Diante dumas 10.000 pessoas aglomeradas na Esplanada do C.C. Oscar Niemeyer neste Sábado, 3 de Maio, para o rolê de skate Vert Battle, o ex-vocalista do Rappa entregou-nos um bagulho que, para meu estômago, foi pra lá de indigesto.
Um daqueles mega-espetáculos da indústria do entretenimento musical que, financiado por Banco do Brasil e Ourocard Visa, aparece aos olhos só dos mais ingênuos como algo transgressor e quebrador-de-barreiras, mas que numa leitura mais aprofundada revela-se como tendo muitos elementos de um aparato de domesticação disfarçado. O establishment bancário e a indústria do esporte olímpico mais recente (catapultado no país também pela fama meteórica de Rayssa Leal) fazendo pose de rebelde sem de fato sê-lo.
Um show que encarna tantas contradições – não só da pessoa de Marcelo Falcão, mas da megalópole caótica do Rio de Janeiro e do Brasil pátria-fraturada como um todo – que decidi vir aqui tentar destrinchar um pouco do caldeirão de sensações antagônicas que me acompanhava no pós-show enquanto zarpava de volta pr’A Casa de Vidro.
Sei muito bem que a maioria da galera ali tava no CCON só curtindo a vibe, enchendo a cara, dançando e cantando em coro, e que nada do que direi a seguir interessa a quase ninguém – é só o extravasar de vários incômodos que este crítico cricri julga que são os ossos de seu ofício, impopular e mau-pago, de criticar. A indigestão resume-se a estes itens do cardápio: messianismo evangélico em doses altas demais; muita pagação de pau pro Chorão, e silêncio desdenhoso diante de um Yuka que, a meu ver, merecia muito mais reverência; constrangedores playbacks e virtual sounds demais – como naquele setor do espetáculo em que a Iza é convocada para aparecer no telão, no videoclipe de “Pesadão”, e Falcão praticamente faz karaokê com o clip (é paia mesmo ou eu é que sou chato?).
Antes de atacar mais ao fundo estes aspectos do show em si, devo dizer que considero, e nisto estou longe de estar só, que O Rappa foi uma das melhores, mais relevantes, mais impactantes bandas brasileiras dos anos 1990, e que álbuns como “Rappa Mundi” (1996) e “Lado B Lado A” (1999) estão perto de ser obras-primas na história fonográfica de nosso país-brasa; mas o Rappa que me interessa e comove é aquele de “O que sobrou do céu”, “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, “Tribunal de Rua”, ou seja, da banda que, assim como o Planet Hemp, expressou uma revolta dos guetos cariocas, um empoderamento cultural das favelas e arredores, que explodiu nos altofalantes de toda a nação, sem massagem, na mescla de rock, ragga, rap e o escambau. Foi a possibilidade de ver uma espécie de Rappa Cover de primeira, com seu vocalista original, o que mais me seduziu pra lá.
A polêmica que começo aqui a avançar está na consideração de que sem o falecido e saudoso Marcelo Yuka, batera muito massa e letrista dos melhores de sua geração, o Sr. Falcão não teria decolado para seus altos vôos enquanto ícone rasta-pop de nosso reggae-rock radiofônico de alto apelo de massas. Dia desses, pesquisando sobre a ruptura Falcão / Yuka, descobri uma matéria do jornal O Dia que me preencheu de antipatia por Falcão: ele conta que rompeu com Yuka pois “ele não acreditava em Deus” e que o racha se deu aí (vejam em https://www.youtube.com/watch?v=ahqJg_qkd9o). “Falou que não curte Deus, eu vou saindo pro outro lado”, decretou Falcão. É de uma ateofobia e de uma intolerância escabrosas.
Há um belo documentário – “Yuka: no Caminho das Setas” (2011, de Daniela Broitman) – que recomendo muitíssimo a todos que se interessam pela cultura brasileira contemporânea. Síntese da obra: “aos 34 anos, no auge da carreira, o compositor Marcelo Yuka leva nove tiros em uma tentativa de assalto no Rio de Janeiro. Vítima da violência urbana, ele vê sua vida mudar, o que aumenta seu ativismo e o alcance social de suas críticas.”
Bem, onde está Yuka, onde encontrar a presença deste morto ilustre, deste sementeiro de canções imorredouras, no espetáculo de Falcão hoje em dia? Na verdade, é Chorão do Charlie Brown Jr. a figura pra quem Falcão decide pagar pau e celebrar com ele sua brodagem. Mais uma vez a sensação de “nossa, que paia!”: Falcão canta “Minha Alma”, “Me Deixa” e “Pescador de Ilusões”, além da versão em português para a hendrixiana “Hey Joe”, sem prestar reverência ou o mínimo reconhecimento ao cara que compôs estas canções, que bolou os tecidos verbais mais impressionantes do Rappa. É paia alçar-se nas asas da lábia de Yuka e deixá-lo nas sombras.
