“Pátria Amada! O que oferece
a teus filhos sofridos:
dignidade ou jazigos?”
CRIOLO, “Lion Man”
(Do Nó na Orelha)
Ilustração da abertura: PaulO Kalvo
Esqueça a lorota preconizada pelo hino: “dos filhos deste solo és mãe gentil…” O Brasil real está mais pra megera ou Medéia. Um país que botou na bandeira “ordem e progresso” e esqueceu-se, como lembram Mautner e Jards, de incluir o amor. Somos um país líder em péssimas proezas: o maior consumidor global de agrotóxicos (“o veneno está na mesa”, como alertou Silvio Tendler); uma desigualdade na distribuição de renda que está entre as mais obscenas do globo; altíssimos índices de homicídio (mais de 60.000 por ano), de violência contra a mulher, de crimes motivados por homofobia, grave conjuntura de racismo institucionalizado/estrutural; uma das piores situações de encarceramento-em-massa do mundo, somada à estupidez reiterada do proibicionismo e da Guerra às Drogas…
Temos também, para além das catástrofes ambientais como aquela que vitimou o ecossistema do Rio Doce em 2016, o maior índice global de assassinatos contra ecoativistas (como Chico Mendes e Dorothy Stang); em muitas periferias, já vivemos num estado de guerra civil, oficialmente não-declarada, que faz com que nas “quebradas” – onde o Estado militarizado distingue entre “pele alva” e “pele alvo” (Emicida) – morra mais gente do que em zonas de guerra como o Iraque e a Síria (como mostram Lutas.doc, Notícias de Uma Guerra Particular, Estopim, dentre outros documentários).
Soma-se a isso uma nojenta mídia corporativa, a besta-fera conhecida pela alcunha de “P.I.G.”, cúmplice de golpes de Estado e praticante cotidiana da desinformação e da alienação das massas midiotizadas. Sempre pronto a pregar as benesses de um fundamentalismo de mercado de modelo yankee, corporações idiotizantes e arrogantes como a Rede Globo, a Editora Abril, o Império neopentecostal Record, além de muitos “jornalões”, não sabem senão submeter sua linha editorial ao deslavado elogio de um neoliberalismo pró-corporativo.
Tudo isto junto explica como pôde se empoderar o Bozofascismo, face mais grotesca da barbárie hoje banalizada: o elitismo meritocrático e o autoritarismo militarista, que em seu trato com os excluídos e marginalizados pretende varrer a “escória do mundo” para as favelas, para os presídios e para o IML. Um regime político-econômico que, no neo-clássico Doutrina do Choque, foi brilhantemente criticado pela Naomi Klein.
O Brasil é um barril de pólvora, bem distante da “Aquarela Brasileira” kitsch-ufanista de Policarpo Quaresma, satirizado pela pena de Lima Barreto. Neste cenário, Guilherme Boulos, liderança política emergente, candidato a presidente com Sônia Guajajara em 2018, candidato a prefeito de São Paulo em 2020, parece-me um dos intérpretes mais lúcidos e bem-informados do país. Um pensador conectado à práxis, que arregaça as mangas e segue à risca a tese de Marx: os filósofos não estão aí só para interpretar o mundo, a nossa tarefa é transformá-lo!
As teses de Boulos podem parecer intragáveis para aqueles que desejam crer numa imagem mais rósea do país – “na prática existe pena de morte no Brasil”, dispara Boulos – mas o trago amargo que é ler seus textos parece-me também salutar medicina contra nossas cegueiras morais, auto-ilusões voluntárias e impotências resignadas. “De Que Lado Você Está?” (Ed. Boitempo) é um livro tonificante, um tanto incendiário, escrito por uma jovem liderança política do país e que mostra-se admirável por sua capacidade de mobilização de massas e pela amplidão de seu conhecimento concreto da realidade que nos engloba.
Guilherme Boulos é dirigente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), militante da Frente de Resistência Urbana e professor de filosofia. Escreveu semanalmente no site da Folha de S. Paulo e também “estrelou” o programa da webtv brasileira Havana Connection (na companhia de Leonardo Sakamoto, Jean Wyllys e Laura Capriglione) na TV UOL.
