Emicida pôs o dedo na ferida, sondou o nó nevrálgico do problema: a Ditadura não tem noite de estréia, nem anúncio publicitário no telejornal que nos prepare para o dia de sua vinda. “Vai achando que ditadura é tipo horário de verão que tem comercial avisando a hora que começa, vai…”. As barbáries pretéritas podem retornar como um bumerangue. Seria ingênuo e falacioso acreditar na História como progresso automático rumo ao melhor. Além disso, as Ditaduras Possíveis do Porvir não serão previamente anunciadas, avisadas aos cidadãos com a antecedência com que nos alertam sobre os temporais e as frentes-frias na previsão do tempo.
O rapper foi direto ao ponto: hoje em dia, a Ditadura viria sem travestida de Democracia, fazendo pose de Constitucionalista, e teria entre suas hordas de defensores aqueles que enxergam em Moro um juiz-herói ou em Bolsonaro um mito. Diante da nova encarnação dos golpes de Estado latino-americanos – vide os casos Honduras, Paraguai e Brasil – temos que perceber que se tratam de novas roupas para vestir o velho rei. Táticas novas para instaurar o mesmo reinado da espoliação brutal das classes trabalhadoras por minúsculas elites aferradas a seus privilégios, subservientes ao capital financeiro internacional e dispostas a sacrificar toda a soberania nacional.
A Ditadura, hoje, viria na calada da noite, com complacência e cumplicidade das grandes empresas midiáticas, vestindo a máscara enganosa da Democracia, aos aplausos dos “Cidadãos de Bem”, com comemorações nos bancos e nas bolsas de valores… Talvez ela esteja entre nós, ainda que muitos de nós ainda não se tenham dado conta?
Não nos esqueçamos de que O Globo, em 01º de Abril de 1964, celebrou o Golpe de Estado que derrubou o governo Jango com manchetes garrafais que diziam “Ressurge a Democracia!” Hoje, há quem seja acéfalo o bastante para engular a falácia de que a prisão de Lula liquidou de vez com a corrupção monstruosa através da qual o lulopetismo infectou o Estado Brasileiro… São lorotas já devidamente aniquiladas pelas críticas, por exemplo, de Jessé de Souza, que demonstrou que a corrupção jamais foi o problema de um partido político específico, e que os principais agentes corruptores são empresários em conluio com agentes do Estado vendíveis. Chega a ser ridículo pintar um retrato do país que postula que, com Lula em cana, podemos viver felizes para sempre em um país livre de corrupção (com Aécio no Senado, Temer na Presidência, o Tucanato paulista gozando de toda a impunidade? etc.).
Há quem queira nos convencer de que, com Lula preso e impedido de disputar as eleições, devemos acompanhar o “apagão midiático” sobre este cárcere político e simplesmente sermos as ovelhas resignadas da cumplicidade com os golpistas. Pararíamos de falar em “golpe” e aceitaríamos o destino imposto pelos vencedores. Não sabem eles que todo triunfo é precário, e que os derrotados de hoje podem vencer amanhã? Ficaríamos quietinhos deixando que eles decidam em quem nós podemos votar: eles vão preparar previamente o cardápio, e nos deixarão a liberdade de escolher com que molho seremos cozidos.
Querem que acreditemos na legitimidade do pleito de Outubro, quando o cidadão que lidera as pesquisas de intenção de voto, e provavelmente seria eleito no primeiro turno, foi aprisionado após um processo judicial fraudulento e sem ter respeito seu direito a novos recursos judiciais, em flagrante descumprimento da Constituição de 1988? Querem que acatemos a máscara democrática com que se traveste, para tentar se sacramentar com algumas fiapas de apoio da soberania popular, aquele regime podre e farsesco, proto-ditatorial e de propensão fascista, nascido do impeachment das pedaladas?
Em seu artigo para a Revista Cult, Marcio Sotelo Felippe lembrou de uma boa tirada de Baudelaire: “o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe.”
“O objetivo do golpe, derrubar a presidenta, aniquilar um partido político e sua maior liderança política para que não voltasse ao poder, foi avançando passo a passo nessa anomia constitucional. Moro violou a proteção constitucional do sigilo das comunicações entregando a uma rede de televisão a conversa de dois presidentes da República, sob o olhar complacente e omisso do STF.
O impeachment, que em toda nossa tradição jurídica e constitucional exigia um crime de responsabilidade, foi transformado em uma espécie de voto de desconfiança que só existe no parlamentarismo, igualmente sob o olhar complacente e omisso do STF. A própria Corte, por fim, autorizou a prisão de Lula negando-lhe o habeas corpus mediante uma interpretação esdrúxula da presunção de inocência, mas de acordo com o “princípio da colegialidade” que, claro, como todo o mundo civilizado sabe, se sobrepõe ao princípio da liberdade.
Esse quadro mostra simplesmente a categoria ditadura, embora sob nova forma. Concentração do poder e ausência de limites constitucionais…
A perspectiva de Pedro Estevam Serrano também vê o estado de exceção, embora não o identifique como permanente. Mas acrescenta um ingrediente largamente utilizado no atual processo político e social brasileiro e, a rigor, clássico do fascismo: a construção do inimigo interno. De fato, o reacionarismo, ou por vezes o filofascismo da classe média acolheu amplamente em seu imaginário a criminalização e a desumanização da esquerda.
Essa ditadura de novo tipo é a forma política do neoliberalismo. A captura integral do Estado pelo mercado. A categoria do político tem que ser diluída para ampliar e acelerar a acumulação. Nesse contexto, diluir o político significa expulsar do cenário político e social os que defendem direitos e as políticas de bem-estar social que podem retirar da miséria milhões de brasileiros.
Lula decidiu se entregar e ao fazê-lo agiu como se tudo não passasse de uma contingência a ser resolvida juridicamente pelos bons juízes que ainda há em Berlim. Escreveu uma carta no 1º. de maio afirmando que vivemos em uma democracia incompleta. O que estamos vivendo desde 2016 não é uma democracia incompleta. É uma ditadura completa. Como disse Baudelaire, o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe.
O que vai tirar Lula da cadeia é a luta de classes, a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais. E a arena da luta de classes não é o parlamento, a sala do pleno do STF ou o gabinete do Moro. É a rua.” – REVISTA CULT
Poderíamos dizer também que o truque mais esperto dos golpistas é convencer-nos de que não houve golpe e que seguimos vivendo numa democracia.
Alguém duvida que, em 2018, numa perversa repetição do nosso pior passado, haja setores da sociedade brasileira que, a cada amputação de direitos cívicos duramente conquistadas, celebra a Vitória da Ordem e do Progresso contra a “subversão comunista”, ou melhor, contra o “bolivarianismo petista”?
Com plena “liberdade de linchamento”, como representou bem em sua arte o Vitor Teixeira, a mídia corporativa brasileira já vem exercendo uma espécie de Ditadura Midiática, perfeitamente impune, que incluiu até aquela capa da VEJA na qual, na vermelhidão que remetia a um mar de sangue, a revista pôs Lula, decapitado como um novo Lampião. O cárcere de hoje não seria possível sem os massacres midiáticos de ontem. Esta mesma mídia é a responsável por pôr a máscara da Democracia sobre o lobo devorador alimentado pelas nossas Elites do Atraso.
Vencedor do Prêmio Jabuti de 2016, o livro “A Resistência”, de Julián Fúks (Companhia das Letras), é uma das obras na literatura latino-americana que melhor pensou este tema da resiliência e continuidade de poderes ditatoriais. Nele, o narrador em primeira pessoa relembra de sua infância e juventude enquanto filho de psicanalistas que estavam na resistência à ditadura, reflete sobre as vivências de seu irmão adotivo, relembra desaparecidos políticos cujos cadáveres nunca foram encontrados (tanto no Brasil quanto na Argentina), relata visitas às mulheres ativistas de Buenos Aires (as Madres de La Plaza de Mayo).
No capítulo 25 de “A Resistência”, Fúks conta a história pungente de uma certa Marta Brea (personagem fictícia, mas que exprime vários destinos reais): “Vítima do terrorismo de Estado da ditadura civil-militar, jovem psicóloga cujos restos agora identificados ratificavam seu assassinato em 1º de junho de 1977, 60 dias depois de seu sequestro no hospital.” Quando fica sabendo desta vida cruelmente abreviada, o narrador reflete sobre “a atrocidade de um regime que mata e que, além de matar, aniquila os que cercam suas vítimas imediatas, em círculos infinitos de outras vítimas ignoradas, lutos obstruídos, histórias não contadas – a atrocidade de um regime que mata também a morte dos assassinados.” (FÙKS, op cit, p. 78)
A certo ponto de sua campanha de rememoração, o narrador Sebástian pára e pondera sobre o ato de sondar o passado:
“A quem, é o que pergunto, quem se interessaria hoje por tão mesquinhos meandros de um tempo distante, e a resposta que meu pai repete é uma absurda mescla de devaneio e lucidez: as ditaduras podem voltar, você deveria saber. As ditaduras podem voltar, eu sei, e sei que seus arbítrios, suas opressões, seus sofrimentos, existem das mais diversas maneiras, nos mais diversos regimes, mesmo quando uma horda de cidadãos marcha às urnas bienalmente…” (FÚKS: Cia das Letras, 2015, pg. 40)
É esta noção de “as ditaduras podem voltar”, ainda que mascaradas, “mesmo quando uma horda de cidadãos marcha às urnas bienalmente”, que ganha nova força no Brasil de 2018. Inúmeros juristas, filósofos e pensadores vem dizendo que estamos a caminho de um Outubro onde a legitimidade do processo eleitoral está, para dizer o mínimo, comprometida: Pedro Serrano considera a condenação e prisão de Lula um ato ilegal, anti-constitucional, mais um sinal do que Rubens Casara, em seu livro, chamou de “Estado Pós-Democrático”.