Mas, para além disso, o auge da indigestão é mesmo o aspecto messiânico do Falcão atual: um cara que poderia encarnar uma figura da Rebel Music, com seus dreadlocks que vão quase até o chão, hoje em dia não celebra o rastafarismo ou o cannabismo – está muito mais pra pregador-evangélico-das-quebradas. Sob os auspícios do Banco do Brasil e da VISA, patrocinadores do evento, Marcelo Falcão fez sua pregação e falou coisas que me soaram um pouco sinistras, apontando seus “critérios de pureza” para determinar com quem vai firmar parcerias. Os descrentes e impuros, os hereges e apóstatas, os que tem fé insuficiente ou ceticismo demasiado, são indignos de trabalhar contigo, né Falcão?
Devo confessar que vomito estas críticas também porque estou puto, no sentido de furibundo e irritado, após os horrores da Marcha pra Jesus do Primeiro de Maio goianiense; puto também com o silêncio ensurdecedor da classe artística e dos ativistas de esquerda diante do descalabro revoltante que é meio milhão de reais da Secult e do Estado de Goiás ser injetado numa espécie de showmício cristofascista para o benefício de Mabel e Caiado. A maneira como os evangélicos neopentecostais se metem em todo canto com seu poderio de infiltração ideológica, e de captura das indústrias culturais para pô-las a seu serviço, mostrou-se também neste show em que Falcão, em vários momentos, mostrou-se menos um artista que é porta-voz dos guetos, e muito mais um pregador de positividade e das “bençãos” que Papai-do-Céu dispensa aos que tem mérito.
Em “Vitória”, canção triunfalista, ele martela nos auto-falantes: “Só Deus pode me parar.” A soberba disto pode ser lida por alguns como brado de empoderamento, mas Falcão se acha poderosão, só perdendo para o Todo-Poderoso, e neste processo narcísico de se achar o fodástico da galáxia nem parece imaginar o quanto um comício de extrema-direita bolsonarista poderia facilmente se apropriar desta canção para celebrar o exército invencível dos cidadãos-de-bem.
Falcão, hoje em dia, é um cara que faz post no Instagram (para mais de 1 milhão e meio de seguidores) que inclui frases como “gratidão, Papai do Céu.” Interpreta pastor no cinema, “exalta a fé” em entrevistas e faz sermão sobre as propriedades curativas da canção “Anjos” – que ele parece enxergar menos como uma música do que como uma intervenção divina em formato de canção, capaz de milagres de que a medicina é incapaz (matéria bastante constrangedora no Metrópoles).
O que eu acho mais paia na atitude de exaltação da fé, de “meu sucesso foi Deus quem me deu”, é que… porra meu chapa, você deveria ter gratidão não pelo seu amiguinho imaginário com o qual os pastores recolhem seus dízimos, deveria ter gratidão é pelo Yuka, pois sem ele não haveria hoje nenhum Marcelo Falcão tocando diante de multidões. Esta atitude de “glória a Deus” é ela mesma uma ofensa contra os autênticos artífices humanos, demasiado humanos, sobretudo este cronista social e poeta artista Yuka, sem os quais não teriam nascido os geniais álbuns que O Rappa fez na década de 1990.
Marcelo Falcão é hoje uma figura do establishment, um caretão falando groselha sobre fé e positividade, ainda que retenha ainda em sua performance um pouco da figura leonina, de fera empoderada. É um vocalista extraordinário, com um voz de belo timbre, mas que hoje encarna esta contradição: segue fazendo certas poses de rebeldia, ou mesmo de ferocidade, com o mic nas mãos, mas tudo que emana de sua atitude é um indigesto conformismo ao establishment liberal, que monta custosos aparatos de entretenimento que comercializam certas rebeldias bem-comportadas, certas performatividades pseudo-revolucionárias, que nada colocam em cheque de maneira radical. Falcão hoje participa dum sofisticado aparato de domesticação da revolta que inclui – esperteza do capitalismo, que tem sua malícia e sua plasticidade – a venda de rebeldias pasteurizadas, domesticadas, pálidos restos do que pôde um dia ser alguma autêntica rebeldia dos favelizados da Améfrica.
Falcão indigesto que reforça pra mim esta noção polêmica: o Rappa que me interessa é aquele concebido por Yuka, e que hoje é historicamente iluminado pela luz sinistra do fim trágico do nove-vezes-baleado, tornado paraplégico, e precocemente falecido xamã da canção. Não me interessa a soberba dos que pensam estar fazendo canções ditadas pelo Todo Poderoso; me interessa o pé-no-chão dos que fritam nesta Terra trágica e que alçam sua arte desde o solo pisado da lida cotidiana, dura e difícil, debaixo de céus abandonados por todos os deuses, ainda que repletos de drones e de bombas que chovem sobre os matáveis. Falcão se perdeu na fé e no messianismo e é hoje um sintoma dos descaminhos do Brasil sob o feitiço do fanatismo religioso evangélico e dos avatares bolsonarentos desta doutrina terrível que é o “nacionalismo cristão”.
Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 4-5-2025
Publicado em: 04/05/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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