Formado em filosofia pela USP, especializou-se em psicanálise, trilhando caminhos um tanto similares ao de seu comparsa de FFLCH, Vladimir Safatle. Recém-saído do forno, pela Editora Boitempo, o contundente livro “De Que Lado Você Está? – Reflexões Sobre a Conjuntura Política e Urbana no Brasil” (2015, capa ao lado) reúne 45 artigos de Boulos publicados na Folha.
Com entusiasmo recomendo a leitura desta poderosa coletânea de panfletos e artigos-de-intervenção, que re-animam a chama de um jornalismo autenticamente crítico, a serviço da melhoria revolucionária de nossos pavorosos quadros sociais. Algumas frases de Boulos tem o estampido incendiário de coquetéis molotov; mas ele quer destruir os destruidores, abrindo o terreno para construções coletivas mais justas. Segundo o próprio autor, De que lado você está? “é uma obra de intervenção, que propõe saídas à esquerda para os desafios que a explosiva conjuntura brasileira nos oferece”.
Devorei-o, como bom antropófago, nestes últimos dias. E fui obrigado pela força argumentativa do texto, além do substancial embasamento em fatos e estatísticas concretos, a reconhecer os amplos méritos das análises de Boulos. Lendo-o, sinto reverência diante de uma das mentes que me parecem mais importantes dentre as que hoje, no Brasil, pensam a política. Boulos pensa a fundo e sem covardia. E não tem medo de rasgar o tecido do kitsch e revelar um país bem mais horrendo do que vendem-nos as fantasias ufanistas.
Boulos junta-se ao time que já tem Vladimir Safatle, Maria Rita Kehl, Eduardo Viveiros de Castro, Eliane Brum, dentre outros, no forefront de um “Levante dos Palmares” de parte da intelectualidade brasileira, que está em estado de rebelião aberta, incapaz de aceitar calada as mazelas e desmandos das Paulicéias Desvairadas e das Hellcifes desta vasta Brazilândia ensandecida. Ó pátria mãe gentil, “o que ofereces a teus filhos sofridos”, pergunta-te o rapper Criolo, “dignidade ou jazigos?”
“Lavar os copos / Contar os corpos / E sorrir / A esta morna rebeldia.” Criolo
Sou admirador confesso dos textos-manifesto de Boulos e acho que eles às vezes alçam-se ao poder retórico dos escritos do Subcomandante Marcos ou de Eduardo Galeano (pouca gente no Brasil escreve com tanta combatividade latino-americana quanto Boulos!). Com frequência a voz de Boulos soa-me um tanto Eduardo Galeanesca em seu brado anunciador de uma outra ordem, menos perversa e nefasta que esta hoje vigente. Além disso, Boulos, fiel ao espírito de um certo Vladimir Safatlismo, é da turma daquela Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome (para citar o título do notável livro-manifesto de Safatle). Revela-se assim como um dos autores de leitura mais crucial pra compreender o Brasil de hoje – que é, para Boulos, um barril de pólvora em forma de país – e sem escassez de fagulhas e estopins.
O livro que a editora Boitempo acaba de lançar revela uma pena firme e uma voz convicta. Boulos é contundente em suas denúncias e diagnósticos – por exemplo, afirma que “existe fascismo em SP”, de certo modo ecoando e fazendo dueto com “Não Existe Amor em SP” de Criolo. Para além do denuncismo, ele também é movido, em sua práxis e em seus textos, por certos anúncios utópicos: pode ser que, na polarização exacerbada do cenário político (que vivenciamos desde o fim de 2014, numa das eleições presidenciais mais acirradas da história brasileira recente), haja de fato o potencial de uma “saída à esquerda”.
