Minha relação com a escrita foi, desde sempre, marcada pela solidão. Quase poderia dizer: só escrevo por ser só. Ou melhor: se não tivesse conhecido a solidão, talvez nunca tivesse escrito uma linha. Desde muito cedo, me perdi no abismo da alteridade: aquele espaço, por vezes imenso, que separa um eu do outro — e que é tão maior quanto mais temos propensão à solidão. Há pessoas que jamais suspeitam que os outros com quem convivem possam ser diferentes das imagens que sedimentaram sobre eles; há outras que sempre souberam da precariedade destas mesmas imagens, que mais cegam do que elucidam…
Me lembro muito bem que foi preciso descer bem fundo no poço, chegar a uma deprê inaudita, para que eu me agarrasse à escrita. A metáfora é velha mas bem me serve: me lancei à escrita como um náufrago que se agarra a uma bóia. Eu, que na infância naveguei tranquilinho na caravelinha de Deus, ninado pelas ondinhas suaves dos contos-de-fada, vi o navio de todas as minhas certezas e crenças ir a pique; e só tive letras para construir uma tábua que me salvasse, que me pusesse a vagar, na vaga esperança desesperada de que me lançasse numa boa ilha…
A infância, quando se foi, não deixou o recinto de modo ordeiro e tranquilo — saiu como um beberrão ruidoso, cheio de ira, que quer derrubar a taberna depois de descobrir que os encantos prometidos não foram entregues, que era tudo propaganda enganosa… Talvez por isso me emocione tanto este lindo verso de um poeta francês: “Conhecemos a felicidade pelo barulho que ela faz ao sair”. Depois da infância, entrei na idade dos escombros. Até hoje, acho que a melhor coisa da adolescência é que ela acaba.
Se a solidão é um dos maiores impulsos que sinto me impelindo à pôr minha mente por escrito, é porque a solidão é inseparável de um certo “sentimento de desconhecimento” (meu velho conhecido!). Não sei se há palavra mais adequada pra isso, mas é a expressão que me ocorre para descrever aquela sensação, que talvez alguns de vocês já tenham conhecido, ao menos em certas ocasiões, de que quase todos ao nosso redor não nos conhecem direito. Uma sensação de que há profundidades escondidas em nossas “profundezas” que os olhos não penetram. Que há muito mais dentro de nós do que aquilo que falamos. Que cada ser é uma imensidão perto do pedacinho que se faz palavra e vêm à tona. Que o corpo é opaco, e que “dentro” dele, de certo modo escondido, ainda que seja escudado pelo crânio, posto detrás de peles e do tórax, encontra-se uma espécie de “ser verdadeiro” que jamais se manifesta quando nos olhamos no espelho, que jamais é visível aos olhos do corpo — talvez somente aos “olhos do espírito”…
Temo soar supersticioso falando em “espírito”, eu que me pretendo ateu e materialista. Friso que não acredito, de jeito nenhum, num “espírito” como o concebem as religiões: que subsiste à morte, que “habita” o corpo como um fantasma numa máquina, que fosse uma substância etérea e indestrutível que se evolará do cadáver e subirá ao Paraíso, se eu o merecer, ou será lançado nos fogos do Inferno, se não tiver sido um bom menino… Obviamente acho que este tipo de “espírito” não passa de lorota — uma consoladora invenção da imaginação humana em seu esforço milenar de negação da morte…
Mas, ainda que eu sustente que sou apenas um corpo, nada mais que um corpo, inteiramente perecível, que se desfará em átomos no momento da morte, cuja unidade estará para sempre perdida, ainda assim acho que há uma certa realidade na distinção entre “corpo” e “mente” ou “matéria” e “espírito”.
Claro que o cristianismo nos corrompeu fazendo deste dualismo um ponto de partida para uma pregação moral das mais pérfidas consequências, que condena tudo o que provem do “corpo” (donde a repressão sexual e o anátema contra todos os prazeres “da carne”), enquanto faz o elogio entusiasmado dos puros deleites do “espírito desencarnado”, capaz de lidar com as essências eternas e louvar puramente um Deus inocente, generoso e perfeito…
Mas, mesmo numa perspectiva materialista, há que se admitir: todo corpo tem uma interioridade. Todo corpo tem uma superfície e, por detrás desta, órgãos, moléculas, células, sinapses, reações químicas mil etc. Tudo ocorrendo de modo invisível a olho nu. Esta imensidão da interioridade do corpo é o que chamo de “espírito” — e que poderíamos chamar, também, de “mente”. Precisaríamos de palavras melhores, é claro: estas são muito feéricas, muito vagas — a elas falta carne.
Quando falo da solidão imensa que sentia e que procurei remediar com a escrita, falo desta sensação de uma interioridade pelos outros desconhecida — e que não têm modo de ser compartilhada a não ser através da linguagem. É o único meio. A gente não pode arrancar o coração do peito e jogá-lo sobre a mesa da cozinha, ao lado das panelas de arroz e dos copos de refrigerante, para que os outros o vejam e com ele se familiarizem. Nem pode-se emprestar o nosso cérebro para outrem, que o inseriria em seu crânio por um tempo, podendo sentir na pele a nossa experiência de mundo.
O corpo é jaula (“My body is a cage”, canta o Arcade Fire). E a invenção da linguagem, um jailbreak.
