“Felizes de nós se conseguíssemos inspirar alguns – ou muitos – a suportar sua liberdade, a não trocá-la sem prejuízo, pois ela não só lhes pertence, é seu segredo, seu prazer, sua salvação, como interessa a todos os outros.” MAURICE MERLEAU-PONTY, “As Aventuras da Dialética”, Epílogo, Martins Fontes, 2006, Pg. 307.
Liberdade, “palavra que o sonho humano alimenta, que não há quem explique e ninguém que não entenda” (Cecília Meirelles), é aquilo ao qual estamos condenados, conforme célebre expressão do autor de “A Náusea”.
Frase fascinante a de Sartre: condenados são aqueles que estão privados de liberdade, então como poderiam aqueles que são livres estarem condenados a isso? A liberdade é uma prisão perpétua onde estamos encerrados e cujas grades de aço jamais encontraremos os instrumentos para romper?
Estar condenado à liberdade é um paradoxo, mas talvez seja impossível falar sobre o significado da liberdade sem mencionar as numerosas condenações que pesam sobre nós. Condenação à desigualdade, por exemplo, à proliferação desordenada de privilégios injustos e segregações brutais baseadas em critérios falaciosos de gênero, raça e classe.
Entenderemos a liberdade apenas se a enxergarmos como uma jogadora de um jogo mais vasto, um pólo de um jogo de oposições, em que a opressão / servidão é o outro pólo. E esta briga sem fim é o motor mesmo da História, cuja Síntese talvez não seja nenhum final feliz… No filme da realidade realmente existente, a Grande Síntese da História que é o presente não se parece nada com a consumação de nossos sonhos de justiça, igualdade, fraternidade.
Ainda assim, a liberdade não é decretada como um sonho vão, como uma fantasmagórica irrealidade. Ainda se clama por liberdade, e ainda se entrechocam as diferentes concepções do que significa ser livre. No ringue das ideologias, trocam socos os liberais com os marxistas, sobre política econômica, irreconciliáveis em suas opiniões sobre o autêntico significado da liberdade. Uns, pregando a liberdade dos mercados, e a providencial Mão Invisível para cuidar de todos os desequilíbrios mercadológicos. Outros, pregando a liberdade dos proletários, reais produtores das mercadorias e das riquezas, atualmente esmagados às centenas de milhões na máquina de moer carne humana que é o capitalismo industrial globalizado.
É fascinante, neste contexto, a discussão que Merleau-Ponty realiza com Jean-Paul Sartre sobre o tema da Liberdade: “A liberdade adere a toda a nossa vida e faz com que ela nos seja imputável. É como se, a cada momento, nos fosse atribuída a responsabilidade por tudo o que nos foi dado e que usufruímos, por tudo o que resultará da nossa vida”, explica Merleau-Ponty. “Dizer que somos livres é um modo de dizer que não somos inocentes, que somos responsáveis por tudo o que está diante de nós, como se o tivéssemos feito com nossas próprias mãos. A liberdade para Sartre quase se confunde com a simples existência em torno de nós de um campo que é de nossa responsabilidade e onde todos os nossos atos adquirem imediatamente valor de méritos ou deméritos.” (p. 210)
Ser livre é assumir esta responsabilidade, com todo seu peso de tormento, de rancor, de possível remorso, de indecisão aflitiva. Trata-se de uma abertura do eu para acolher o outro, em sua alteridade, em sua demanda, em sua exigência de respeito por sua liberdade. Assim como odiamos os que cerceam nossas liberdades, somos odiados por aqueles cujas liberdades cerceamos. Tornar-se livre talvez tenha a ver com perceber-se na posição existencial de alguém que em seus atos e palavras afeta seus semelhantes de maneiras que podem e devem ser julgadas não apenas pelo outro, mas pelo próprio eu que livre se assume.
Para Sartre, portanto, não faria muito sentido alguém dizer de si mesmo “sou livre” e na sequência caracterizar-se como alguém neutro, que não se engaja, pretensamente imparcial, e que não vive sua existência num espaço comum de convivência e polêmica, onde o sujeito reflete, na prática, sobre as consequências sobre outrem de suas ações e escolhas.
Ser livre é engajar-se na vida comum, pois só aquele que age no mundo com consciência de não ser uma ilha, de não ser um sujeito insular, pode estar atento aos méritos e deméritos dos impactos de sua ação sobre outros.
O comunismo, para Sartre, pôde se alçar ao status de um ideal sagrado, mesmo para um filósofo tão ateu, pois tinha a ver com nossa responsabilidade diante dos desfavorecidos, explorados, oprimidos – aqueles que Frantz Fanon chamou, em seu livro famoso, de Os Condenados da Terra.
