Nessa segunda edição do KinoKritik, quero falar um pouco sobre o Langue étrangère / Língua Estrangeira, um belo filme sobre duas jovens, uma francesa chamada Fanny e uma alemã chamada Lena, que estão envolvidas num processo histórico muito interessante de decifrar, que tem a ver com a emergência de uma juventude ativista muito preocupada com a questão socioambiental, com o aquecimento global, com a sexta extinção, e que emerge na Europa através de movimentos como Fridays for Future, Extinction Rebellion, dentre outros. E esse filme me seduziu a princípio pelo seu pôster: eu achei uma peça de comunicação visual bastante impactante, onde as duas protagonistas estão ali numa situação de manifestação de rua e atrás delas é possível ler Jeunesse en Colère ou Juventude em Cólera.
O filme vai explorar a complexidade e a dinâmica desse relacionamento entre essas adolescentes, um relacionamento tenso que trafega ali da correspondência online, do chat, via computador, depois tem um momento de presencialidade, de intercâmbio, onde a Fanny sai da França e vai conviver com o Lena na Alemanha, e perpassa por um momento de erotismo, de descoberta de um lesbianismo, em cenas que evocam inclusive o Azul é a Cor Mais Quente, de Abdel Kechiche. Em meio a esse turbilhão relacional dessas duas jovens, o filme coloca em questão essas novas subjetivações que estão emergindo, enquanto no espaço político a juventude é também colocada em ebulição diante desse antagonismo com uma extrema direita que tem cada vez mais os bilionários a seu lado, a financiando, ou sendo eles próprios as lideranças neofascistas.
Então nós temos, de um lado, uma direita assustadoramente pervasiva, um movimento neofascista disseminado internacionalmente, com a figura de chefes de Estado como Trump, Bolsonaro, Milei, Orbán, por aí vai, e por outro lado você tem, diante da catástrofe ecológica planetária em curso, uma radicalização do ativismo ecológico, com a emergência desses movimentos sociais, que no filme estão descritos ali, não de maneira explícita, mas através de como essas duas moças se relacionam com isso. Então, desde o princípio, quando a Fanny está chegando da França para conhecer o cotidiano da sua cyber amiga Lena, a mãe de Lena apresentando o quarto dela e tudo, mostra: “olha aqui, isso aqui é do Fridays for Future, ela teve o envolvimento de participar de manifestações nas sextas-feiras, ela manifesta interesse pelo veganismo e tudo mais…”
Então logo nesse momento de ser apresentado ao outro, essa personagem Fanny vai descobrindo essa faceta de uma sedução por essas mobilizações, e o filme vai trabalhar um pouco com esse desejo da Fanny, chegando ali, de talvez fazer-se mais interessante para Lena inventando ali uma história, fabricando alguma espécie de eu alternativo, para meio que dizer a ela? “olha Lena, eu Fanny também me interesso por isso em que você está começando a se engajar, inclusive posso provar, porque…” E aí o filme traz o seu elemento mais interessante que é a fabulação e o fato de que essas subjetividades juvenis muitas vezes vão também forjar ideais heróicos que, do ponto de vista da distinção entre real e imaginário, nos colocam diante do campo também do delírio.
Ou seja, a Fanny vai inventar uma história a respeito de Justine, que seria sua irmã, que teria fugido de casa e sumido da escola, teria se engajado com os Black Blocks. E essa irmã imaginária, Justine, numa torção um pouco cômica, meio Molière do filme, é apresentada pela Fanny para a sua amiga Lena através de imagens da internet, dessa figura envolta em uma nuvem de gas lacrimogêneo, com um símbolo antifa no braço, e que está ali afrontando as tropas de repressão em alguma manifestação verde anárquica, participando ali da vanguarda Black Blocker. O filme vai descrever com bastante sensibilidade, bastante empatia por esses personagens, como que se desenvolve a relação, muito a partir desse construto que Fanny faz, e que inclusive alguns podem estar tentados a chamar de uma mentira que ela construiu. Ou seja, ela fabrica uma irmã que não existe como tal. Não existe esse laço consanguíneo dela, Fanny, com essa menina que ela vê nesses vídeos, nesses YouTubes, e que a fascina a ponto dela fabricar esse lien, forjar imaginariamente essa conexão.
