Neste sangrento Outubro de 2023, há uma <erupção de manifestações massivas, pelo mundo afora, eclodindo em solidariedade com o povo palestino> enquanto o Estado de Israel prossegue com sua ofensiva genocida contra Gaza que já ceifou mais de 8000 vidas, incluindo mais de 3000 crianças.
Uma produção A Casa de Vidro em Amsterdam:
Na multiplicidade de cartazes, bandeiras e gritos que tomam as ruas, chama-me a atenção, neste mar de indignações, um cartaz escrito a mão onde se lê: “Quando você precisa de centenas de protestos apenas para dizer ao mundo que bombardear crianças não está ok é quando você percebe que a humanidade falhou.” (Visto aqui)
E aqui estamos, gastando palavras e cuspindo saliva, nesta tarefa absurda e provavelmente fracassada de ensinar o óbvio aos que estão surdos de raiva: não, massacrar crianças em ataques aéreos não pode ser descrito como “auto-defesa”, nem como um meio necessário para atingir o fim glorioso de dar uma Solução Final a um grupo jihadista.
Com a mesma sensação de pesar diante de uma humanidade falida, acesso as notícias na Aljazeera que repercutem os <dados da Save The Children> e da <Unicef>: o exército israelense já matou mais de 3100 crianças palestinas entre 8 e 29 de Outubro – e nenhuma delas, até onde sei, era militante jihadista. Enquanto escrevo este texto que de nada servirá para parar o morticínio, a cada 10 minutos uma criança perde a vida para a agressão militar sionista no enclave palestino onde Israel, por anos e anos, não permite a entrada suficiente de alimentos, combustíveis, medicamentos nem de nada daquilo que é necessário para uma vida humana digna.
O que são estas jovens vidas destroçadas pelas bombas que chovem dos céus, meros “danos colaterais” da “Guerra Contra o Terror”? Que tipo de psicose coletiva é esta que permite aos manda-chuvas de Israel, numa arrogância infinita, acreditar que tem não só os EUA e boa parte da Europa a seu lado, mas a benção de Jeová para causar a morte violenta e prematura de crianças? O sionismo se apressa sempre a repetir a ladainha: estamos fazendo tudo para acabar com a raça dos terroristas.
E podemos imaginar o uma reunião, a portas fechadas e com celulares deixados na antesala, onde Netanyahu, seus ministros e seus generais, falam entre si aquilo que nunca diriam numa conferência de imprensa ou numa reunião diplomática: uma criança palestina não é nada além de um potencial soldado jihadista a ser cooptado pelo Hamas; o moleque de hoje é o soldado islâmico de amanhã; e, além do mais, todos sabemos que nas Intifadas do passado teve muita molecada tacando pedras e até molotovs em nossos tanques; donde se segue que ter piedade desses pestinhas destinados a se transformarem em monstros terroristas seria apenas uma meiguice afeminada que não cabe a nós, machos com a missão de no mercy – and so help us Jehovah and the U.S.A.
Terrorismo-de-Estado e genocídio é o que o Estado de Israel – supremacista, racista e de extrema-direita – está praticando neste momento. O presidente Lula foi enfático em sua declaração pública e foi um dos poucos chefes-de-Estado no mundo que teve a coragem de usar as palavras certas: “não é uma guerra, é genocídio”.
As ocorrências de 7 de Outubro, quando o Hamas realizou um ataque sem precedentes a território israelense, matando mais de 1400 pessoas e fazendo mais de 200 reféns, são decerto atrocidades chocantes, mas este raid terrorista certamente não foi um relâmpago-com-trovões despencando de um céu azul. O céu está nublado faz tempo no campo de concentração chamado Gaza, território que Israel mantêm apartado do mundo, onde a escassez de água potável, de alimentos, de empregos, de eletricidade, de dignidade básica, é o amargo pão nosso de cada dia.
O objetivo explícito do Hamas é conquistar a libertação de centenas de presos políticos palestinos que estão retidos em condições para além de miseráveis nas prisões israelenses e acabar com a afronta do apartheid que faz de Gaza e da Cisjordânia territórios afligidos por constante escassez das condições básicas para uma existência humana digna. Sabemos ainda que o Hamas venceu eleições em 2006, o que nem o Israel nem o Ocidente aceitaram, e que 7 de Outubro participa de um longo processo histórico inaugurado pelo 11 de Setembro de 2001, a <“Guerra Contra o Terror” encabeçada pelos EUA – “In God we trust!” – e que causou mais de 4 milhões de mortes (a estimativa é do Watson Institute da Brown University)>.
