Tornar-se saudável de novo após um adoecimento, ter restabelecida a sua saúde depois de mutilação ou ferimento, retornar a um estado anterior de vigor corpóreo, cicatrizando as feridas e deixando para trás as debilidades e sofrimentos da doença: estes são alguns dos sentidos do verbo “to heal”.
É tudo o que Israel recusa aos palestinos em sua sistemática campanha de punição coletiva contra todo o território de Gaza. Machucando ao extremo os moradores da Faixa, e depois impedindo de acessar o direito à saúde e à cura devido a uma hecatombe imposta sobre hospitais e seus profissionais, o colonialismo israelense pratica algumas de suas piores atrocidades e crimes de guerra neste campo do direito a saúde.
Decidi convocar este verbo – impedido de se manifestar na prática – para o título do documentário LET GAZA HEAL, filmado em Amsterdam, em 3 de Março de 2024, não apenas porque os manifestantes gritavam a plenos pulmões, em sua marcha pelas ruas, este urgente imperativo. Muitas outras frases e consignas, que marcaram presença neste protesto, poderiam ter sido escolhidas para o batismo do filme (como “No peace on stolen land!”), mas esta me pareceu uma frase a um só tempo impregnada de pungência, empatia, solidariedade, ciência dos apuros dos oprimidos somada à capacidade de interpelar os responsáveis pela catástrofe com este pedido, que é menos uma súplica do que um brado, para que tenham a dignidade mínima de permitir que os feridos se tratem.
Esta dignidade parece estar cronicamente em falta nos líderes sionistas e em seus cúmplices ocidentais. Por oito meses, causaram uma hecatombe no território de Gaza, com mais de 80 mil pessoas feridas, boa parte delas obrigada a carregar para o resto de sua vida alguma sequela ou amputação. Mais uma vez, o Estado de Israel, acobertado por uma espessa manta de cumplicidade anglo-saxã e europeia, cometeu gravíssimas violações dos Direitos Humanos elementares e da Lei internacional em sua atroz campanha de punição coletiva contra todos os seres humanos que habitam Gaza.
É com uma mescla de pesar e revolta que este filme é publicado na internet em um momento histórico onde, segundo o Ministério da Saúde da Autoridade Palestina em Gaza, pelo menos 493 profissionais da Saúde perderam suas vidas trabalhando em prol dos doentes, feridos e mutilados em Gaza. Esta mega-hecatombe em que pereceram tantos paramédicos, enfermeiras e staff de centros de saúde é complementada pela prisão de pelo menos 214 profissionais da saúde, de acordo com dados da OMS. (1)
Os assassinos possuem suas justificações e desculpas em seu coldre e não pararam de dispará-las através dos megafones dos mass media submissos ao lobby sionista: acusa-se o Hamas de realizar algumas de suas operações dentro dos túneis subterrâneos que existem em profusão por toda casa, inclusive por debaixo dos hospitais. Vê-se que o regime de extrema direita que hoje governa Israel não nega ter atingido com sua ferocidade bélica, muito bem financiada pelos dólares dos Estados Unidos da América, os hospitais de Gaza. A doutrina, justificatória dos massacres, que prega a noção de que diabólicos terroristas utilizam-se de médicos e doentes como escudos humanos, é sintoma da ótica míope de um sionismo em devir psicótico, mas que também comete sincericídio ao expor a ideologia que anima sua barbárie high-tech.
Os hospitais de Gaza não foram apenas atingidos enquanto danos colaterais, mas foram sistematicamente atacados e bombardeados, com a destruição proposital da maior parte da infraestrutura de saúde, já muito precária devido aos rigores do Cerco que Israel impõe, da qual os prisioneiros do Gueto de Gaza dependem para seus tratamentos terapias, curas, cirurgias, medicações… Este filme carrega o grito dos indignados que tomaram as ruas para gritar bem alto: “stop bombing hospitals! stop killing children!”
Se isso não fosse um documentário se eu tivesse escrito um roteiro de ficção e realizado uma peça por atores performada suspeito que ela teria o sabor de uma peça do Teatro do Absurdo. É uma absurdidade exasperante que tenhamos que organizar manifestações e marchas para dizer algo que deveria ser tão óbvio e tão consensual – não é moralmente certo tentar destruir quase todos os hospitais de uma sociedade que se está ao mesmo tempo bombardeando com o equivalente a 4 bombas atômicas de explosivos. Nos dias que correm, moralmente óbvio e aquilo que éticamente poderia ser construído como consenso de todos os humanos, tornou-se alvo do mais flagrante desrespeito.
