Há casas de vidro em profusão no imaginário social: no cinema, há um thriller com este nome dirigido por Daniel Sackheim (2002); na literatura brasileira, há um livro de Ivan Angelo (estudado por suas vibes distópicas); na teoria política, o comunista português Álvaro Cunhal cunhou a expressão “partido com paredes de vidro”; já no âmbito do ativismo pela libertação animal, frequentemente é citada a ideia, atribuída ao Beatle Paul McCartney: “se os matadouros tivessem paredes de vidro todos se tornariam vegetarianos”.
Estas são apenas algumas das ocorrências desta noção polissêmica de casa de vidro (e outros conceitos semelhantes e adjacentes). Com certa frequência, pessoas manifestam curiosidade diante do nome A Casa de Vidro que batiza este site (que iniciou suas atividades como blog em 2010) e também o ponto de cultura que está em atividade em Goiânia desde 2019. De maneira que esta publicação tratará de elencar algumas das inspirações essenciais para este batismo através de uma série de referências que se somaram para nos fazer concluir que tal imagem era interessante justamente por sua polissemia.
Através da história das artes, pululam as casas de vidro: uma das referências da arquitetura modernista, Lina Bo Bardi, italiana que adotou o Brasil como pátria, inaugurou sua Casa de Vidro em 1961 no Morumbi (SP). Desde 1987, ela está tombada como patrimônio histórico paulista.
Segundo o site do fotógrafo Nelson Kon, autor das fotos aqui reproduzidas, “inicialmente idealizada como residência da arquiteta, e agora sede do Instituto Lina Bo e P.M Bardi, a Casa de Vidro foi a primeira residência do bairro, até então dominado pela Mata Atlântica, quando a expansão da cidade começava a ocupar a outra margem do rio Pinheiros. Uma das principais intenções do projeto foi preservar o perfil natural do terreno, o que fez com que a casa fosse construída sobre pilotis. A casa se vê, assim, como uma caixa de vidro flutuante em meio à natureza, com o acesso feito pela escada metálica, configurando em seu centro um pátio interno, no qual foi mantida uma árvore remanescente da vegetação local.”
Na história da literatura do século XX, as casas de vidro marcam o enredo de um dos maiores clássicos dos romances de ficção científica, inspiração confessa para George Orwell e Aldous Huxley na realização de 1984 e Admirável Mundo Novo: estamos falando de “Nós”, de Zamiáti (Ed. Aleph, já esmiuçado em resenha por aqui), escrito na URSS dos anos 1920. Nesta distopia, censurada por Stálin, os cidadãos são obrigados a viverem em casas de vidro para melhor serem vigiados pelo olhar de um Estado autoritário que prenuncia a Ditadura do partido do Big Brother em Orwell.
Na música contemporânea, já na aurora do século 21, uma das mais inovadoras bandas do rock britânico decidiu também abordar o tema da “vida em uma casa de vidro”. Após realizarem, em 1997, a obra-prima Ok Computer, imediatamente considerada por uma miríade de críticos como um dos melhores álbuns da história, os músicos do Radiohead compuseram Kid A e Amnesiac – a faixa de encerramento deste último é justamente “Life in a Glasshouse”.
Obra-prima do cinema contemporâneo, o filme Dogville, do cineasta dinamarquês e co-fundador do Dogma 95 Lars Von Trier, realiza algo mais do uma atualização da dramaturgia Brechtiana para a 7ª arte: filmado em um galpão, a obra representa de modo minimalista todos os domicílios do pequeno vilarejo onde a história se passa através de marcações no chão, abolindo todas as paredes e tetos. Na prática, o espectador é convidado a devassar as vidas dos habitantes de Dogville, em suas relações com a recém-chegada Grace (interpretada por Nicole Kidman), como se olhasse através de paredes de vidro. A mesma estratégia foi utilizada na continuação do filme, Manderlay.
Estes exemplos evocam a multiplicidade de sentidos que a morada de vidro adquire na obra destes artistas. De modo que A Casa de Vidro parece ser um símbolo condenado à polissemia, à proliferação de interpretações: pode ser vista de maneira utópica, como algo que permite a entrada plena da luz, a visão ampla das estrelas, o contato visual constante com a vegetação circundante, com pássaros e borboletas e outros organismos voejantes; em contrsate, pode ser enxergada por um prisma distópico, como violação da privacidade, suposta como direito inalienável do indivíduo em certas ideologias liberais, de modo que a imposição de uma casa vítrea apareça ao cidadão como ato de autoritarismo de Estado e sintoma da vigilância invasiva.
A casa de vidro pode evocar também uma ética, escolhida pelo próprio sujeito, de transparência, de dar-se a conhecer ao outro, de não ocultar ou omitir aquilo que se passa em seu íntimo, num processo de express ão em que a franqueza se torna a maior virtude, o que se conecta à virtude da parresía – “a coragem da verdade”, crucial na obra do filósofo francês Michel Foucault nos seus últimos anos, em que este se interessa intensamente pela ousadia da fala verídica tal como se manifesta no Cinismo, escola filosófico-prática fundada por Diógenes de Sínope.
Nascendo na Internet em 2010, A Casa de Vidro surge do desejo de debater assuntos pertinentes às ciências humanas, às artes, à política e à comunicação social com esta virtude da transparência e da parresía como valor norteador. Em 2019, emerge como Ponto de Cultura focado em Artes Integradas e na práxis transdisciplinar, procurando articular agentes culturais e ativistas sociais que desejam somar forças na construção de uma realidade alternativa, através de um espaço onde há uma livraria, um estúdio audiovisual, um jardim agroecológico e um centro de mídia independente. Enquanto produtora cultural e midiática, A Casa de Vidro deseja oferecer a possibilidade aos cidadãos interessados para que possam enxergar a própria diversidade e multiplicidade do social.
Publicado em: 17/01/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia