“O compêndio central do espírito de Servidão são os escritos socráticos. Neles o Patriarcado constrói sua sofística triunfal. Precisamos atentar em tudo que precedeu e marcou tanto a vida como a morte de Sócrates, para se ter o exato sentido da sua atuação reacionária e da sua militante impostura patriarcalista. Ele se coloca exatamente no pórtico daqueles tempos novos anunciados por Minerva, no final da Oréstia de Ésquilo. (…) Contra o politeísmo, ele lança o Deus único. Contra o sentido precário da vida de Heráclito, ele lança a imortalidade da alma. Contra a visão conflitual do mundo de Empédocles, lança a imutabilidade do Bem. (…) Sócrates representa a perda do caráter lúdico no homem evoluído. Para suportar a morte prega a ideia salvacionista da sobrevivência. (…) O Messianismo que brota de suas convicções imortalistas e que depois a figura do Cristo centralizaria, vem dar alimento interior às populações proletárias que iniciam, nas bordas do Egeu, a marcha técnica do homem.” OSWALD DE ANDRADE (2000, pgs. 160-162)
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
OSWALD DE ANDRADE (1890 – 1954) escreveu um dos mais contundentes livros do pensamento crítico já paridos em terra brasilis com Utopia Antropofágica (Ed. Globo, 2000). Destaco aqui a impiedosa (e ímpia) crítica que o autor do Manifesto Antropófago dirige ao “socratismo” e seu legado para toda a cultura ocidental.
Alguns podem achar que Sócrates já foi usado como saco-de-pancadas o suficiente por Nietzsche, e que não há ninguém que supere o bigodudo na artilharia pesada que lançou contra o cara que Atenas condenou a beber a cicuta. Mas encontramos no Brasil, na obra oswaldiana, outro autor de imensa verve grandesa que soltou os cachorros raivosos pra cima do porta-voz do platonismo: Oswald de Andrade sustenta que a “moral socrática era a oposição individualista ao ciclo dionisíaco que a precedera” (pg. 78). O “conhece-te a ti mesmo” tão valorizado e pregado por Sócrates acabaria, pra começo de conversa, gerando sujeitinhos fechados-em-si-mesmos, como se a única coisa digna de se conhecer fossem seus queridos euzinhos.
Essa tendência se mostra muito forte, por exemplo, numa auto-biografia que cheira de cabo a rabo à socratismo: as Confissões, de Rousseau, texto todo impregnado pelo platonismo, até mesmo nas narrações que faz Jean-Jacques de seus amores imaginários por donzelas de fantasia, suas Dulcinéias del Toboso. Há aqueles – e são muitos – que nunca sequer suspeitaram que o idealismo possa ser uma servidão… a estes é recomendável a leitura atenta de Oswald, que soube questionar a fundo estas éticas que dizem ao homem para adorar idéias ao invés de realidades!
“Ao milenário comício da Servidão, devia comparecer, empoeirado e hirsuto, Sócrates…”, narra Oswald. Sócrates emerge como figura histórica “depois da derrota do Peloponeso” e torna-se conhecido por teses como as seguintes, que ele prega no célebre texto de Platão, O Banquete: “O amor a Vênus somente inspira ações baixas; é o amor que reina entre a gente mais comum, que amam… dando preferência ao corpo sobre a alma.”
Se olharmos para estas palavras com um faro treinado na escola de Whilhelm Reich, veremos que aí se escancara o elemento de repressão sexual típico daquele caráter “encouraçado” e autoritário que domina tão inconteste nos cumes políticos e eclesiásticos do Patriarcado.
Sócrates cospe sobre o “povinho” que ama com o corpo: seu olhar é condenatório do erotismo, como se quisesse lançar a culpa sobre as delícias gozadas pelos amantes nus. Ah, e como não teria uma gigantesca estrada ainda a trilhar, a Culpa, quando o Cristianismo se apossasse dela e espalhasse esta ética socrático-platônica aos sete cantos do Romano Império.
Quando disse que Rousseau havia derramado altas doses de platonismo em suas Confissões, pensava também nas palavras que Jean-Jacques dedica ao que ele chama de “pederastas e mulheres perdidas”. Pra encurtar uma longa estória, o que Jean-Jacques Rousseau diz uma papagueação do que Sócrates dizia, com o adicional de que insere de este adiciona uma pitadinha de homofobia. Rousseau só sente “horror” e “indignação” por aqueles que se entregam a “amores de concupiscência”, a luxúrias e libertinagens…
Quanto ao repressor sexual Sócrates, segundo Oswald de Andrade, ele não apanhou o suficiente em A Origem da Tragédia e ainda carece de ser mais malhado, desconstruído e criticado. Nele falaria, segundo Oswald, “o Patriarcado” – “com seu ódio de classe, com seu desprezo insultuoso pelo povo, pelo comum das gentes” (OSWALD, idem, p. 157). “Nietzsche, com a bravura de seu gênio, não fustigou suficientemente este puritano fescenino das ruas empoeiradas da Atenas do V século. Mas soube perfeitamente vê-lo, como também viu Jaeger, como o responsável pela “petrificação intelectualista da filosofia” (idem, p. 157).
