“Dizem que as perguntas fundamentais são quatro. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Afinal de contas, o que estou fazendo aqui?
Se quisermos as respostas absolutamente certas, então todas elas serão irrespondíveis. Porém, se admitirmos a resposta “andando”, esclarecendo um pouco ao mesmo tempo que se continua duvidando, então estaremos sempre respondendo – e sempre perguntando.
Quem sou eu? O que é “eu”? Talvez algo assim como um feixe de acontecimentos, em movimento permanente, em parte equilibrado, em parte compreensível, em parte enevoado, com todas as partes querendo e precisando equilibrar e compreender o todo. Esforço semelhante ao da bruxa madrasta: “espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?”.
O maldito espelho sempre responde que sim. Sempre existe alguém ou algo melhor e mais bonito do que nós – pelo menos, aquele que um dia poderemos ser, ou aquilo que um dia poderemos falar ou fazer.
O primeiro livro que a gente lê é um dos primeiros espelhos. Onde se procuram respostas para as quatro perguntas e, em especial, para a primeira. Onde se encontra alguma coisa, mas não as respostas definitivas. Daí, alguns abandonarão a leitura para tentarem outra linguagem, enquanto outros continuarão lendo, continuarão procurando por ali. Até começarem a perceber que na outra ponta dos livros esteve um escritor, e que parte das respostas ansiosamente procuradas talvez esteja no próprio esforço de escrever as dúvidas.
Esta passagem é importante. Ler é um movimento extremamente passivo – mas um movimento, porque mexe com as imagens interiores, guardadas, reprimidas, acrescentado-lhes outras e transformando as que o leitor já traz consigo. Escrever, por sua vez, é um movimento extremamente ativo, fazendo imagens, trazendo outras ao mundo e modificando-lhes a forma – na direção de um estilo pessoal.
A relação entre escrever e ler, entretanto, vem sendo posta como mecânica, de ligação direta, levando à idéia de que uma pessoa que leia muito necessariamente escreve bem. Isto é falso.
A tese de que ler leva diretamente a escrever é defendida por aqueles que enxergam na falta de hábitos de leitura o grande problema da expressão do aluno e do povo. Como se hábito de leitura fosse a condição sine qua non para o sujeito se expressar. O raciocínio é entortado, tomando efeito por causa.
Não existe hábito de leitura porque a maioria do povo é analfabeta, ou semi-analfabeta. Não há bons livros por isso também, e pelo perigo que trazem os bons livros. Não há dinheiro para comprar pão ou livros porque vivemos num regime onde são muito secundários o direito de escolher e a liberdade de decidir, tanto quanto a de desejar. Falta de dinheiro e falta de interesse pelo mundo e pelos livros são sintomas de um grande desrespeito humano institucionalizado. A instituição do desrespeito, que “escolhe” por nós todos e a todos interdita o desejo, é o nervo da questão – e não a falta de tal ou qual hábito.
A expressão “hábito”, aliás, me parece plena de conotações behavioristas e fascistas. Transfere um problema humano para uma esfera mecânica, desprovida de consciência e de desejo. Os hábitos são transmitidos por imitação e por pressão, dispensando as pessoas de escolherem este ou aquele comportamento, dispensando-as do direito e dever de escolher e decidir por si.
Ler muito não pode levar a escrever. Pode levar a ler bem – o que será muito importante, claro. Ler bem, por sua vez, pode ajudar a viver, porque o sujeito se informa, se identifica, se transfere, principalmente se anima. Mas o que leva as pessoas a escrever é uma angústia diferente destas: a angústia de riscar um destino, interferir na história, se colocar no campo de jogo.
Logo, ler não é condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo.
Se me contra-argumentarem afirmando não existirem escritores sem leitura, concordarei com a evidência e discordarei desta lógica. De fato, não deve haver escritor que não leia, porque não há aquele que transforme o mundo sem entender o que se lhe oferece. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Há os que lêem muito e entendem um tanto, mas preferem não intervir, inertes e omissos inclusive por opção. Há os que lêem muito e entendem muito mas nunca escreveram nada. Quem escreve, então, sem dúvida lê. Mas quem lê, na dúvida, lê mais um pouco – e não escreve.
Num paralelo tragicômico, diria que o Brasil tem 120 milhões de espectadores de futebol e pouquíssimos jogadores decentes do mesmo esporte. Num paralelo patético-acadêmico, lembraria aos professores de Português quantos procuramos os cursos de Letras pensando alimentar uma vocação difusa para a Literatura, mas, de tanto ler as obras capitais e as resenhas fundamentais, encostamos a pena para ler mais e mais, desenvolvendo uma brutal auto-crítica, melhor dizendo, uma poderosa auto-censura que enferruja a pena – que enferruja o desejo.
Portanto, ler e escrever são esforços na direção do espelho – esforços diferentes. A pergunta de quem sou eu permanece. E o ato de escrever, como sabe quem faz diário, é outra forma de tentar responder.
Quem faz diário escreve para se afirmar, para se equilibrar frente aos desafios do dia – desafios propostos pelo outro, ou pela rua, ou mesmo por suas dúvidas mais íntimas. Escreve para se responder quem é. Ao fazê-lo, empresta uma forma a sentimentos confusos, e a partir de então descobre o que sentia, pois o gesto de escrever lhe disse.
Neste sentido, escrever tem a ver com mágica. Como fazer do papel um espelho, mas um espelho às nossas ordens. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais angustiado do que eu?” Ao escrever, me revelo – revelo a mim mesmo que posso organizar as palavrinhas, donde que posso organizar o que as palavrinhas nomeiam, e donde que posso organizar, construir, montar o mundo novo também. Revelo-me a extensão do meu poder, ou seja: a extensão dos meus possíveis. Em suma, a extensão da minha utopia.
O ato de escrever, antes de tudo, é um legítimo ato de auto-afirmação. E “auto-afirmação” não é coisa ruim, pejorativa, como dizem os que não gostam de ver os outros se afirmando. A afirmação de si mesmo é a primeira condição para responder à primeira pergunta. Quem não se afirma é o oprimido, é o submisso, o que encontra caído no chão à espera das ordens.”
(in: “Redação Inquieta”)
Publicado em: 25/02/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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