Aprendi a não confundir a violência estrutural do opressor com a violência reativa dos oprimidos; não se trata de condenar a primeira e passar pano para a segunda, trata-se de distinguir e enxergar que até mesmo nossas condenações devem vir com suas devidas distinções. Condenar o genocídio que as Forças Armadas de Israel estão cometendo novamente nos territórios palestinos não implica condenar o judaísmo em bloco nem tacar lenha na fogueira do antisemitismo: o sionismo é parte e parcela do judaísmo, e não deve ser confundido com o todo; inúmeros judeus saíram às ruas e redes para se manifestarem com “não em nosso nome!” e sabemos que vários israelenses odeiam o regime de Netanyahu e desejariam ser governados por outra coisa que não este sionismo fanático e lunático que aceita o Holocausto de crianças, a destruição de escolas e hospitais, a devastação de prédios residenciais e o bloqueio na entrega de comida como medidas aceitáveis na guerra sagrada do Povo Eleito contra os “monstros” e os “novos nazis”.
Similarmente, o Hamas é parte e parcela da sociedade palestina, e não deve ser confundido com seu todo; o fundamentalismo islâmico e suas práticas ditas terroristas, de aniquilação em massa, inclusive de civis, também estão no acervo das atrocidades intragáveis do mundo contemporâneo; e não significa aplaudir quando a gente se põe a compreender que o jihadismo também é sintoma da opressão sofrida pelos povos que têm a bota imperial pisando em suas caras.
Por mais ateu que eu seja, e por mais que eu considere legítimo o ativismo ateísta em prol de um mundo que caminhe para a secularização e para longe da teocracia, é muito ingênuo pensar que a solução desta catástrofe passaria pela conversão dos fiéis de Alá, Jeová ou do Deus cristão ao ateísmo. Não é factível no curto prazo, nem mesmo plausível que identidades de milhões de pessoas possam ser des-convertidas em massa, ainda mais não tendo os ateus poder midiático à altura desta tarefa quase impossível.
<“Acabar com o apartheid é o único caminho para a paz”, escreve Burtenshaw na Jacobin>. Sem dúvida, o apartheid é a raiz do problema. E o problema tem raízes históricas que é preciso compreender: não há solução para o futuro sem uma compreensão da genealogia do conflito. A humanidade ainda não superou a Segunda Guerra Mundial, eis um fato – o aftermath da maior carnificina da história de nossa espécie foi extremamente problemático, o que é emblematizado pela criação, na segunda metade da década de 1940, de dois novos estados: Israel (“o Estado judeu”) e Paquistão (“o estado muçulmano” no subcontinente indiano).
Nas últimas décadas, pudemos assistir a ascensão de um sionismo extremista no leme do estado de Israel. Os judeus, que já sofreram com os guetos, com os pogroms, com as diásporas, com os campos de concentração, tiveram a infelicidade histórica de empoderarem e darem hegemonia a uma ideologia venenosa, fundamentalista, racista, imperialista, que trata os palestinos como “baratas” e que justifica atrocidades com o terrível argumento de um “direito divino”. Os sionistas de Israel adoram criticar a “guerra santa” dos jihadistas – estes animais monstruosos – mas o sionismo também tem sua Guerra Santa e consegue cooptar o Ocidente, a começar pelos EUA, para um empreendimento que os cristãos também enxergam como uma nova Cruzada. É um festim diabólico de fanatismos que demonstra o quanto os três monoteísmos dominantes no planeta não conseguem fornecer nenhuma envergadura ética às vítimas de seus dogmas.
No dinamismo da História, não há nunca como fixar as posições de opressor e oprimido, de perpetrador e de vítima. Os judeus que sobreviveram ao Holocausto, após o fim da 2a GM, com mediação da recém-fundada ONU, ganharam o direito ao um Estado Nacional, mas fora da Europa. Esta pseudo-solução é a raiz da atual catástrofe: foi em território Europeu que mais de 6 milhões de judeus foram exterminados pela maquinaria de industrialização da morte do III Reich nazista; mas após o colapso do regime genocida alemão, a situação dos judeus europeus que sobreviveram à Shoah não foi resolvida pelas potências européias com alguma proposta que envolvesse a acolhida do estado judeu em território Europeu; resolveu-se destiná-los ao Oriente Médio e para instalá-los ali, em uma terra que não estava vazia, foi preciso expulsar os palestinos, varrê-los como baratas para longe de suas casas. A fundação do estado de Israel já começou mal das pernas com a violação dos direitos do povo palestino que estava há séculos naquele território, com uma diáspora forçada dos palestinos, com massacres inomináveis nesta fundação sangrenta. E que continua a sangrar.
Pelo jeito nem a ONU (cuja Assembléia Geral aprovou com vasta maioria o cessar-fogo e a ajuda humanitária emergencial), nem a Aljazeera (a principal empresa de mídia operando na região com jornalismo de excelência) podem operar neste “bastião das liberdades da Civilização Ocidental” que é Israel; pelo jeito, médicos e enfermeiras que trabalham na Palestina merecem morrer bombardeados juntos com a criançada e com os internados. Neste momento em que a pilha de cadáveres palestinos chega perto de atingir 10.000 corpos (e contando…), há um completo colapso do sistema hospitalar e da entrega de comida e água para Gaza. E o que faz o “Ocidente Civilizado”, a Casa Branca e Bruxelas? Passa pano para a tese ensanguentada de “auto-defesa” diante do “novo 11 de Setembro”. Como se as atrocidades do Hamas pudessem ser descritas como o mal radical cometido pelos “Novos Nazis”, como papagueou Netanyahu em rede nacional.
