“Doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. A fonte do mal, que se alastra pelo contágio do mimetismo, está detectada: as falsas crenças. O que move a ação curativa é o generoso sentimento de philia que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda — enquanto amor à sabedoria — em amor à humanidade. A ação do médico-filósofo ou do filósofo-médico — ressaltada desde Empédocles e Sócrates/Platão — não conhece, porém, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restrição quanto à escolha do paciente-discípulo: todos têm direito à cura, sem limitações sociais, econômicas, étnicas. Por isso, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: o remédio é oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e benefício são universais, acima das contingências de espaço e tempo. E sua preservação em pedra é justamente para que os pósteros — que “também são nossos” — dele possam usufruir.
Mas, afinal, que remédio é esse, capaz de livrar a humanidade de aflições e tormentos? O remédio é o logos filosófico enquanto portador da verdade aclaradora, o discurso enquanto phármakon, enquanto curativo porque discurso-razão que espanca as trevas das crendices, expulsando os males da alma. (…) A dupla natureza da proposta epicurista — aliar razão iluminadora e amor à humanidade, lúcida compreensão dos fenômenos naturais e procura da felicidade terrena, ciência e ética — justifica, em parte, a aparência de seita, o caráter de confraria assumido por essa corrente filosófica. Trata-se, porém, de confraria laica, centrada na valorização do humano, não na transcendência do divino; confraria de amigos da verdade alcançada pelos sentidos e pela razão; confraria que procura a salvação, sim, mas por meio do conhecimento, não da crença, por meio da filosofia enquanto compreensão clara e comprovável, não da adesão ao mistério, ao intelectual e empiricamente insondável. O preceito “deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade” é, por isso, uma de suas prescrições fundamentais.
O humanismo radical e o propósito de colocar a verdade a serviço da felicidade humana, a índole “iluminista” que induz ao combate de toda forma de obscurantismo e crendice, o projeto salvacionista alicerçado na ciência, a defesa do prazer com fundamento materialista fazem do epicurismo um modelo de pensamento capaz de sobreviver e ressurgir, mesmo parcialmente, no decorrer dos séculos. Essa vitalidade e esses ressurgimentos manifestam-se apesar do acirrado combate que, desde a Antiguidade, recebe de adversários — em particular estóicos e cristãos. Com efeito, idéias epicuristas reaparecem em Pierre Gassendi (1592-1655), crítico de Descartes e um dos fundadores do materialismo moderno. No início da Modernidade, também o materialismo mecanicista de Thomas Hobbes (1588-1679) remonta a Epicuro. Mais tarde, Lenin alia-se ao epicurismo ao polemizar com Hegel. Porém, é sobretudo Marx — o jovem Marx — que mais profundamente mergulha na filosofia do mestre grego, reinterpretando-a na tese com que pretende obter lugar de dozent em Bonn: Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro.
Das numerosas obras de Epicuro — Diógenes Laércio afirma que eram cerca de trezentos títulos — muito pouco se conservou. Chegaram até nós três cartas — uma a Pítocles, de autenticidade duvidosa e tratando de fenômenos celestes, outra a Heródoto, sobre física, e uma terceira a Meneceu, sobre ética —, além das chamadas Máximas principais, quarenta sentenças possivelmente extraídas de várias obras. A esse parco conjunto acrescentaram-se, em 1888, as 81 sentenças descobertas em manuscrito da Biblioteca do Vaticano, algumas porém reproduzindo textos já conhecidos.
Eis por que o poema Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), de Lucrécio, adquire tanta importância para o resgate das doutrinas epicuristas. Realmente, seria muito difícil reconstituir as idéias de Epicuro — o cisne —se não dispuséssemos da mediação que seu discípulo latino — a andorinha — realiza, sem pretender equiparar-se ao mestre grego, antes seguir, com apaixonada fidelidade, as pegadas que delineiam o percurso de seu pensamento.
Ao contrário do que se poderia supor, o hedonismo epicurista — que nos cantos filosóficos do cisne e nos voos poéticos da andorinha proclama o prazer como finalidade da vida humana — é uma doutrina defendida por homens que têm todos os motivos para desistir da felicidade e que, no entanto, afirmam: “Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz”. Epicuro e Lucrécio vivem vidas difíceis em tempos difíceis.