Como se sabe, Sócrates era partidário da censura: os poetas deviam ser exilados da cidade, e seus livros ter a circulação proibida, caso ousassem dizer coisas “más”. Más segundo a ética socrática, é claro. “Funciona aí o primeiro DIP” (p. 158), dispara Oswald, fazendo referência ao Departamento de Imprensa e Propaganda do regime ditatorial varguista. E esse Bem que Sócrates nos quer adorando não seria bem assemelhado ao Deus de todos os monoteísmos, mas em especial o Deus dos católicos? “Fabrica ele aí o Senhor Onipotente que, durante mais de dois milênios, vai sancionar os abusos da força e afagar as injustiças de classe. Está criada a autoridade sacerdotal e com ela o pedestal de todo conservantismo, de todo anti-progresso, de todo farisaísmo social e político.” (p. 158)
Quando analisa outro texto clássico de Platão, o Fédon, que traz Sócrates como protagonista de um “terrível drama íntimo” na prisão de Atenas, Oswald de Andrade destaca a condição do Sócrates de carne-e-osso, com mais de 70 anos de idade, “parasita perene das casas ricas de Atenas” (p. 162), tendo que escolher entre a fuga ou a cicuta. Os discípulos até arranjam os planos para que o mestre se evada da penitenciária, que vaze de Atenas, mas ele se recusa a partir. Para não repetir os minuciosos detalhes que I. Stone agregou em seu estudo O Julgamento de Sócrates, pulo já para o que Oswald diz sobre a “psicologia” socrática neste momento onde a morte está, por assim dizer, mordiscando seus calcanhares. “Sócrates desenvolve um terrível monólogo para se convencer, mais que aos outros, da existência da alma imortal. (…) A cartilha do resignado desenvolve-se completa nessa hora agônica.” (162)
Sócrates teria chegado, nestas horas fatais de sua agonia, a conclusões evidentemente determinadas por suas angústias, por seu desconsolo: é a filosofia de um condenado à morte que se recusa a admitir a idéia de que a morte o destruirá por completo. É Ernest Becker, com sua síntese ousada de Otto Rank e Norman Brown, quem explica: em Sócrates, a negação da morte se faz pensadora, teóloga e criadora de valores. O que Sócrates prega é que “há alguma coisa reservada para depois desta vida, onde os bons serão melhor tratados do que os maus. Deve o filósofo morrer na esperança de que gozará depois da morte bens infinitos. O corpo é uma corrupção. O que interessa é a alma. Livres da loucura do corpo, só assim conheceremos a verdade.” (Oswald, p. 162)
Sócrates convence a si mesmo de que é a verdade objetiva coincide com perfeição, com uma chave numa fechadura, com seus desejos íntimos: ele crê que “pertence ao número dos eleitos, confia na vontade de Deus. (…) Os que sempre exerceram a temperança e a justiça vão para um lugar agradável e por isso ele não julga uma desgraça a situação de condenado à morte em que se encontra. (…) Com a morte, o que há de mortal no homem perece, o que há de imortal se retira para ser julgado e receber o bem ou o mal que mereceu. Desde que tenha bebido a cicuta, irá gozar a felicidade dos bem-aventurados. E se fez esse longo discurso, não foi só para consolo dos amigos, foi também para seu próprio consolo.” (p. 163)
Haveríamos de pagar caro pelas doutrinas imortalistas inventadas por Sócrates, à beira da morte, em seu afã de negar a “indesejada das gentes” (como a chamava Manuel Bandeira). Logo o Patriarcado imporá “a ascese, a pregação da castidade e do celibato” (p. 164). Começamos a entender melhor porque Oswald de Andrade considera o socratismo uma espécie de “Cartilha do Resignado”. Mas este termo não é suficientemente satírico, então Oswald prefere aprofundar um pouco mais a alfinetada: lembra-nos dos sistemas escravocratas vigentes na Antiguidade greco-romana, defendidos com muita retórica pelo próprio Aristóteles, preceptor de Alexandre o Grande, em sua Política.