Comecemos pelo diagnóstico que faz Boulos sobre SP, às beiras do colapso hídrico, vivendo há duas décadas sob a hegemonia política do Tucanato: em São Paulo, diagnostica, há fascismo sim, e de sobra. “E a elite paulistana não faz nenhuma questão de escondê-lo. Sabemos que não é de hoje. A história da segregação territorial em São Paulo vem dos anos 1940, quando se inicia de forma sistemática a demolição dos cortiços e das residências operárias nas regiões centrais. Pobre precisa vir ao centro para trabalhar e servir, mas morar ali? Não, aí já é vandalismo!” (p. 36)
O fascismo não é novidade, nem no Brasil (que vivenciou tanto na Era Vargas quanto durante a Ditadura Militar de 1964-1985 regimes ditatoriais e de características fascistas) nem em São Paulo, onde, recentemente, sob a batuta de um certo prefeito Gilberto Kassab, hoje promovido a Ministro das Cidades, ocorreu uma verdadeira epidemia de incêndios em favelas… As favelas incendiadas, tanto quanto as famílias expulsas de suas casas no Pinheirinho (em São José dos Campos), aparecem a Boulos como sintomas de uma mesma lógica, nefasta, hoje hegemônica, que “materializa no território a segregação social”:
Incêndio em favela no Campo Limpo (SP) deixa 288 famílias desabrigadas (Rede Brasil Atual, Setembro de 2012)
“Quando um bairro recebe investimentos ou passa a hospedar grandes empreendimentos privados – condomínios de alto padrão, shoppings etc. – sofre um processo intenso de valorização. Expulsa assim os moradores mais pobres, por vezes através de despejos coletivos e, mais frequentemente, pela hipervalorização dos aluguéis. Essa dinâmica econômica sedimentou uma mentalidade higienista na elite e nas camadas médias. Veio junto com uma fobia, um nojo, uma recusa da convivência. Seu ideal seria que os pobres trabalhassem para servi-los, mas ao fim do expediente evaporassem, para retornar apenas no dia seguinte. Pobres podem até existir, desde que longe de seus olhos.
(…) A face mais perversa desse fenômeno foram os incêndios em favelas. O mercado imobiliário é mesmo muito criativo. Quando, por alguma eventualidade, o Judiciário barra o despejo de uma favela localizada em zona de expansão imobiliária, eles fazem a seu modo. Incendiar favelas tornou-se um recurso habitual para afastar pobres dos condomínios de alto padrão. (…) O site Fogo no Barraco reuniu em um mapa todos os incêndios em favelas paulistas de 2005 a 2014 e comparou as regiões incendiadas com o índice de valorização imobiliária. O mapa mostra como a enorme maioria dos incêndios ocorreu em zonas de valorização. Mais inflamável que o clima seco é a especulação. Os dados dizem ainda que metade dos incêndios dos últimos vinte anos ocorreu entre 2008 e 2012, isto é, durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD) como prefeito, que foi marcada pela promiscuidade com o mercado imobiliário.” (BOULOS, 2015, Boitempo, p. 37)
Brada-se no Brasil contra a corrupção e aponta-se muito o dedo para Brasília, como se lá se concentrasse a corja, o ninho de serpentes, Sodoma e Gomorra no Cerrado… Mas muita gente esquece-se do gigantesco papel corruptor dos comportamentos do setor privado em nossos tempos neoliberalizados. Guilherme Boulos, em sua análise impiedosa e lúcida da especulação imobiliária, comunica-nos um absurdo: neste país, com mais de 6.000.000 de pessoas sem moradia digna, segundo o IBGE, existem cerca de 6.052.000 imóveis desocupados – 400 mil deles em São Paulo. De um lado, famílias sem casa; de outro lado, casas sem famílias, servindo à especulação imobiliária.
Resistência popular urbana no Pinheirinho (São José Dos Campos / SP) com a comunidade prestes a ser invadida pela PM
Boulos provoca: “O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o direito à especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto buscando – que ousadia! – o direito de morar em alguma parte. (…) Tratar problemas sociais como casos de polícia é sinal inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos Carajás ou no Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para sufocar as contradições da sociedade.” (p. 39)
A postura combativa e os discursos falando-grosso de Boulos podem até conduzir alguns a pensarem nele como caricatura da figura do radical esbravejante, mas a leitura destes artigos publicados na imprensa revela um homem profundamente inteligente e bem-informado, de muita coerência e sensatez, incapaz de ficar calado diante de gritantes desigualdades sociais, e que segue o mantra marxista de que o filósofo não deve somente interpretar o mundo, mas tem por tarefa ajudar a transformá-lo.