Em uma das cenas que mais me comove no documentário, com o suntuoso Palácio Real Dam Square ao fundo, vemos a jovem ativista Sarah Rachdan ao microfone, dirigindo-se não somente aos camaradas ali presentes, fez a oferenda rebelada de uma salutar reflexão ética que os ouvidos cheios de cera do Ocidente são incapazes de escutar e compreender.
“During this horrible, horrendous humanitarian crisis, where our people are consistently being killed over the last 150 days, where all we’ve seen is performative humanitarianism from the West with air drops only going to the South, while the US consistently aids the Zionist military in billions in military aid to drop bombs on Gaza, and then drops aid on the South of Gaza in a performative manner to save face, pretending it’s trying to help, while it is consistently bombing us, while it is consistently bombing hospitals, while it is consistently bombing civilians in the South and starving civilians in the North. And this week there are reports of 10 children that dropped dead due to starvation. There are children stuck for days under rubbles dying, dying of starvation alone…”
Por cinco meses eu havia me lançado ao turbilhão da intensa mobilização cívica em solidariedade ao povo palestino que começou a se manifestar em Amsterdam na esteira do 7 de Outubro de 2023 e que, no momento em que o documentário vem a público, já entra em seu oitavo mês de expressão, e desde cedo alimentei a vontade de entrevistar Sarah Rachdan, que destacou-se na liderança de um movimento interseccional que levou a pauta Palestina para o epicentro da maior marcha motivada pela catástrofe climática já ocorrida na Holanda, em que ela foi apoiada e defendida por Greta Thunberg, e que sempre foi uma das mais loquazes lideranças das mobilizações denunciatórias das atrocidades sionistas.
Para além das denúncias, cuja expressão pública tem uma relevância em si nesta conjuntura de desinformação e de edulcoração das reais tragédias causadas por ideologia supremacistas como o judaísmo sionista, a fala de Sarah contida neste documentário representa ainda uma outra ação audaz e necessária: as colocar no banco dos réus também o humanitarismo fake de muitas figuras de proa do liberalismo burguês que passa pano para alonga e ainda presente história da criminalidade ocidental.
Ela denomina este fenômeno de “performative humanitarianism”, Ou seja, uma performance de humanitarismo realizada por aqueles que causaram a catástrofe humanitária em curso. Os homens brancos, ricos e Poderosos que decretam o bombardeio em massa de hospitais escolas e Campos de refugiados são os mesmos que depois vão posar diante das câmeras das mídias ajoelhadas diante deles para posarem como benfeitores por concederem alguns band-aids e migalhas àqueles cuja vida e Nação estão insistentemente engajados em tornar impossível. Sarah, ainda:
“There are only 16 partially functioning hospitals left of 36. Only 16 hospitals left! These are lifelines for Gaza. These hospitals are overburdened. These healthcare workers are overworked. And there are constantly injured people pouring into hospitals. And in a time where Gaza is starving, in a time where the North has no food, where aid hadn’t gone in for weeks, since the 5th of February, just two days ago, when the UN could try to get food into the North, the aid was bombed. The aid was bombed through sadistic AI targeting.”
Este é um documentário distópico mas não desanimador. Dá voz aos constantemente silenciados. Leva o espectador para uma caminhada por cerca de 5 km da Metrópole holandesa e oferece a oportunidade de, mediados pelo cinema, acessarmos os afetos e as palavras dessas pessoas que se insurgiram contra a normalização da obscena campanha deliberada destruição das condições para a vida em Gaza.
É um tributo a todos aqueles que não se juntam ao coro de apologistas do imperialismo sionista apoiado pelos Yankees, e que sempre souberam que a manifestação de solidariedade e empatia pelas pessoas palestinas não se dá a partir da estreiteza de um espírito sectário ou tribal mas é assim expressão de uma ética autenticamente humanitária pois enxerga de fato um humano digno de respeito lá onde os “Masters of War” enxergam a matável matéria sobre humana que em um livro magistral, em um livro magistral, Eleni Varikas estudou sobre o nome de “a escória do mundo”.
LET GAZA HEAL – dando sequência a uma série de filmes documentais que também inclui LET GAZA LIVE (filmado em Utrecht), VIVA VIVA PALESTINA (retrato de mobilização em Haia diante da Corte Suprema da ONU) e PALESTINE WILL BE FREE (?) (filmado em Amsterdam ainda em Outubro de 2023 na primeira grande aglomeração cívica na Dam Square após o 7/10), dentre outros – pretende ser uma caixa de ressonância audiovisual para aqueles que não aceitam compassividade ou apatia que os seres humanos palestinos sejam “banidos da humanidade” (cf VARIKAS, 2007). Brick by brick, wall by wall, Zionism has to fall!
Eduardo Carli de Moraes,
Goiânia, 11 de Maio de 2024
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Publicado em: 11/06/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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