, também ao cristianismo? Em outros termos: o que garante que exista mesmo esta divindade que Platão julga habitar o Outro Mundo que ele tem fé que existe? Por que a única chance, para os homens, de bem-agir, se resumiria a mimetizar o transcendente? Por que não poderiam existir virtudes plenamente terrestres? O que impede que nasça uma sabedoria do próprio seio da imanência?
A consciência humana transita de modo complexo entre percepção e fantasia, entre experiência sensorial e imaginação: como ter certeza, em relação ao platonismo, de que não é um embuste ou uma ilusão este Outro Mundo, rumo ao qual somos convidados a ascender, escapando às garras sórdidas Deste Mundo? Não foram poucos os que enxergaram o que havia de maledicente e mortífero nesta doutrina: ela condena todos os prazeres que podemos gozar com nossos corpos e seus sentidos (p. ex. gastronômicos, estéticos ou eróticos…), e só elogia o comportamento daqueles que negam a carne, querem fugir deste mundo e tem os “olhos da alma” voltados somente na direção do “Transcendente”.
E se o transcendente não passar de uma ideia em suas cabeças? E se o ideal de perfeição e bondade for um mero produto cerebral, um efeito psíquico que emerge do organismo do homo sapiens? Platão, que não é um cético (quem quiser aprender a duvidar, que leia Nietzsche, Cioran, Clastres!…), afirmará dogmaticamente a superioridade moral da Transcendência e definirá a virtude como negação, condenação e repressão da Imanência.
Ouçamos André Comte-Sponville:
“Aí se funda a moral mortífera de Platão: a virtude não é deste mundo, e nada é virtuoso, a não ser deixá-lo. (Cf. Teeteto, 176; Fédon, 61-70). Trata-se de uma mortificação, no sentido estrito: ‘purificar a alma é separá-la o mais possível do corpo, e essa emancipação e essa superação é exatamente o que chamamos morte.’ Apologia da morte… Somente a alma liberta ‘da loucura do corpo’ é absolutamente santa. No limite: viver é um pecado, a não ser que se deseje a morte. E sabe-se quanto a religião – toda religião, talvez – encontra nesse desejo de morte o horizonte para sempre da sua moralidade… A morte é a recompensa suprema e a suprema esperança.” (COMTE-SPONVILLE: Viver, pgs. 30-31).
Nada mais duvidoso do que esta esperança. Mas nada mais recorrente, na história humana, do que a tentativa, em múltiplas culturas, de adornar a morte com um sentido consolador. A morte parece ser para o aparelho psíquico dos mortais aquilo que há de mais insuportável. Quando Freud se aventura a especular sobre a religião em um de seus livros mais brilhantes, O Futuro de Uma Ilusão, explicará a força das crenças religiosas a partir do tremendo poderio dos desejos humanos que estão detrás delas: é na nossa humana afetividade que deve ser buscada a “chave” para a solução dos problemas que a religião coloca. A crença religiosa na morte como “recompensa suprema” – o túmulo seria apenas um portal, o umbral do Paraíso… e morrer, a melhor das coisas! – acarreta, como André Comte-Sponville bem mostrou, uma moral mortífera. A apologia da mortificação obviamente não é uma doutrina a favor da vida e de nosso júbilo provisório no seio dela: eis o que Nietzsche tão insistentemente mostrou por sua obra afora.
O platonismo, com o pretexto de estar purificando uma “alma” que supostamente habitaria nossos corpos, como um fantasma na máquina ou um prisioneiro no cárcere, prega a mortificação do corpo. Justamente estes nossos corpos que são os únicos possibilitadoras da vida, estes corpos que são a vida ela-mesma, estes corpos animados por uma vida que não poderia existir sem eles!
Platão faz de Sócrates seu boneco de ventríloco que desdenha do corpo e desejá-la vê-lo negado, reprimido, mau-tratado – e isso seria procedimento elogiável e santo, já que equivaleria a uma “purificação” da alma que um dia, no glorioso dia da morte, irá se libertar de sua prisão e ascender aos céus perfeitos da Transcendência (obviamente, só terão acesso à área VIP do Céu aqueles que foram meritórios, ou seja, os que seguiram a risca esta moral ascética e mortificante).