De todo modo o filme também nos convida a pensar sobre o quanto uma mentira ou uma ficção pode ser produtiva – inclusive produtiva para esse relacionamento das duas, porque de fato a Lena parece ficar cada vez mais seduzida por Fanny quando a francesa revela sua intimidade, revela detalhes da sua vida afetiva e da sua existência prévia na França. Então a Fanny tem esses momentos muito confessionais diante de Lena, em que ela diz: “eu, Fanny, tentei o suicídio, fui vítima de muito bullying na escola…” – ou seja, há a construção de uma vinculação afetiva através da confissão de situações que Fanny passou, mas somado a esse partilhar da experiência vivida, a Fanny vai ali ficcionalizando a respeito de uma figura que ela viu na internet, que a fascinou, e que vai servir como uma espécie de elo entre Fanny e Lena, porque elas vão se colocar na tentativa de buscar essa irmã Justine desaparecida. Então vão imprimir aqueles cartazes, irão às manifestações e perguntarão às pessoas: “vocês viram a Justine por aí? Vocês viram essa pessoa aqui nessa imagem?” Então o engajamento delas vai ser perpassado por essa ficção, mas ao mesmo tempo essa ficção tem um lastro real, tem um referente que é uma mulher que existe de fato, que é uma jovem ativista e que atingiu um grau de radicalização que essas duas meninas não atingiram.
Então existe também nesse filme uma janela aberta para que a gente compreenda uma certa figura de algum modo privilegiada, que é essa mulher branca, europeia, que tem um lar de classe média, abonada, na França ou na Alemanha, que é educada em boas escolas, tem um grau elevado de cultura, mas essas pessoas que têm um patamar privilegiado, não necessariamente vão aderir ao conservadorismo diante da pressão exercida pela catástrofe climática e pelo cancelamento do futuro. Essa eco-ansiedade cada vez mais pervasiva, a sensação de uma perda de futuro, ou a sensação de que um futuro terrível se acerca de nós cada vez mais rápido, e caso não façamos algo com muita velocidade, a vida vai piorar, as condições para existirmos irão piorar. Então existe também essa urgência enraizada na eco-ansiedade que se manifesta nessas meninas privilegiadas e que faz com que elas desviem do conservadorismo e comecem a enxergar como ídolo, como heroína, figuras como essa Justine que se radicalizaram nessa luta realmente urgente que movimentos como Extinction Rebellion estão propondo, com travamentos de rodovias e inclusive, em alguns casos, com destruição de propriedade corporativa da indústria petrolífera, oleodutos e tudo mais.
Então, o que também é muito interessante no filme, Língua Estrangeira, é a tentativa de superação dessas barreiras linguísticas, culturais, territoriais, entre elas. Então o filme é um pouco essa mistura de francês, alemão, inglês, onde essas pessoas, essas jovens sobretudo, estão tentando encontrar uma linguagem comum para expressar uma espécie de angústia que elas sentem que é partilhada e que por isso pode haver um esprit de corps que funda essa amizade, essa sororidade, e inclusive esse casal lésbico que se manifesta. O filme também revela que esse tipo de aliança que as nossas duas jovens em cólera conseguem tecer, essa trama que as une, e que na cena final do filme vai ser mostrada de maneira muito forte pela conexão que elas fazem ali naquela manifestação, enquanto a polícia está tentando romper as uniões entre os manifestantes, todo esse espírito de sororidade conectado à eco-ansiedade, isso parece falar uma linguagem que a geração mais velha não compreende.
Então, um abismo geracional enorme também se manifesta nas cenas familiares, já que o filme vai mostrar um pouco da família alemã de Lena, da família francesa de Fanny. E é interessante, entrando nos detalhes da família de Fanny e encaminhando esse comentário para o seu fim, é interessante que os pais de Fanny manifestam duas opiniões bastante divergentes, bastante distintas sobre essa capacidade que a Fanny demonstra de fabular, de inventar histórias ,aquilo que alguns ficam tentados a chamar de suas mentiras.