O Senhor Único postulado nos Céus exigia um Senhor único, seu representante, reinando na Terra: seja bem-vindo ao Absolutismo e a uma das mais perversas falácias da História humana, a tese do “direito divino dos Reis”! Ora, mas o próprio Nietzsche não diz que o Cristianismo, longe de ter nascido do lado dos “senhores”, é uma “religião de escravos”? De fato, em sua descrição do cristianismo Oswald de Andrade lembra que “o escravo só podia existir na condição miserável a que estava reduzido com a esperança messiânica da outra vida. Daí o êxito do Cristianismo no desenvolvimento proletário de Roma. Alimenta-se ele da depressão espiritual do trabalhador.” (p. 164)
“O cristianismo trazia da Judeia um sopro revolucionário que tivera seu ponto de origem no sacrifício de Cristo – mais um messias em revolta contra a Roma imperial – e no sentimento órfico em disponibilidade, que foi preenchido pela metafísica pauliniana. (…) Essa esperança encheu de mártires o Império. E há quem atribua a Clemente de Alexandria uma espécie de estorno ideológico pelo qual fez passar o local do justiçamento, da terra para o céu. Era na outra vida que seriam julgados os homens.” (p. 260)
Oswald de Andrade um dia perguntou a um amigo: “Você seria católico se tivesse nascido na Índia?” A provocadora questão de Oswald se assemelha a uma bem mais antiga, posta pelo grande Montaigne em seus Ensaios, em que ele refletia: um cristão francês só é cristão pelo acidente geográfico de ter nascido na França cristã; tivesse ele nascido em outra latitude, e poderia muito bem tornar-se um chinês adorador de Buda ou um soviético ateu que só crê no materialismo histórico. Quando os holandeses invadem o Brasil, o “tremendo orador sacro” Vieira solta esta pérola: “É possível que diga o herege que Deus é holandês?” Pois é verdade absoluta, todo mundo sabe, que Deus não só é brasileiro, como nasceu em Belém do Pará…
O que está em jogo aí é um ponto crucial: decidir se as religiões que as pessoas seguem são produto da ação da cultura, inteiramente dependentes do ensino e da “catequese”, ou se o homem já “nasce religioso”. Sou partidário confesso da tese de que absolutamente todos os seres humanos nascem ateus. Ninguém nasce crente: crente se torna. E sem a doutrinação ideológica dos adultos, que criança creria naquele Deus raivoso, ressentido e punidor dos Evangelhos? Este livro, aliás, que Oswald diz que poderia ser chamado de “A Cartilha do Escravo Perfeito”. Esta Cartilha Sagrada ensina àquele que sofre sob o jugo da servidão a se conformar com sua sina, a carregar resignado sua cruz, certo de que no Outro mundo será vingado e gozará das bem-aventuranças paradisíacas…
Um escravo com fé revolta-se bem menos do que um escravo incréu: isso admito. Não é de suspeitar que a fé do escravo seja um dispositivo ideológico instalado em sua mente pela lábia interesseira dos Senhores? A Genealogia da Moral de Nietzsche é uma obra abismal, que nos lança a esta turbulenta reflexão sobre o passado religioso da Humanidade, de que alguns tentam se orgulhar como se fosse a maior das maravilhas. Em seu tenaz apego aos auto-enganos que acariciam o ego, as religiões vendem de si mesmas a ideia de que são o máximo, as defensoras do Bem, do Justo, do Correto. No entanto, o único tribunal onde a Religião pode ser legitimamente julgado é o Tribunal da História, e todos sabemos o quão repleta está a História Religiosa da Humanidade de massacres, guerras sectárias, atentados terroristas, Inquisições e Cruzadas, epidemias de pedofilia e psicose…
O povo judeu, ao auto-proclamar-se o “povo eleito”, ao mesmo tempo inventou as impactantes consequências deste dogma: os outros povos não serão salvos. Nem mesmo merecem. O resto da humanidade… é resto! Esta atitude extremamente arrogante dos judeus é inclusive uma das razões que explica o fenômeno do anti-semitismo, como tão bem mostra Hannah Arendt em seu As Origens do Totalitarismo. Ela coincide, neste diagnóstico, com muitas das percepções do sábio judeu-excomungado Baruch de Espinosa, expelido da seita judaica de Amsterdam por ousar esmiuçar as entranhas da Psicologia dos judeus, que aparecem sobre uma luz não muito favorável no Tratado Teológico-Político. Os judeus, com esta atitude “nós somos os tais”, despertaram muita hostilidade em outros povos e seitas que querem ser eles “os tais”. O sectarismo é esta ridícula batalha de pavões para ver quem é melhor que o Outro – ou melhor, o preferido dos Deuses. Digladiam-se e se matam pois o narcisismo de cada um não suporta a ideia de não ser o Queridinho do Criador.
Uma das novidades trazidas pelo Cristianismo, sugere Oswald de Andrade, seria a “mística pauliniana” segundo a qual “o indivíduo é que passa a ser o eleito e não o povo” (A Utopia Antropogáfica, p. 275). Mas só se salvará o indivíduo que entregar-se ao Cristo – logo, condenação certa para os que preferem andar de mãos dadas com o fantasma de Buda, Moisés, Maomé, Zaratustra ou Inri Cristo. A “cartilha do resignado” promete que no além-túmulo os últimos serão os primeiros – o que significa que a fé é também um dispositivo narcísico que infecta colectividades com um sectarismo nefasto. Funciona mais ou menos assim: “Quem tá comigo, quem entra pra minha turma, esse vai pro Céu! Quem não entrar na minha, quem duvidar da minha verdade, quem crer em outra coisa, esse arderá nos Infernos!” Assim reza o murmúrio religioso e a ladainha enjoativa que por milênios encharcou de sangue o chão do planeta…
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Publicado em: 12/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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