Nós, materialistas, que não cremos mais em Gasparzinhos nem no Papai-do-Céu, ficamos chocados diante de um dogma tão perverso, tão caluniador da materialidade, tão infiel à Terra e a seus organismos. Que seres vivos, que a matéria animada pela vida, que os corpos materiais dotados de vida, sejam deste modo vilipendiados, lançados à lama, reduzidos ao opróbrio, isso é o que nos aparece como escandoloso, como injustificável brutalidade!
O platonismo é apologia da morte: deseja escapar deste mundo só porque imagina, inebriado de esperanças e dando rédeas soltas a seu wishful thinking, que morrer é um Bem (ou pode sê-lo, caso você tenha se dedicado a este ascese suprema que a filosofia teórica). A morte, para o platônico, é uma porta que se abre, não uma que se fecha. Ao contrário de certos poetas que não conseguiam evitar a obsessão com cadáveres putrefatos, vermes decompositores e formigas devoradoras de seres que perderam a vida, Platão concebe a morte somente no domínio da idealidade. A morte é uma ideia na qual ele veste uma roupa colorida e agradável, na qual injeta suas esperanças de imortalidade: eis a morte transformada em ídolo. Ou em mito. Não é possível compreender Platão sem compreender a mitologia platônica da morte, que envolve uma doutrina da reencarnação ou da metempsicose, que vem de longe na cultura que o antecedeu, sobretudo entre os pitagóricos. É o que exploraremos na sequência.
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O PASSADO COMO ALÉM
Nas investigações precedentes, a Transcendência apareceu-nos ligada à esperança, consoladora, de uma morte que se abre para um Além redentor. É a morte futura, aquela que cada vivo um dia deve enfrentar quando for encarar aquela “viagem ao reino de onde ninguém volta” (como diz o Hamlet de Shakespeare), que é ornada com as roupas agradáveis do sentido: o dia fatal, longe de dever se vivenciado com angústia ou temor, é para Platão o dia da libertação, a futura data da ascensão da alma imaculada para longe da podridão corrupta do corpo.
Mas isto decerto não esgota o Além como Platão o imagina: pois no platonismo não há somente um além, mas dois… O além do depois-da-morte e o além do antes-da-vida. No passado, dirá Platão, a alma que atualmente nos habita já peregrinou por outros corpos. À objeção mais óbvia que se pode erguer contra esta fé – “ninguém se lembra de suas supostas vidas passadas!” – Platão responde com um mito. É o mito de um certo Rio do Esquecimento, o Léthe, de cujas águas nós bebemos entre uma encarnação e outra. O helenista Jean-Pierre Vernant, em seus estudos sobre Mito e Pensamento Entre os Gregos, soube apontar muito bem que esta idéia platônica foi inspirada por doutrinas mais antigas, por exemplo de Pitágoras, Píndaro e Empédocles:
“Essa ideia de que a alma, para se elevar na escala dos seres e atingir finalmente a condição de herói e de deus, deve, no decorrer de sua vida, purificar-se pela expiação, pagando o preço dos seus erros, nós a encontramos em textos de Píndaro e de Empédocles: trata-se de ‘faltas antigas’, do mal que a alma pôde cometer em outros tempos, em suas existências posteriores…” (p. 149)
Pitágoras, por sua vez, vangloriava-se de sua capacidade de lembrar de suas antigas encarnações e institui como obrigatórios, na seita pitagórica, os exercícios de memória (anamnese). Mas não se trata somente da “obrigação que tinham os membros da confraria de se lembrar a cada noite de todos os acontecimentos do dia passado”, realizando um “exame de consciência”, mas de algo mais: os pitagóricos, seguindo o fundador da seita, deveriam ser capazes de “abranger a história da alma no decorrer de 10 ou 20 vidas…. e retomar toda a trama das suas vidas passadas” (Vernant: p. 152) Isso só é realizável através de uma “ascese rememorativa” que procura “liberar-se do corpo que o acorrenta à vida presente.”