A mãe da personagem Fanny aparece como uma dessas figuras que condena a própria filha, no sentido de que condena a atitude mitomaníaca dessa filha, que se mostra disposta até demais às suas invencionices, a ponto de fabricar relatos sobre suas alergias que não existem de fato, e por aí vai. Então essa mãe da Fanny parece que está tentando coibir esse traço da filha que ela considera como um vício. E a certo ponto, quando tem aquela briga no carro, Fanny é expulsa do carro pela mãe e Lena está ali no banco de trás, essa mãe se coloca nessa postura de iluminar a namorada da filha, iluminar Lena sobre o verdadeiro caráter de Fanny. E aí fala – “ela é uma mentirosa, não leve nada a sério que ela diz”. Lena naquele momento compreende que a irmã Justine não existia de fato, acabou sendo revelado que a sua querida Fanny na verdade era uma baita de uma mentirosa, uma adolescente delirante que inventa historinhas sobre uma irmã black blocker que na verdade são apenas lorotas.
E no entanto o pai da Fanny, encontrando ali com Lena, quando ela se prepara pra ir embora e abandonar tudo deste vínculo, o pai de Fanny fala algo deste teor: “não, espera aí, eu acho que a gente pode ter um pouco mais de empatia por isso que Fanny faz, por essa sua fabulação, por essa sua capacidade de criar uma ficção produtiva.” E esse pai diz algo assim: “olha, eu acho que talvez o que ela quisesse fosse te impressionar”. Então ela fez um construto imaginário, ficcional, que de certo modo expressa um ideal do ego. Aquilo ali é Fanny dizendo para Lena: “olha, eu gostaria que as coisas fossem assim e por isso eu as estou descrevendo como se já fossem. Então esse mecanismo de subjetivação, perpassado um pouco por esse delírio e por essa idolatria da ativista, constrói ali num cenário mais complexo – ou seja, você tem a Fanny mitomaníaca-fabulatriz sendo objeto de julgamentos morais distintos, a mãe mais condenatória e o pai mais complacente, e a Lena tem que fazer a sua decisão de ficar ou partir, o momento ali, should I stay or should I go é muito interessante, muito tocante.
E quando ela decide ficar, she decides to stay, e viver com o Fanny um pouco dessa fantasia, o seu desfecho me parece bem interessante, o fato de que finalmente quando Justine é vista em carne e osso, justamente quando Fanny e Lena conseguem o télos da sua jornada, elas que tanto procuraram por essa menina do vídeo, por essa heroína Black Bloc, quando elas estão diante do corpo dessa pessoa, sabe-se que ela não é apenas imagens, que ela não é apenas pixels, mas que ela está lá encarnada, as duas ao invés de se dirigirem a ela, elas têm um momento de finalmente estarem uma com a outra numa espécie de cenário pós mentira, no sentido de que algo da fala sincera foi restabelecido com a revelação de que Fanny havia mentido sobre essa irmã; a admissão dessa mentira coloca o relacionamento de novo num campo mais do real, mas ao mesmo tempo o que me parece muito interessante dessa liga, dessa cola entre essas jovens, é que essa ficção pôde ser produtiva, inclusive produtiva da relação enquanto uma instância de emergência de uma subjetividade capaz de se lançar na ação política coletiva radical.
Então o filme termina com aquelas imagens fortes delas, naquela manifestação, novamente já se sente, apesar do cinema não ter olfato, quase se pode farejar o gás lacrimogênio e a Jeunesse en Colère, ali naquela cena sendo agredida pela polícia, e aqueles jovens tentando manter o esprit de corps, tentando se manter unidos carnalmente diante de forças sociais repressivas, conservadoras e cada vez mais sob comando de uma extrema-direita militarista e supremacista. Esse esprit de corps da Jeunesse en Colère, esse espírito de solidariedade de uma juventude eco-ansiosa, cada vez mais disposta a colocar sua cólera em ação, isso constrói um quadro muito impressionante, muito significativo, que parece uma espécie de ícone dos antagonismos do nosso tempo tão turbulento.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 18/04/2025
TRAILER:
ASSISTA AO KINOKRITIK #2 – Gravado em A Casa de Vidro Ponto de Cultura em 18/04/2025. Transcrição via Good Tape, revisada pelo autor.
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Publicado em: 18/04/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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