Boulos conecta assuntos aparentemente dispersos, alheios uns aos outros, como a especulação imobiliária e a diminuição da maioridade penal, mostrando que tudo faz parte de uma mesma lógica: um Estado autoritário, gerido por uma elite de mente privatista e tendências à barbárie higienista, que impõe pela violência uma “ordem” onde possa gozar de todos os privilégios o deus Lucro. Nem Alá, nem Jeová, nem Buda: no Brasil, barril de pólvora, a elite está de joelhos diante de Pluto…
Os artigos de Boulos dedicam-se a auscultar o coração da vida urbana no Brasil e revelam-nos um dos mais perspicazes intérpretes políticos do país. Explica muito bem todo o contexto do país que foi chaqualhado pelas Jornadas de Junho de 2013 e, depois, pela UFC eleitoral entre PT e PSDB em 2014. O foco da atenção de Boulos cai mais frequentemente sobre São Paulo, já que é esta a megalópole onde Boulos age mais ativamente, seja através do MTST ou de seus textos na Folha de São Paulo, de modo que não faltam murros e alfinetadas lançados pelo audaz articulista contra as autoridades-mor da Paulicéia Desvairada:
“O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra malufista de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma oportunidade de pôr o Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no curto prazo, numa sociedade dominada pelo medo e pela violência. Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais disso, mas a memória é curta… Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.” (BOULOS, p. 40)
Como efeito dos grandes eventos esportivos – tanto a “Copa das Tropas” quanto as Olimpíadas de 2016 – vivenciamos nos grandes centros urbanos uma epidemia de especulação imobiliária e gentrificação. Na chamada Cidade Maravilhosa, Boulos também faz o diagnóstico de “uma sociedade em que o lucro está acima de todo o resto”: “o Rio de Janeiro tem registrado o maior índice de valorização imobiliária entre todas as cidades incluídas nas estatísticas da Fipe/Zap. Nos últimos 6 anos, a valorização média do metro quadrado atingiu 262%. Os aluguéis também dispararam, subindo 143% no mesmo período.” (pg. 44)
Um dos piores problemas do Brasil, no diagnóstico de Boulos, é justamente o poderio das mega-empresas da construção civil, que acarreta, como subproduto da lógica econômica e política hegemônica, uma tremenda precarização das moradias para milhões de pessoas. Longe tanto do antipetismo feroz que não sabe reconhecer os méritos do período “lulista-dilmista” quanto da subserviência acrítica ao governo do PT, Boulos tece um discurso onde aponta os avanços do país, a partir da eleição do Lula, mas que também aponta muitas insuficiências, como fica clara na análise que faz do Minha Casa Minha Vida:
“Embora seja o maior programa de habitação popular da história do Brasil, o Minha Casa Minha Vida reproduz o modelo da cidade do apartheid. A dinâmica imobiliária sempre empurrou os mais pobres para as periferias. Ao invés de fazer o contraponto, o programa tem reforçado esse movimento excludente. Quem define os terrenos que serão disponibilizados são as construtoras… O resultado é previsível: as construtoras usam seus piores terrenos e proliferam-se condomínios-guetos nos fundões urbanos. (…) Aliás, a especulação imobiliária sabota os próprios efeitos quantitativos do programa. Mesmo com o Minha Casa Minha Vida, o déficit habitacional cresce de forma consistente nas principais metrópoles do país. O ritmo de produção de novos sem-teto – pelo aumento de valor dos aluguéis – é maior do que o de construção de novas casas.” (p. 55)
Quanto ao tema do corrupção (e dos corruptores), Boulos está bem informado sobre os “escândalos que se sucedem e bodes expiatórios são criados um após o outro para acalmar os ânimos. A mídia denuncia, o público pede cabeças e vez ou outra alguma vai para a guilhotina. Nesse circo contínuo se alimenta a descrença do povo na política institucional. (…) O discurso que tem se fortalecido é o da direita. Não se pode nunca esquecer que a Marcha da Família com Deus, que preparou o golpe militar de 1964, tinha o combate à corrupção como lema.” (p. 71)