Epicuro nasce em 341 a.C, em Samos ou em Atenas, mas seguramente de família ateniense. Seu pai é modesto mestre-escola, a mãe uma espécie de rezadeira, que o menino às vezes acompanha quando ela exerce sua função. Assim, desde cedo, Epicuro pode verificar como as pessoas estão geralmente dominadas por temores e crendices. Aos catorze anos é mandado para Téos, onde passa a acompanhar as lições de Nausífanes, discípulo do atomista Demócrito de Abdera. O cosmos com todos os seres lhe é então apresentado como resultando de átomos que se movem desde sempre no vazio infinito e que se aglutinam segundo leis estritamente mecânicas, sem intervenção de qualquer finalismo. Pobre, migrante e com saúde extremamente frágil, Epicuro vive, a partir de 322 a.C, em diversas cidades da Ásia Menor, enquanto elabora sua filosofia: “menos um sistema de pensamento do que um sistema de vida”. Finalmente, em 306 a.C, vai para Atenas, onde funda sua escola filosófica, o Jardim, na verdade uma confraria ou comunidade que admite entre seus membros também mulheres e escravos.
Mostram os historiadores: Epicuro compra primeiro uma casa, em seguida adquire, a certa distância, um jardim. Da Casa passam a sair, abundantemente, livros, panfletos e cartas, enquanto no Jardim (Kepos) acomodam-se os discípulos que depois vão difundir a doutrina por toda parte, permanentemente alimentados, do ponto de vista doutrinário, por novos textos e pela freqüente correspondência. Cícero, inimigo do epicurismo, distorce intencionalmente os fatos ao dizer que se trata de “um jardim de prazer onde os discípulos enlanguesciam em gozos refinados”. Na verdade, o Kepos não é propriamente um parque (paradeisos), mas uma horta, útil para a alimentação frugal dos que ali se recolhem, em convivência amigável junto ao mestre e inteiramente apartados das questões e distúrbios da pólis.
Após uma vida marcada por ascetismo, serenidade e doçura, apesar da dolorosa doença — cálculo — que nunca lhe dá trégua, Epicuro morre em 271 a.C. Diógenes Laércio descreve assim sua morte: “Sentindo-se morrer, ele se fez colocar numa banhei-ra de bronze cheia de água quente e pediu um copo de vinho puro, que bebeu. Tendo exortado seus discípulos para que se lembrassem de suas lições, expirou”.
Pouco tempo antes, Epicuro escrevera a alguns discípulos, anunciando estar prestes a morrer. É o que se lê neste fragmento da Carta a Idomeneu: “Eu te escrevo neste dia feliz da minha vida em que me sinto próximo da morte. O mal prossegue seu curso na bexiga e no estômago e não perde nada de seu rigor. Mas, contra tudo isso, tenho alegria em meu coração, ao recordar minhas conversas contigo. Cuida dos filhos de Metrodoro: creio que posso contar com isso pela antiga devoção à minha pessoa e à filosofia.”
A cena descrita por Diógenes Laércio traz inevitavelmente à lembrança outra cena de morte, a morte de outro cisne: Sócrates, segundo o relato do Fédon de Platão. Ambos, Epicuro e Sócrates, morrem serenamente, como exemplos de mortes sábias ou de sabedoria até à morte. Ambos bebem antes de morrer: Sócrates a cicuta que o envenena, Epicuro o vinho puro que lhe oferece a última sensação de prazer.
Sócrates permanece tranqüilo porque, enquanto espera o momento final, tece argumentos que ampliam os horizontes da espera e a transformam em racionalização da esperança na sobrevivência da alma. Epicuro permanece imperturbável até o fim justamente pela certeza de que a morte não lhe diz respeito, pois, ao chegar, não o encontra: seu corpo e sua alma feitos de átomos retornaram ao jogo dos corpúsculos que se movem no vazio, eternamente. Sócrates, ao se despedir desta vida, parece saudar o deus da saúde (Asclé-pio), patrono da vitória da vida (da alma) sobre a morte (do corpo). Epicuro saúda com vinho não a vida futura, apenas provável, mas pelas alegrias e prazeres nela saboreados.”
Leia o artigo completo de José Américo Pessanha (PDF)
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Publicado em: 21/05/15
De autoria: casadevidro247
Sensacional, ainda que ache a amizade algo divino.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
marielfernandes
Comentou em 21/05/15