Merleau-Ponty explica que, para Sartre, o proletariado é a classe que assume a responsabilidade de acabar com uma sociedade cindida em classes. O proletariado redime o mundo de uma injustiça antiga, pertinaz. No contexto de uma injustiça estrutural realmente existente, Sartre não aceita que possa ser uma opção moral defensável a escolha por nada fazer, o a-politicismo, a recusa da ação, a apatia do indivíduo egoísta (o idiotes dos gregos). Além disso, Sartre afirmará que todos aqueles que trabalham pela perpetuação da segregação, da exploração, da espoliação, são cúmplices e coresponsáveis da burguesia exploradora, espoliadora, segregacionista:
“Para o proletariado, a burguesia são os atos datados e assinados que instituíram a exploração, e todos aqueles que não os questionam são considerados cúmplices e co-responsáveis, porque, objetivamente, ou seja, aos olhos do explorado, eles a endossam. Para a burguesia, o proletariado é o operário que quer o impossível, que age contra as condições inevitáveis do social…” (p. 189)
Esta luta de classes que move a História, como Marx já ensinava, talvez não tenha um fim utópico, um desfecho glorioso, a consumação de uma sociedade perfeita, o Reino de uma comuna sem segregação em classes ou castas, sem a brutal exploração de um grupo humano por outro. Mas é a isto que tende o movimento comunista, cujo motor são as contradições concretas das sociedade realmente existentes. Uma vida menos cindida e fraturada por antagonismos e injustiças: é isto que o comunismo coloca em seu horizonte para que inspire a caminhada comum das nossas liberdades em busca de conectarem-se.
Merleau-Ponty, relembrando a Revolução Francesa na companhia de historiadores como Michelet e Daniel Guérin, fala que a burguesia, quando foi a classe revolucionária e derrubou o Antigo Regime, fracassou em instalar um Novo Regime que fosse de fato inclusivo, acolhedor da multiplicidade humana. A burguesia revolucionou o Antigo Regime para instalar em seu lugar uma nova opressão, um novo regime de brutal exploração, que recusa uma vida digna e humana a uma vasta massa de trabalhadores espoliados.
“Ninguém pode contestar o equívoco da Revolução Francesa, nem que ela tenha sido a instalação no poder de uma classe que pretendia interromper a revolução a partir do momento em que seus próprios privilégios estivessem garantidos.” (p. 278)
Sartre, aderindo ao “ultrabolchevismo”, irá argumentar que a causa do proletariado é a causa da humanidade, pois esta é a única classe que visa a abolição das classes, ou seja, a superação de um regime social de segregação, cisão, exploração brutal, estado-de-coisas (status quo) que a burguesia impõe ao proletariado. A classe proletária seria autenticamente revolucionária na medida em que caminhasse rumo à sua auto-supressão em uma sociedade pós-classista. Sonho vão?
Há, segundo Sartre, uma escolha fundamental que se coloca para as nossas liberdades no contexto histórico em que ele viveu (e que ainda é, em certa medida, o nosso contexto atual): a escolha proletária ou a escolha burguesa. “Uma delas é reivindicação da vida para todos; a outra, para alguns. A escolha burguesa é, no limite, assassinato ou, pior ainda, degradação das outras liberdades.” (Merleau-Ponty: p. 190)
O bom uso da liberdade própria consiste em agir de modo responsável de modo a não degradar as liberdades alheias. E a prática cotidiana do burguês é a negação da liberdade, da humanidade, da dignidade básica da imensa massa que ele explora, ou seja, que condena a uma existência de penúria, de sub-educação, de dura fatiga, de pouca permissão e abertura para a criatividade e o convívio cooperativo.
“A leitura decisiva da história depende, portanto, de uma opção moral: queremos existir contra outros ou queremos existir com todos, e a verdadeira perspectiva em história não é aquela que dá conta de todos os fatos, pois eles são equívocos, mas aquela que dá conta de todas as vidas.” (Merleau-Ponty, p. 190)
Em Sartre, pois, o engajamento político parece conectado a uma opção moral:
“Ele se apóia deliberadamente numa relação imediata ou moral entre as pessoas que o capitalismo arruína, que o olhar do mais desfavorecido nos lembra imperiosamente. Portanto, parece pensar que, ainda que indeterminado e com resultados imprevisíveis, o projeto comunista merece um juízo favorável, porque os menos favorecidos o exigem e porque não nos cabe ser juízes de seus interesses… A abolição desse poder, ainda que dê lugar a uma outra opressão, é em todo caso preferível.” (p. 237)
O valor do livro “Aventuras Da Dialética” está na capacidade de Merleau-Ponty expor o que há de problemático e ambíguo neste ideário, altamente sedutor, que consiste na “resolução de fazer existir a qualquer preço uma sociedade que não exclua ninguém” (p. 247). Aqueles que tem seu senso ético e suas responsabilidades políticas em estado desperto e não apático, que acreditam também na necessidade urgente de uma sociedade não-excludente, que estão engajados em lutas contra os privilégios injustos, fazem bem em refletir na companhia de Merleau-Ponty enquanto ele explora as aventuras da dialética através da história. A potência da crítica está em atividade no livro, capaz de questionar de maneira filosófica toda a complexa realidade das revoluções políticas, tanto as sonhadas quanto as realmente praticadas.