Vejam bem: a vida presente, o corpo presente, a realidade terrena, tudo isso é indigno de apego e o melhor que temos a fazer é evadir-nos para uma suposta transcendência. Eis uma ladainha que se repete, pelos mais de 2.000 anos em que doutrinas idealistas se disseminaram através da cultura ocidental, semeando este “culto da morte”, como diz André Comte-Sponville, chamado por seus devotos de “busca pela salvação”.
O platonismo, dominado pela fé e pela nostalgia, não cessa de condenar o presente: o Bem está no futuro radiante que virá um dia, ou no passado dourado que um dia foi, ambos atualmente ausentes. Lembremos do que significa, na linguagem de todos os dias, um amor platônico: a incapacidade de amar a pessoa atual e presente, exatamente como ela é, incluídos aí seus defeitos, imperfeições e vícios. Aquele que ama platonicamente só ama o longínquo e o ausente, ou melhor, só ama a imagem ideal que fabrica de uma perfeição que ele imagina habitar no Além.
No âmbito do platonismo, como aponta Vernant, o que ocorre não é uma investigação do passado concreto, seja o do indíviduo, seja o da sociedade que ele integra; a História, isto é, a tentativa de conhecer a verdade do que foi, importa menos do que uma suposta conquista do Além pela Memória. Trata-se, claramente, de uma mitificação da Memória, que os gregos cultuavam sob o nome de Mnemosyne: julga-se que é possível lembrar-se de vidas passadas e que este esforço relembrativo (em grego: anamnésis) é a chave para a salvação. Doutrinas semelhantes sobreviveram, e com força notável, até os nossos dias – como no espiritismo. O filme de Paul Thomas Anderson, The Master, também oferece um exemplo de seita mitificadora da memória.
O problema que se coloca, ou a suspeita que se levanta, é a seguinte: como podemos distinguir clara e distintamente entre o que é uma lembrança e o que é uma fantasia? Posso perfeitamente fantasiar que estou me lembrando de vidas antigas, sendo ludibriado por procedimentos psíquicos, que se passam em meu cérebro, a crer que assisto o filme de minhas prévias encarnações, quando estou criando este filme através deste enganador cineasta ilusionista chamado Fantasia… Em outros termos: como comprovar que esta memória mítica retrata o que de fato se passou ao invés de ser uma ficção tecida por nossos cérebros com auxílio do legado mítico que encontramos na cultura que nos inculcaram?
Esta doutrina da transmigração das almas, que soa problemática e improvável aos olhos dos céticos materialistas, não é somente afirmada como existente no platonismo. Platão vai muito mais e longe e pretende fundar a moral e a política sobre estas bases transcendentes. A República encerra-se com a narração de um mito: o soldado Er morre na guerra; dez dias depois, é encontrado, no campo-de-batalha repleto de cadáveres putrefatos, com seu corpo intacto; doze dias após seu falecimento, volta à vida e relata suas vivências no Além-Túmulo. Isto não é bem um argumento racional, é uma narrativa mítica fantasiosa. Demonstra que não é só o futuro da morte que representa o Além para Platão, também “o passado aparece como uma dimensão do além” (Vernant, p. 143). São aléns demais para meu gosto. E é função da crítica levar os sujeitos a questionar se devemos mesmo dizer améns a tantos aléns assim, ou se eles são causas de alienação e de perdição.
Talvez tantos aléns assim, sustentados pela fé, nos condenam a estar sempre aquém da tarefa suprema do viver: a sabedoria de viver bem aqui-e-agora, nesta vida e neste mundo onde provisoriamente somos. Contra a platônica apologia da morte, afirmamos a Nietzcheana gaia ciência. Contra a cristã aposta, cheia de fé, numa morte que pode dar acesso ao Paraíso, afirmamos a epicúrea sabedoria do carpe diem. Contra a mania idealista de querer alimentar-se com ideais abstratos e alhures no além, afirmamos a imanência Oswaldiana da antropofagia e o princípio trágico – “a cada um, sua hora de ser comido.” A Natureza é uma dinâmica comilança e nosso passar-pela-vida pode ser de um trágico júbilo, desde que possamos nos libertar das correntes destas fés que adoram a morte e pregam o sacrifício daquilo que temos de mais concretamente valioso e insubstituível.
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Publicado em: 12/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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