A seca da Cantareira, infelizmente, é só o começo de um problemão que enfrentaremos, planeta afora, pelas próximas décadas: um relatório recente do Global Humanitarian Forum, chamado “Anatomy of a Silent Crisis” (Genebra, 2009), estima que hoje já são cerca de 325 milhões de pessoas afetadas diretamente pelo aquecimento global e que o número de mortes já é de mais de 500.000 todos os anos (1). É o mesmo número de mulheres que falecem anualmente por causa do câncer-de-mama (2). O caso de São Paulo é apenas uma das manifestações de uma crise global, que atualmente também devasta, por exemplo, o estado da Califórnia com a pior seca de sua história (3).
Em seu brilhante livro “The Value of Nothing”, Raj Patel – celebrado por Naomi Klein como um pensador essencial “para quem está faminto por um mundo mais justo” – estabelece o link entre a atual crise climática, que agrava-se a cada dia, e a história do colonialismo imposto pelos poderes capitalistas ocidentais, estes que há séculos impõe seus Impérios escravocratas, exploratórios e etnocidas lá onde não foram chamados. Estes poderes que se especializaram no genocídio de populações nativas, e no roubo em larga escala de recursos naturais, em nosso século 21 seguem agindo com métodos extrativistas ecocidas e índices obscenos de emissões tóxicas:
“A maioria das mortes que vão resultar das mudanças climáticas”, pondera Raj Patel, “irão ocorrer entre aqueles que são os menos responsáveis por causar a poluição, pessoas cujos países foram colonizados pelos mesmos poderes que causaram esta nova catástrofe.” (3)
Como seremos capazes de alimentar as 9 bilhões de pessoas que estima-se que o planeta acolherá em 2050? Hoje, com mais de 1 bilhão de famintos e a perspectiva de aumento das catástrofes climáticas no futuro, já que as emissões prosseguem crescendo e já estão muito além do limite seguro dos 350 ppm, como é que as autoridades políticas hoje no poder pretendem lidar com escassez de água e de alimentos? Vai ser com a barbárie descrita por Naomi Klein em “A Doutrina do Choque”, em que capitalistas invadem países devastados por tsunamis e furacões, aproveitando-se do colapso civilizacional para lucrar no ramo comercial super promissor das re-construções e das privatizações?
É esta a mentalidade hegemônica nos países que são ao mesmo tempo os mais ricos e os mais poluidores: vamos esperar as catástrofes chegarem e depois, sobre os cadáveres de milhares de mortos, nós construímos mundo afora as nossas maravilhosas “democracias de mercado”.
Sabemos o que está ocorrendo com a biosfera com o triunfo das doutrinas do crescimento infinito e da liberação dos mercados: China, Índia, Brasil, entre outros gigantes, entrando em peso no mundo do hiper-consumo, estão gerando situações absolutamente insustentáveis, desde as criancinhas de Xangai, que tem que vestir máscaras anti-poluição para irem à escola, ou o povo paulista, que está ameaçado de encarar anos e anos de rodízios no abastecimento hídrico devido à gestão incompetente e à falta de investimentos, já que capitalismo bandeirantista tucano preferiu, por décadas, encher de grana empresários e acionistas ao invés de oferecer um serviço público digno, de qualidade, administrado com sabedoria ecológica e capacidade de previsão. O fracasso de Alckmin é o símbolo mais forte do quão falido é este modelo do PSDB.
Com tão péssimas credenciais, chega a ser cômico que figuras como Geraldo Alckmin, José Serra e Aécio Neves queiram vender-se como “nova política”, como “salvação da pátria”; se o candidato à presidência pede-nos que não olhemos no retrovisor, é pois sabe que a história registra o quão incapazes e ignorantes foram os políticos tucanos para lidar com o commons. O PT, é claro, também deixa a desejar neste quesito, mais uma razão para que a sociedade civil comece a tomar o problema em suas próprias mãos. Somos parte do problema, ou parte da solução?
Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmin, são a “velha” política que tenta travestir-se com a máscara retórica do novo. Eles são justamente as velharias que nos trouxeram à esta secura, tanto de água quanto de utopias. Eles são justamente os cérebros estreitos onde só entram valores monetários, aqueles que, para citar Oscar Wilde, “sabem o preço de tudo e o valor de nada” (4). Eles são justamente os sujeitos que deixam nossas ruas fedendo com as bombas de defeito moral, que fazem com que avancem sobre nós as tropas de choque com suas armas químicas (“chemical warfare, chemical warfare!”, para citar os Dead Kennedys…).
Se todo mundo neste planeta consumisse como faz o cidadão médio dos Estados Unidos ou do Canadá, seriam necessários 9 planetas Terra para absorver toda a poluição emitida. O caminho do hiperconsumo, que é também a estrada do extrativismo frenético, é uma escolha suicida, genocida e ecocida. Suicida, pois praticando o capitalismo insustentável hoje em predomínio, civilizações cavam seus próprios túmulos, abrem suas próprias covas, encaminham-se para colapsos repletos de barbáries. Genocida, pois quem mais polui vai ficar tranquilo na cobertura com ar condicionado, como os oil-men de Alberta ou os especuladores de Wall Street, enquanto na Índia e em Bangladesh o aquecimento global ceifa vidas às mancheias.
“As mudanças climáticas vão bater pesado na Índia, com aumentos de temperatura entre 3º e 5º C. Uma das principais fontes hídricas do país – o glacier do Himalaya que banha as plantações de arroz da Ásia – está previsto para desaparecer completamente em 2035.” (5)
Caso o mundo não faça nada, cenários de distopia sci-fi podem tornar-se triste realidade: Índia, Paquistão e Bangladesh, devido à guerra por recursos cada vez mais escassos, talvez façam uso de suas bombas atômicas, talvez uns contra os outros, talvez contra os poderes “imperiais” que recusaram-se a diminuir seus ecocídios e poluições…
Podem me chamar de pessimista, paranóico ou psicopatologicamente inclinado às especulações sombrias sobre o futuro; não posso evitar, porém, sentir-me aterrorizado com a perspectiva de que a grave crise ecológica global não é tema de nossas eleições, que a nossa sociedade civil não está mobilizada em relação a esta causa (Nova York pôs 400.000 nas ruas para a People’s Climate March; no Brasil, quantos estiveram na marcha no Rio de Janeiro?).
Essa luta, enfim, não cabe nas urnas. O que não quer dizer que ela não vá ter que ser lutada.
* * * * *
NOTAS
1. Global Humanitarian Forum, “Anatomy of a Silent Crisis” (Genebra, 2009)
2. Raj Patel, “The Value of Nothing” (Toronto, 2009, Harper Collins).
3. “If hot thermometers actually exploded like they do in cartoons, there would be a lot of mercury to clean up in California right now. The California heat this year is like nothing ever seen, with records that go back to 1895. (…) The high temperatures have contributed to one of the worst droughts in California’s history. The water reserves in the state’s topsoil and subsoil are nearly depleted, and 70 percent of the state’s pastures are rated “very poor to poor,” according to the USDA. By one measure, which takes into account both rainfall and heat, this is the worst drought ever…” – via SYSTEM CHANGE, NOT CLIMATE CHANGE (ECOSOCIALIST ALLIANCE)
4. OSCAR WILDE. O Retrato de Dorian Gray.
5. RAJ PATEL, op cit.
6. Idem.
[youtube id=http://youtu.be/ktgEzXZDtmc]
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Publicado em: 27/10/14
De autoria: casadevidro247
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marielfernandes
Comentou em 09/11/14