Super-estimado, filme de Sean Baker, vencedor de 5 Oscars, é uma anódina fábula à la Cinderella que pinta caricaturas sórdidas dos russos e taca lenha no etarismo criticado por “A Substância”
Por Eduardo Carli de Moraes
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Em meio aos festejos carnavalescos de 2025, boa parte do Brasil parou pra assistir ao Oscar. Transmitida desde uma Los Angeles em chamas, conflagrada pela catástrofe climática e pela estupidez recorrente da construção de “Malibus”, a cerimônia foi talvez a que suscitou maior interesse nacional na história do prêmio – superando em muito o bafafá causado pelas 4 indicações de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles: Ainda Estou Aqui disputava em 3 categorias, tendo vencido a estatueta de filme internacional, a primeira a ser concedida a uma produção brasileira.
Os foliões aglomerados explodiram em festa, como se o país tivesse ganhado uma Copa do Mundo do Cinema, em várias capitais onde telões foram instalados para que se acompanhasse o desvelamento dos vencedores, quando Penelope Cruz entregou a Waler Salles a cobiçada estatuazinha dourada. O diretor de Central do Brasil e Abril Despedaçado, não tendo encontrado no bolso o discurso que pretendia proferir, improvisou uma versão mais sucinta e menos contundente do que aquilo que tinha planejado e o mundo acabou não ouvindo sobre “governos autoritários que vã parar no esgoto da história” enquanto “livros, canções e filmes ficam conosco”.
Mas tacaram água suja em nosso chopp com a derrota de Fernanda Torres e sua interpretação magnífica de Eunice Paiva. Além disso, a visceral e impressionante atuação de Demi Moore em A Substância, filme de body horror que foi uma nada sutil pedrada no etarismo da indústria do entretenimento chefiada por machos magnatas tarados por “novinhas”, também foi preterida. Foi neste contexto, com o prêmio concedido a Mikey Madison na disputa por Melhor Atriz e a consagração do Anora de Sean Baker como grande vencedor da noite, que me pus enfim a assistir, com olhos críticos aguçados por um senso de injustiça, ao filme sobre a stripper que se enrosca com o playboyzinho filho da oligarquia russa.
O oba-oba pra cima de uma atriz novata, que exibe fartamente seu corpo sexy em um papel que lhe demanda sobretudo que seja uma fábrica de impropérios, chutes e berros contra capangas armênios e ricaços russos, suscita um debate polêmico incentivado por Milly Lacombe no UOL: ganhou “a novinha que interpretou a prostituta em busca de seu príncipe. E quem riu por último foi Hollywood”:
Demi Morre protagonizou um filme que critica a ditadura da juventude no cinema. Usa o ‘horror corporal’ para falar das loucuras que mulheres são encorajadas a fazer em nome da ilusão da eterna juventude que vai nos manter no centro do palco. Ou não.O cinema estadunidense não está apto a enxergar camadas para além da violência sexual e da prostituição na condição de uma mulher. A premiada foi justamente a novinha que interpreta uma trabalhadora sexual em busca de seu macho salvador. O recado é: o príncipe não é quem parece ser. Mas o príncipe existe. O príncipe é, como nos contos de fada, o bruta-montes. Basta você se esforçar para encontrá-lo. E, ao encontrar, submeta-se ao que for para poder enxergar o heroi por debaixo da fantasia de monstro.
Anora, o vencedor da noite, não fala das condições dilacerantes do trabalho sexual. Anora romantiza o precário. O mesmo recado dado há séculos: mulheres, encontrem seus príncipes. É um recado violento e absolutamente amado por Hollywood. Mas na premiação desse ano ele foi ainda mais eloquente dada a força das interpretações das sexagenárias Demi Moore e Fernanda Torres. Mulheres: coloquem-se nos seus lugares. Não me venham com filmes sobre mães extraordinárias ou sobre a dureza de envelhecer nesse meio. Queremos as prostitutas jovens e mono-dimensionais. Elas serão premiadas.
Personagem mono-dimensional, desprovida de densidade psicológica, Anora encarna o desejo de súbita ascensão social nas asas de um ricaço fácil de fisgar. Fico embasbacado ao ler certas resenhas que afirmam que ela “acaba por se apaixonar” por Ivan/Vanya, quando o que vejo são indícios não da imprevista aparição de um amor-paixão mas da banal manifestação da ganância.
Se ela se apaixona por algo, é pela vida luxuosa e pelas vistas deslumbrantes propiciadas pelas mansões onde o playboy quase-adolescente gasta seus dias em comportamentos perdulários e na completa inconsequência. Ela se apaixona não por uma pessoa, mas pelo poder da grana de que ele dispõe, pelos carrões na garagem, pelas mansões repletas de comodidades, pelo caríssimo anel que ganha etc.