Já o cientista político e professor da UnB, Luis Felipe Miguel, diz que não há chance de nascer qualquer governo legítimo de uma eleição com esta feição:”Ao impedir por um ato de força que Lula concorra às eleições de 2018, o que se faz é afirmar que a autoridade política deve se desgarrar de qualquer referência à vontade popular. Foi o que ocorreu, já, com a deposição inconstitucional de uma presidenta e a imposição, sem qualquer esforços significativo de convencimento, de medidas rejeitadas pela ampla maioria dos cidadãos. Não se trata, no entanto, de um passo banal. É um agravamento importante da fratura da democracia brasileira ocorrida em 2016: a realização de uma eleição carente da possibilidade de revestir de legitimidade o governo que dela sairá.”
Vladimir Safatle tem dito inclusive que não haverá eleição em 2018, uma manifestação que foi alvo de muitas críticas (como aquelas de Moysés Pinto Neto, que o acusou de irresponsável e disse que Safatle tem que ser mais cuidadoso com a potência performativa de sua linguagem). Ora, sou da opinião de que a frase “não haverá eleição em 2018” não deve ser tomada literalmente, pois Safatle está usando de uma pitada de ironia, como esclarece em sua entrevista ao RFI: “A gente criou essa figura: eleição sem eleição. (…) Uma eleição no interior da qual você tira os candidatos que vão contra o interesse de quem ‘deve’ ganhar”.
Pode até ser que se realize um certo rito eleitoral, de fachada, mas uma eleição de verdade só ocorreria através de autêntica consulta, via sufrágio universal, da vontade majoritária daquela instância da qual emana o poder na democracia representativa: o povo soberano. Ora, quando forças da cúpula social armam fraudes políticas-judiciais-midíaticas para tirar do pleito, através de uma lawfare de Estado de Exceção, condenando sem provas (mas com muitas convicções) o candidato do Partido dos Trabalhadores, líder disparado das intenções de voto, não há modo de considerar o processo eleitoral como legítimo. É uma farsa e uma continuação do golpe de Estado (parlamentar-jurídico-midiático) que enxotou Dilma do poder em 2016. Sem Lula, não acontecerão eleições, mas um simulacro pífio delas. Um simulacro em que só nos será concedida a escolha entre o molho com o qual seremos devorados pelas cúpulas que hoje nos desgovernam.
Não se trata de se resignar, mas de resistir à intrusão ditatorial na política brasileira. Esta resistência, para ser encarnada, passa pela lúcida compreensão de que a ditadura hoje se esconde por detrás da fachada da democracia liberal-burguesa. É uma Ditadura que não se confessa, mas que segue praticando o terrorismo de Estado – não apenas em seu modus operandi tradicional, ou seja, praticando genocídios contra “pretos, pobres e periféricos”, os párias do capitalismo excludente.
Hoje, a pseudo-Democracia brasileira tem um STF acovardado por tweet de Chefe de Exército; tem intervenção militar no RJ, ordenada por Temer, sendo chamada de “laboratório”; tem um ex-militar de opiniões racistas, misóginas, xenófobas, além de apologista da tortura, sendo considerado “mito” por um exército de acéfalos Bolsominions; tem de múmias de toga como Moro e Dallagnol, cruentos defensores dos interesses das elites empresariais e do imperialismo gringo, que usam de suas convicções (mesmo na falta de evidências) para cometer atentados judiciais (o que é o significado do estrangeirismo “lawfare”) que não são contra Lula, como o indivíduo, são contra a soberania popular, o sufrágio universal, o direito de todo cidadão a julgamento legítimo, presunção de inocência e candidatura a cargo público.
A Ditadura não tem mesmo data de estréia… Talvez a première já tenha acontecido e muitos ainda nem perceberam?
Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro || Goiânia, Maio de 2018
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Publicado em: 08/05/18
De autoria: casadevidro247
Técnicas golpistas do prostíbulo judicial do “cidadão de bem”
> https://gustavohorta.wordpress.com/2018/05/08/tecnicas-golpistas-do-prostibulo-judicial-do-cidadao-de-bem/
… …Em “nome da lei” e da “ordem” crucificaram Jesus, fizeram a Inquisição e o Holocausto, deram golpes de Estado, perseguiram, torturaram e mataram.
E sempre apareciam analfabetos políticos, que se autointitulavam “cidadãos de bem”, para aplaudir as mais cruéis e insanas barbaridades. … …
Técnicas golpistas do prostíbulo judicial do “cidadão de bem”
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… …Em “nome da lei” e da “ordem” crucificaram Jesus, fizeram a Inquisição e o Holocausto, deram golpes de Estado, perseguiram, torturaram e mataram.
E sempre apareciam analfabetos políticos, que se autointitulavam “cidadãos de bem”, para aplaudir as mais cruéis e insanas barbaridades. … …
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Técnicas golpistas do prostíbulo judicial do “cidadão de bem”
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E sempre apareciam analfabetos políticos, que se autointitulavam “cidadãos de bem”, para aplaudir as mais cruéis e insanas barbaridades. … …
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Comentou em 08/05/18