Esta expressão é assombrosa: “os novos nazis”. Netanyahu a dirige aos combatentes do Hamas, mas o mais irônico é que a expressão poderia caber bem nos próprios sionistas encabeçados hoje por Netanyahu, e em outros tempos por Ariel Sharon. Seria interessante comparar o que o III Reich instalou nos campos de extermínio com o que o sionismo fez do enclave do apartheid mais distópico do planeta – a Palestina ocupada, ameaçada de uma segunda Nakba. Parece que o sionismo israelense está seguindo a cartilha nazista em vários pontos. Quando lemos o <relatório recente da Oxfam>, percebemos que Israel, para além de bombas, está matando em massa pela imposição da fome e da sede. Lembram-se dos corpos esquálidos, só pele-e-osso, dos sobreviventes dos campos de concentração? Pois é…
Com a “envergadura moral” concedida por sua experiência pregressa de Guerra Contra O Terror, o USA pretende agora guiar uma nova Cruzada contra o “Axis of Evil”: Al Qaeda, Isis, Hamas, Hezbollah, pro complexo industrial militar é sempre bom ter um inimigo demonizado contra quem impelir com toda a fúria a máquina de guerra. Depois das bombas, eles prometem a reconstrução: McDonalds em Ramallah, quem sabe? Real Estate de Wall Street, dominada pelos repubicanos supremacistas, construindo Trump Towers sobre as ruínas de Gaza? Que sonho de futuro têm os operadores da Doutrina do Choque que neste momento volta a operar em modo-genocídio?
Nenhuma resolução da ONU conseguiu por enquanto ser aprovada devido ao poder de veto do Xerife Yankee. A proposta do Brasil, que preside o Conselho de Segurança no mês corrente, conquistou quase-consenso… Só o USA foi voto contrário e derrubou com a proposta com seu torpedo imperial. O Império que injeta bilhões de dólares anualmente nas forças militares sionistas, não importa quão de extrema-direita e supremacistas sejam, agora posa de bom moço: costuraram com o Egito para que 20 caminhões de ajuda humanitária penetrassem em Gaza através da passagem de Rafah. Uma gota num oceano de sede, um grão numa imensidão de fome, um band-aid no gigantismo do sofrimento.
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Publicado em: 31/10/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A desumanização é uma coisa esquisita demais. O extremismo religioso de base fundamentalista deveria ser regulado de alguma forma. Assim como as barbáries cotidianas nas grandes cidades e no território rural mais distantes. Aqui no Brasil a necropolitica já apontou um caminho fascista e genocida a lá Brazuca: destruir as matas, secar os rios, quebrar qualquer motivo para preservação e avançar no território, tomando conta das águas submersar nos aquiferos. Plantar o Agro da morte e matar gente como política de estado. Desertificar a amazônia e dominar a propriedade de água subterrânea. Foda demais esse texto meu irmão Carli. Apesar de ficar fora do contexto, penso que o que tá acontecendo com a Palestina mostra pra gente como o imperialismo pode atuar em qualquer lugar no mundo como oportunismo e fomento a extrema violência. Enfim….FritaÇões indignadas.
Detalhe: o fora de contexto sou eu hein mano, tentando fazer um paralelo direto entre a Palestina e Brasil. Mas, faltaram as palavras certas. AbraSUS.
Salve, manoLéo, valeu demai pelas fritações indignada! Estou de acordo e em sintonia emocional com o que você coloca. Aliás, o regime de Bolsonaro e o regime de Netanyahu são duas manifestações da necropolítica que surfa na onda dos fundamentalismos religiosos, da xenofobia, da glorificação da ultraviolência. São também regimes ecocidas, que produzem a terra arrasada, que não se interessam em nada pelos temas cada vez mais urgentes da crise climática, da perda de biodioversidade etc. Acho válida e dentro-do-contexto a analogia entre Israel sob domínio sionista e o Brasil sob domínio Bolsofascista, ambos são regimes de extrema-direita e que tem no racismo um de seus dogmas centrais. O Jair ‘Genocida’ Bolsonaro sempre se manifestou muito próximo do sionismo israelense e neste momento deve estar aplaudindo o massacre na faixa de Gaza – recentemente ele veio a público para falar merda sobre o cenário geopolítico e tentou conectar Lula e Hamas, enquanto pediu um Pai Nosso para as vítimas israelenses do 7 de Outubro. Nem uma palavra sobre 8000 palestinos massacrados pela punição coletiva que os sionistas estão destravando neste momento…
(O boca-de-esgoto – “Bolsonaro presta solidariedade a Israel e liga Lula ao Hamas”, Notícia no Estado de Minas: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/10/07/interna_politica,1573188/bolsonaro-presta-solidariedade-a-israel-e-liga-lula-ao-hamas.shtml)
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LeonardoVergara
Comentou em 31/10/23