Fica claro para o leitor que Merleau-Ponty não aceita de bom grado a noção de que uma Ditadura do Proletariado é um meio necessário para a consecução do fim glorioso, prometido para o futuro, da Sociedade Comunista Sem Classes. Cairíamos numa armadilha ao apostar na doutrina de que “o fim justifica os meios” e aceitar que a construção da sociedade justa e igualitária passa por um período (provisório) de ditadura da classe em via de se auto-suprimir.
“Os marxistas têm plena consciência disso quando dizem que a ditadura do proletariado volta contra a burguesia as armas da burguesia. Então, uma filosofia proletária da história consiste em postular o milagre de a ditadura empregar as armas da burguesia sem se tornar algo semelhante a uma burguesia, de uma classe dirigir sem entrar em decadência, quando toda classe que rege o todo acaba se revelando, por isso mesmo, particular…” (p. 290)
Se criticamos o particularismo de interesse nos partidos e movimentos liberais-burgueses, não podemos cair na mesma armadilha e nos tornarmos particularistas, ou no limite sectários. O sectarismo não é o caminho para a construção de uma sociedade da multiplicidade que lida com seus antagonismos de maneira sábia, aberta, participativa, inclusiva. A lição de Merleau-Ponty aos revolucionários, aos que estão engajados em movimentos comunistas mundo afora, consiste em alertar: ao lutar contra o inimigo burguês, tome cuidado para não cair nos mesmos vícios. E a ditadura é um vício burguês com o qual o proletariado sai dos trilhos, aburguesando-se no lodo do que a burguesia produziu de pior, ou seja, o fascismo.
Merleau-Ponty parece exigir de nós, que estamos engajados na construção de um mundo menos desumano, de uma sociedade menos excludente, que pratiquemos e manifestemos um respeito à alteridade e uma tolerância à oposição que simplesmente não se permite em um regime de “Ditadura do Proletariado” – como o pesadelo Stalinista é fértil em exemplos, com seus expurgos, seus gulags e sua sistemática falsificação da história (que pôde inspirar Orwell a criar as distopias 1984 e Revolução dos Bichos). Meios vis conspurcam toda a aventura que propõe-se a conquistas fins bons, belos e justos.
Talvez Paulo Freire, escrevendo muito depois de Sartre e Merleau-Ponty, mas de modo algum indiferente aos debates existencialistas, tenha trazido uma contribuição valiosa ao debate ao frisar a importância fundamental da educação nesta conjuntura. Qual a contribuição da educação para a formação de sujeitos livres, ou seja, capazes de assumirem suas responsabilidades no mundo comum, palco de pluralidades em confronto?
A educação não é apenas, ou não está condenada a ser, apenas um epifenômeno da superestrutura, um campo de propagação de ideologias, um amontoado de celas-de-aula onde os prisioneiros são indoutrinados. A educação pode ser algo mais e melhor: instrumento para ensinar-nos a suportar nossa liberdade, ou até mesmo a amá-la, já que é bem precioso que tantos de nós jogamos no lixo – ou no colo de demagogos e tiranos – com trágico despudor.
Educação pode ser ação coletiva em prol da construção conjunta de sujeitos que assumam suas liberdades e responsabilidades, que ousem pensar criticamente, que sejam ensinados sobre a importância crucial da nossa congregação em prol da invenção de uma sociedade sem opressão. Este não é um objetivo qualquer, uma meta entre outras, mas talvez seja uma práxis imanente com o poder de dar sentido às nossas existências individuais. O sentido do eu passa pelo uso que ele faz de sua liberdade no campo de jogo com os outros.
Engajar-se contra a opressão é um excelente sentido para a vida, com a condição de compreendermos que não se trata de lutar para que os oprimidos possam se tornar opressores, uma noção que circula quando a educação é alienadora, mas sim de afirmar que cabe aos oprimidos e a seus aliados a missão histórica, sempre por fazer e refazer, de superar a opressão em todas as suas formas. Nem oprimidos, nem opressores, seríamos conviventes plurais em um mundo des-oprimido, liberto das servidões, onde nossa liberdade, livre de nos condenar às ocupações árduas da indignação e da revolta, hoje imprescindíveis, poderia se exercitar nas plagas mais doces e alegres da criatividade conjunta nos amplos âmbitos da cultura, da ciência, da filosofia, das artes-de-viver e conviver.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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