A unidimensionalidade de Anora está em sua completa submissão a uma mentalidade capitalista em que toda alternativa de visão-de-mundo está ausente – tão ausente quanto seu passado, totalmente obliterado pela narrativa, em um roteiro (premiado com a estatueta também!..) que em nada se interessa em descrever o que a levou a empregar-se no trampo de stripper e prostituta de luxo que a produção, mais do que analisar criticamente, recobre com o glitter e o neon da glamourização.
Já Vanya, o mimado filho de uma família da oligarquia russa, consegue ser ainda mais mono-dimensional que Anora. Aqui, a caricatura atinge os píncaros na descrição de um moleque arredio ao trabalho, sempre loucão de cocaína, whisky e seja lá o que ele fuma em seu bong, tratando grana como algo que não jamais estará em falta, e além de tudo sempre cabaço, frenético fodidor que confunde sua ejaculação precoce com uma performance sexual ultra-viril. Natália Bocanera aponta que “Ivan busca se divertir usufruindo maravilhosamente de seus privilégios, é o grande representante da evidente proteção social que pesa sobre essa masculinidade exploradora”.
O deslumbramento dos críticos de cinema diante deste filme também é de embasbacar, dando o que pensar sobre onde diacho foi parar a criticidade que deveria nortear o trabalho de nossos profissionais resenhistas, com tanta frequência capazes apenas de babar-ovo pra certas obras que o aparato Hollywoodiano de consagração incensa sem problematizá-la.
Dentre os elogios muito recorrentes feitos ao filme, está a noção de que ele conta uma história de desencanto, de investimento num “conto-de-fadas” que colapsa rápido, de uma busca pelo Sonho Americano que colapsa e leva a protagonista à queda-livre – como diz a Slate, “Ani quits her job, explicitly invoking the Cinderella story as she hugs her fellow strippers goodbye. But her happily-ever-after lasts barely a week.” Ora, a desconstrução satírica dos contos-de-fadas foi muito melhor realizada, com comicidade muito mais hilária, pela série Disenchantment de Matt Groening.
Parece-me que não há nada de realmente original em Anora que não tenhamos visto parecido em outros filmes sobre ricaços usando seu excesso de capital para conquistar os serviços sexuais e a submissão afetiva de mulheres jovens e sexies dispostas à “prostituição de luxo”, como vimos em Pretty Woman (Garry Marshall, 1990) ou Proposta Indecente (Adryan Lyne, 1993).
O que haveria de tão notável na performance de Mikey Madison? Sua disposição para exibir o corpo seminu e rebolá-lo sem muitos pudores não é nada extraordinário nesta era em que as Big Techs do Vale do Silício aderiram ao softporn e programaram os algoritmos para nos entregarem as popstars como Dua Lipa, Taylor Swift e Anitta sendo ultra sensuais em nossas telinhas. Para além de um enxame de outras TikTok Girls, algumas de carne-e-osso, outras criadas por I.A., que também se mostram cotidianamente para angariar 15 segundos de fama.
Parece-me que Anora apenas confirma a crítica que A Substância dirigiu à Indústria do Entretenimento: esta consagra mesmo as novinhas e despreza as sexagenárias. A atuação de Mikey Madison é fraquíssima em matéria de dramaturgia ou construção de nuances: sua unidimensionalidade é flagrante. Sua aptidão para enfiar fucking e motherfucking em 60% das frases que dispara soa como um cacoete de que o cinema comercial estadunidense usa e abusa, tornando a F Word algo cada vez mais anódino, um trend que tem muito a ver com Quentin Tarantino – Mikey Madison, aliás, atuou em Era Uma Vez Em Hollywood como uma das membras da seita Mason que é usada como uma boneca-de-carne-e-osso para as perversidades de violência extrema do diretor de Pulp Fiction em sua fase decadente.
Sean Baker decerto não é um cineasta moralista, isto é, não crê que um filme tenha que conter uma pregação moral encarnada em um personagem edificante e cheio de virtudes – em Red Rocket, o protagonista é um ator pornô decadente, tentando aliciar uma novinha/Lolita para que entre na indústria do filme pornográfico, e que é tão desprovido de qualidades que se alça a caricatura do white trash na Amérikkka Trumpista.
Já a protagonista de Anora também parece desprovida de qualquer característica ética admirável: uma baita duma interesseira que só defende seu casório impulsivo em Vegas como se fosse nascido do amor porque está fisgada pelo interesse de escapar do rat race nos stripclubs para uma vida de ócio e luxo. Como bem expressou Juliana Gusman:
“Não é amor, é hora extra. Numa dupla atuação, Mikey Madison tem que sustentar, como uma matrioska, a personagem dentro da personagem; ficcionalizar afetos é a única maneira de garantir a viabilidade da proposta econômica final, cravada com um diamante de três quilates: o casamento. Mesmo em suas defesas mais obstinadas dessa improvável aventura – que, assim que descoberta, passa a ser combatida pela família do rapaz –, a preocupação material com o dinheiro nunca sai de sua mira.”