A cruzada contra a corrupção pode tornar-se um estandarte fascista, e contra isso Boulos fornece o remédio: a compreensão clara dos porquês da “estrutura carcomida do sistema político brasileiro”. A essência de nossa desgraça coletiva estaria, afirma Boulos, na “apropriação do Estado pelos interesses de uma elite patrimonialista. A captura dos recursos públicos está aí. A burguesia brasileira pede um Estado mínimo e enxuto para o povo, mas desde sempre teve para si um Estado máximo. Privatizar os lucros e socializar o prejuízo, esta é sua diretriz.” (p. 72)
As corporações construtoras viciam todo o sistema político brasileiro:
“Não é à toa que os principais ‘doadores’ de campanha eleitoral são as empreiteiras, que também são o setor mais acionado para obras públicas. Dos 10 maiores financiadores de campanha, 7 estão sendo investigados por corrupção. A Camargo Correa, líder no financiamento eleitoral em 2010, é investigada por desvios de R$ 29 milhões na Refinaria de Abreu e Lima – e na mesma obra, a Galvão Engenharia é investigada pela bagatela de R$70 milhões. A Andrade Gutierrez, vice-líder em 2010, é alvo do TCU por superfaturamento de R$86 milhões na Arena Amazônia… A JBS Friboi, maior frigorífico do mundo, é objeto de inquérito por fraude em precatórios que pode chegar a R$3,5 bilhões.
O conluio entre grandes empresas, partidos e candidatos é o maior câncer da política brasileira. O legítimo pai da corrupção. No Congresso Nacional esse jogo de interesses é escancarado. Dados do Diap mostram que quase 50% dos deputados eleitos em 2010 compõem a chamada bancada empresarial. É por isso que o Brasil precisa urgentemente de uma reforma política. Ficar no sofá ou nas redes sociais reclamando da corrupção pode até ter serventia psicológica para quem o faz, mas não tem qualquer consequência prática. Defender uma reforma política ampla e pautada no fim do financiamento privado das campanhas eleitorais, na revogabilidade dos mandatos e no fortalecimento dos mecanismos de participação popular é apenas dar coerência ao repúdio à corrupção e aos corruptos da política brasileira.
As soluções só podem vir de iniciativas populares. Afinal, não se pode esperar que o Congresso Nacional, verdadeiro balcão de negócios de interesses privados, faça ele próprio uma reforma política que liquide com seus privilégios patrimonialistas.”
Na sequência, como exemplo de um texto de Boulos de intensa e imensa relevância em nossa atual conjuntura nacional, A Casa de Vidro compartilha o brilhante “Robin Hood Às Avessas”. Boa leitura!
ROBIN HOOD ÀS AVESSAS
Guilherme Boulos na Folha de S.Paulo [04/12/2014]Corte de gastos, mais uma vez, é o assunto do momento. Apesar de o candidato de sua predileção ter perdido as eleições, a banca conseguiu impor sua pauta. A velha cantilena do arrocho neoliberal volta a ganhar força no governo petista, com Joaquim Mãos-de-Tesoura à frente da equipe econômica. Venceu a chantagem dos “investidores”.
Mas, se o assunto é corte de gastos, por que não debatê-lo sem preconceitos?
O debate dos gastos públicos no Brasil é totalmente enviesado. Nas últimas semanas tem-se feito um circo em torno da meta de superavit primário. Os banqueiros querem ampliá-la e o governo –cabisbaixo como um mau aluno– reconhece que tem de fazer mais e promete maior aperto em 2015. O superavit primário, recurso desviado dos investimentos públicos para pagamento de dívida, é em si uma excrecência. Poucos são os países que o adotam.
Os Estados Unidos, modelo dos liberais que falam de descontrole fiscal por aqui, acumula todos os anos deficits fiscais consideráveis. Não só não reserva dinheiro arrecadado para o pagamento da dívida como também gasta mais do que arrecada. O deficit fiscal dos EUA neste ano foi de mais de U$480 bilhões ou 2,3% do PIB. Será Obama um bolivariano fiscal?