Pra mim, uma dos mais comoventes descobertas da psicanálise foi esta: as pessoas ficam doentes por excesso de silêncio. Ou seja: por falta de verbalização de suas interioridades. Que revolução mais curiosa na história da medicina se deu quando Freud e Breuer começaram a trazer a cura a pessoas imunes a qualquer tipo de medicamento somente pela via da conversa… Tanto que Anna O, nos primórdios da psicanálise, deu à ela um apelido clássico, inesquecível: talking cure. Há doenças cuja cura consiste basicamente nisto: na fala do doente, quando esta é acolhida por um outro receptivo, atento e bem-disposto.
O duro é essa segunda parte. É muito fácil perceber que a sanidade psíquica depende da verbalização da interioridade; o difícil, concretamente, é a conquista da escuta. Pois os homens não sabem se escutar — a história humana, mais repleta de guerras, rixas e balbúrdias do que de séculos de fraternidade e harmonia, o prova. Somos, em larga medida, surdos uns aos outros, só ouvindo o som que faz nossa própria umbigolítica barriga.
Fomos inventando aos poucos as relações sociais capazes de gerar diálogo, troca, partilha, escuta —- e elas ainda são precárias e inacessíveis a milhões. Do confessionário ao divã, a evolução foi grande. O crente que ia confessar-se a seu padre, na verdade, não verbalizava inteiramente sua interioridade, mas fazia apenas uma espécie de “inventário de seus pecados”, reais ou imaginados. E esperava da figura-de-poder a quem confidenciava estas suas sujeiras uma punição e uma garantia de perdão. Como num comércio no mercado negro, deixava-se na orelha do padreco uns 3 ou 4 pecadilhos, levava-se para casa a lição-de-casa duns 30 ou 60 pais-nossos, e de troco o devoto levava a certeza de estar de bem com os entes divinos…
(Não conheço nenhum pensador ou psicanalista que tenha refletido sobre o fenômeno do “confessionário” como uma espécie de cabine precursora do divã psicanalítico — fica aí a sugestão de um caminho interessante a ser seguido…)
O divã psicanalítico obviamente foi um baita salto avante. A pessoa — desde que fosse doente ou rica o bastante para poder passar por este processo — podia verbalizar “livremente” sua interioridade frente à escuta atenta do analista. Pus “livremente” entre aspas pois sabemos bem que não é fácil assim ir soltando a linguinha frente a um desconhecido, revelando a ele segredos que resguardamos até dos entes mais próximos. E não é incomum que pessoas que procuram uma psicanálise tenham “travas linguísticas”, dificuldades de colocarem em palavras aquilo que sentem. Mas ali, ao menos, não se tratava de confessar pecados a um padre investido do poder de punir e redimir, mas sim de compartilhar com um médico informações destinadas a trazer alívio mental e resolução de conflitos neuróticos. É um avanço, em especial se pensarmos que o analista é convidado a deixar de lado todos os seus preconceitos, fobias, juízos de valor, repulsas e simpatias para ouvir, com o máximo de “neutralidade” possível, aquele outro que vem a ele, dolorido por dentro, precisando de ajuda.
O problema é que aí também trata-se de uma relação que está sob um mau signo: o de um serviço. O psicanalista é alguém que oferece um serviço a um paciente. E cobra um preço por ele. E este serviço é realizado durante um certo tempo muito preciso – por exemplo, uma sessão de 50 minutos toda quinta-feira. E às vezes gostaríamos de desabafar por 4 horas num domingo à noite… E, se ligássemos para o nosso analista, ele provavelmente não nos atenderia, ou nos diria correndo que esperássemos a “hora certa”, ou então cortaria os laços, alegando que a “transferência” havia atingido graus perigosos…
Talvez por isso não haja nada — nem a religião, nem a psicanálise, nem a política — que seja capaz de solucionar de modo tão satisfatório a chaga da solidão humana quanto o amor e a amizade.
Quando se ama de verdade, e esse amor gera como seu espontâneo fruto uma intensa experiência de partilha, a nossa interioridade sente-se não só conhecida pelo outro, mas aceita e acolhida. Há escuta mútua, ainda que alternada, em que cada um vai enchendo-se do outro — e assim se plenificando. O abismo da alteridade dá lugar ao mútuo reconhecimento. O anonimato em meio à multidão cede espaço à companhia plena. É o que tanto se procura, sobre o nome de “intimidade”, e tão raro se encontra… Pois o amor “brilha mais por sua ausência” — mais desejado do que vivido, é para muitos mais uma busca que uma realidade, mais uma saudade do que um suprimento…
Se a solidão me impelia à escrita, também me impelia à procura de um amor — e estes dois caminhos são menos estranhos um ao outro do que talvez aparente. Tanto a escrita quanto o amor eram os barquinhos (no começo tão mau construídos! Tão melhores conforme foi passando o tempo!) que eu tentei usar para escapulir de minha ilha, deserta ilha… Era tudo jornada dorida atrás de cura pra solidão. E me vem uma grande alegria, que eu quase tenho coragem de chamar de felicidade, quando penso que consegui por vezes aportar em outras ilhas, para muitas belas festas, me achando em boníssimas companhias, que me deixaram com o doce sabor de sentir que minhas pontes construídas serviram para frutíferas partilhas…
Publicado em: 26/02/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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