Parece-me ainda que Anora empalidece em comparação com muitas outras obras pela história do cinema afora que trataram do tema com resultados muito melhores e atuações muito mais densas (lembram de Catherine Deneuve em La Belle Du Jour, de Buñuel?). No Blog da Boitempo, em um texto em que somos lembrados também que Jean-Luc Godard, com Viver a vida, de 1962, “acompanha o martírio de uma prostituta interpretada por Anna Karina”, o texto acusa Baker de incorrer no male gaze e de não abordar as demandas reais das trabalhadoras do sexo:
“Baker perde a oportunidade de abordar demandas reais de trabalhadoras do sexo, em que prostitutas querem seu trabalho descriminalizado, regularizado, e com direitos humanos e trabalhistas garantidos. Ao invés disso, o diretor nos mostra Anora completamente desesperada e apostando todas as cartas de sua juventude e sexualidade para conquistar a sua salvação na figura do casamento e na escolha de um homem, não importando quem ele seja.” (Alysson Oliveira e Patrícia de Aquino)
Baker, em entrevista ao Indiewire, confessou que se inspirou em Noites de Cabiria de Fellini, sobretudo para a cena final; mas há realmente como comparar a obra-prima fellinesca com aquele mal ajambrado encontro dentro do carro que culmina numa crise de choro patética e apelativa? Ainda assim, inúmeras resenhas vão elogiar o retrato “cheio de empatia” que Baker fez da sua trabalhadora sexual..
Considero todo este oba-oba pra cima de Anora de um exagero enorme: o aparato de consagração hollywodiano cumulou Sean Baker com prêmios – ele saiu da cerimônia do Oscar com 4 estatuetas em suas mãos, a de diretor, de editor, de roteirista e de melhor filme – o que é sintoma dos tempos em que os EUA prosseguem celebrando o etarismo, a russofobia e o male gaze. Filmes muito melhores sobre o tema, como Elles (da polonesa Małgorzata Szumowska, 2011), não tiveram a repercussão merecida.
Costumo respeitar os filmes vencedores da Palm D’Or em Cannes mais do que os Oscars de Melhor Filme; no caso de Anora, o júri do festival francês presidido por Greta ‘Barbie’ Gerwig parece-me ter feito uma lambança ao conceder a maior honraria ao filme de Baker, em um ano que também incluiu a concessão do Grande Prêmio do Júri para o melodramático musical pseudo-mexicano e suspeito de transfobia Emilia Pérez, do francês Jacques Audiard.
Com elementos de screwball comedy, o filme vem sendo celebrado por seu humor – André Barcinski afirma que Baker “fez uma comédia que remete a grandes cineastas do passado – Lubitsch, Capra, Wilder”. Decerto que há certa graça que entretêm neste filme de dinâmica acelerada e repleto de episódios que fisgam a atenção. Mas compará-lo com os grandes mestres do humor é exagero.
Anora é calcado em caricaturas e nenhum personagem parece capaz de se alçar para além deste nível caricato. Em termos geopolíticos, é preciso perguntar: a quem serve também um retrato dos russos e de seus capangas armênios em que eles são descritos como tão estúpidos e desajeitados? Será que a consagração de Anora não surfa na onda de russofobia promovida pelo Otanistão desde que os poderes-chefe do Ocidente promoveram o golpe de estado de 2014 (Maidan), promovendo a nazificação da Ucrânia?
Será que a russofobia não é o grande significante ausente do oba-oba sobre Anora, em que platéias do Ocidente gozam com o ridículo lançado sobre os russos, pois foram previamente inoculadas com a ideologia simplista de que o regime de Putin é o demoníaco invasor de uma nação soberana, e não o defensor da soberania do Donbass que determinou por plebiscito popular sua pertença à federação russa?
Para além da mania dos comentadores do filme: quando um rico é russo, ele é chamado de “oligarca” ou de “plutocrata”; quando um rico é ocidental, é um empreendedor de sucesso, um herói da meritocracia. Os russos ricos de Anora são caricaturas de uma classe privilegiada bem parecida com os ricos escrotos de qualquer parte do mundo capitalista. Mas a Rússia real passa bem longe desta super-estimada fábula da Cinderella stripper que demonstra mais um sintoma de que o aparato de consagração de Hollywood segue operando na chave do etarismo, da glamourização da precariedade, do império do male gaze, da russofobia acéfala, da total falta de assimilação das melhores lições que nos foram dadas pelo feminismo e pela teoria queer.
Anora é a mentalidade capitalista caricata erguida aos píncaros da fama por um Oscar que despreza a mulher politizada, força-histórica em luta por justiça, verdade e reparação, que foi a Eunice Paiva erguida às alturas por Torres, e que não suporta que se levante um dedo acusatório contra seu próprio apetite insaciável por novinhas sexies denunciado na obra-prima do body horror de Coralie Fargeat.
LEIA TB: The New Yorker – Slate – Plano Crítico – CinéVerse – Ecran Large – Chovendo Sapos – Coletivo Crítico.
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Publicado em: 07/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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