Na zona do Euro o deficit, apesar de decrescente, ficou em 3% do PIB em 2013. Já aqui fazem escândalo por acharem que o superavit não é suficiente. Suficiente pra quem, cara pálida?
Os gastos do Brasil com o serviço da dívida pública –amortização, pagamento de juros e rolagem– são assombrosos. Em 2012, o dinheiro público destinado ao pagamento dos credores da dívida correspondeu a 44% do Orçamento federal. Em 2013, a 40%, expressando nada menos que R$ 718 bilhões. Neste ano, até o final de outubro, já haviam sido sugados pela dívida R$910 bilhões, cerca de 50% dos gastos da União no período. Os dados são da Auditoria Cidadã da Dívida, que também disponibiliza gráficos comparativos impressionantes sobre o assunto.
Essa montanha de dinheiro vai para grandes bancos e “investidores” nacionais e estrangeiros. Uma elite que abocanha diariamente quase R$ 3 bilhões de recursos públicos. É a chamada Bolsa Banqueiro.
Há quem reclame dos gastos com o Bolsa Família. O programa gastou em 2013 R$ 24 bilhões para atender 50 milhões de pessoas. Isto corresponde ao gasto de menos de 10 dias da Bolsa Banqueiro, para beneficiar alguns milhares de ricaços. Ora, não podemos dar o peixe aos bancos, temos de ensiná-los a pescar!
Todos defendem melhorias na saúde e na educação, não é mesmo? A previsão de gastos federais para este ano em educação foi de R$ 115 bilhões. Na saúde foi de R$ 106 bilhões. Já a Bolsa Banqueiro arrancará este ano mais de R$1,02 trilhão de recurso público federal.
Todos se indignam também com a corrupção no Brasil. De fato, a apropriação privada de recursos públicos é inaceitável e devemos combatê-la com unhas e dentes. Agora, este combate não deve limitar-se aos escândalos políticos. Tem que pegar as grandes raposas do atacado. A cada dia, a Bolsa Banqueiro desvia do orçamento público valor correspondente a 20 mensalões. Se um mensalão nos indignou, por que não nos indignam 20 mensalões por dia?
Porque nos vendem diuturnamente a ideia de que estes pagamentos são necessários para atrair investimentos e de que esta dívida é legítima. Afinal, não pagar dívida é coisa de caloteiros!
Em relação aos investimentos, o argumento é um contrassenso em si. Na verdade, o serviço da dívida suga os recursos do país, em vez de invés incrementá-los. Que investimento é esse que arranca R$1 trilhão por ano?
A legitimidade desta dívida é um capítulo à parte. A estudiosa Maria Lucia Fatorelli demonstra com abundância de dados como a dívida pública foi construída na base de fraudes, contratos duvidosos e dos famosos juros flutuantes, que aumentam ao gosto do credor. Formou-se, diz ela, um sistema da dívida que atua como um ciclo vicioso, ampliando o valor devido quanto mais se paga.
Essas malandragens do colarinho branco foram postas a nu nos países que fizeram auditoria em suas dívidas públicas. No Equador, a auditoria de 2007 mostrou que 70% da dívida era ilegítima. Mesmo por aqui, quando Getúlio Vargas auditou os contratos nos anos 30, descobriu-se que 40% da dívida não estava sequer respaldada por contratos!
Vamos, portanto, falar seriamente de corte de gastos. Mas não nas migalhas destinadas aos investimentos sociais ou à previdência pública. Estes precisam ser decididamente ampliados se quisermos caminhar para reduzir as desigualdades gritantes de nosso país. É preciso mexer na verdadeira ferida dos gastos públicos: o insustentável pagamento do serviço da dívida, a Bolsa Banqueiro.
A tesoura do Joaquim não está afiada para isso. Mas sim para reproduzir a hipocrisia de cortar os já medíocres investimentos sociais. É a política do Robin Hood às avessas: tirar mais dos pobres para dar aos ricos. Chamam isso de responsabilidade fiscal. (BOULOS)
Publicado em: 28/11/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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