“Actions speak louder than words
And I’m a man of great experience…”
OTIS REDDING, Hard to Handle
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.com
Neste Março de 2023, enquanto a expectativa se assanha diante da iminente chegada dos Black Crowes ao Brasil, para um show único, em São Paulo – o primeiro da banda no país em 27 anos – re-escuto a discografia dos caras e concluo de novo: este aqui só não será considerado um monumento impecável na história do rock por aqueles que estão com os tímpanos estragados ou a sensibilidade alienada.
Tão cremoso quanto o Cream, tão groovy quanto os Stones, tão empolgante quanto os Faces ou os Stooges, o grupo chega ao país para celebrar seu álbum de estreia Shake Your Money Maker (1990) – tentem me apontar um álbum com mais de 30 anos que soe tão fresco e potente quanto este ainda soa hoje. Em qualquer álbum dos caras que você der um play vai logo ser atropelado impiedosamente uma musicalidade acachapante, encantatória – ao vivo, então, nem se fala (para quem gosta de adjetivações poéticas, poderíamos dizer: Black Crowes, inefável).
Neste mês, além de Sampa, as capitais latino-americanas Santiago, Buenos Aires e Cidade do México também recebem a South America Tour 2023 do grupo liderado pelos irmãos Chris e Rich Robinson. “Os Crowes apresentavam, logo de cara, neste álbum de estreia, uma maçaroca hard rock cascuda e cheia de ginga”, lê-se na coluna de Carlos Eduardo Lima no Célula Pop. Veremos em breve no palco se, mais de 3 décadas depois, os tiozões ainda estão cascudos e cheios de ginga.
Desde 1990, a banda oriunda de Atlanta, Georgia (EUA) vem consolidando uma carreira das mais inatacáveis – o debut, que vendeu globalmente mais de 3 milhões de cópias, levou-os aos “tops of the pops” e “billboards” através do estouro de pelo menos 4 hits, “Twice As Hard”, “Jealous Again”, a power-ballad “She Talks To Angels” e a turbinada releitura da canção de Otis Redding “Hard To Handle” (de 1968).
Bem longe de ser apenas uma four-hit-wonder que some após seu bem-sucedido disco de estréia, a banda cometeu na sequência um dos álbuns de classic rock dos anos 1990 mais incensados (merecidamente!) pela crítica musical, The Southern Harmony and Musical Companion., propulsionado também aos holofotes pelo sucesso de “Remedy”. Com o incremento guitarrístico trazido por Marc Ford e com composições de grandiosidade Zeppeliana, o álbum trazia ainda canções que nunca mais cessaram de estar entre as prediletas dos fãs como “Thorn In My Pride”, “Sting Me” e “Sometimes Salvation”.
De lá pra cá, a musicalidade sedutora da banda fluiu e evoluiu através de uma série de discos de estúdio (totalizando, salvo engano, 8 álbuns) sempre coesos, muito bem gravados, timbrados com o maior bom-gosto, e sempre reveladores de uma altíssima carga de virtuosidade, uma musicianship rara. Muito mais do que apenas um grupo retrô querendo fazer cópia espetaculosa de Led Zeppelin (feito o Greta Van Fleet), o Black Crowes – como já indica suficientemente a parceria com Jimmy Page no espetacular show (e CD duplo) Live at The Greek – foi o mais perto que a “Geração Grunge” chegou de ter um Led Zeppelin pra chamar de seu.
COBERTURA DO SHOW
LINK PRA FB: https://fb.watch/jk4_k1V85e/
TMDQA – O Rock and Roll em sua forma mais classuda foi o protagonista da grande festa que o The Black Crowes promoveu em seu primeiro retorno ao Brasil após quase 30 anos. E, olha… quem não foi, perdeu!
A apresentação única no Brasil aconteceu nesta terça-feira (24), no Espaço Unimed, em São Paulo. O grupo dos irmãos Rich e Chris Robinson, que só veio ao país uma vez em 1996, trouxe pra gente a turnê que celebra as três décadas de seu disco de estreia, o imbatível Shake Your Money Maker (1990), na qual toca o álbum clássico na íntegra.
LINK: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2023/03/15/black-crowes-show-sp-resenha/
Em 2010, no blog Depredando o Orelhão, elegi Croweology – uma espécie de coletânea das obras-primas da banda, reunidas em versões classudas e acústicas num CD duplo – como um dos álbuns do ano e escrevi:
É na estrada que o Black Crowes se sente mais em casa. Que o diga “Wiser Time”, uma das mais lindas baladonas de Amorica, um hino em celebração da vida errante, cigana, boêmia, que louva o estilo-de-vida pé-na-estrada de quem sai em busca de tempos mais sábios. Eddie Vedder fez um excelente serviço com a trilha original de Into the Wild, mas “Wiser Time” também seria um belíssimo pano-de-fundo sonoro para as aventuras de Alexander Supertramp, no Alaska e além… Aos que dizem “pra quê mais uma música sobre a estrada”, eles respondiam: “aposto que você nunca saiu de casa.”
Mas 20 anos vivendo à la Easy Rider, até para o mais entusiástico hippie, é algo um tanto desgastante. Chega uma hora, lá por perto dos 50, em que os cabeludos, depois de alguns milhões de quilômetros rodados e alguns milhares de miligramas de ácido ingeridos, escolhem tirar um descanso da vida de rolling stone pelas ladeiras do tempo… They choose to settle down. Começam a sonhar com a serenidade de uma cabana de madeira no bosque, lotada de vinis e violões, onde viver só fumando um baseado por período (it’s wake and bake, dude!) e ouvindo clássicos do Grateful Dead ou da The Band. “Who could ask for anything more?”
Tenho quase certeza que este é o fim da linha. Os irmãos Robinson dizem estar entrando num hiato (palavrinha cada vez mais recorrente: vide Los Hermanos e Sleater-Kinney….), mas suspeito que é só para que o pranto dos fãs não seja histérico, inconsolável. Eles dizem “hiato” e com isso nos dão de lambuja a esperança de um retorno, sabe-se lá quando. O fato é que ficaremos sem os Black Crowes por um punhado de anos, mas com um belo legado a explorar, re-ouvir, re-curtir, re-amar.
Como presente de despedida, os caras gravaram para os fãs este delicioso duplaço Croweology, com 20 das melhores canções da banda rearranjadas num classudo formato semi-acústico. Digamos que é o equivalente de um MTV Unplugged, mas realizado sem quaisquer obrigações contratuais com grandes emissoras de TV ou interesses corporativos. Liberdade não falta para que a banda encare long-distance-trips: 3 faixas tem mais de 9 minutos de duração, e apenas uma acaba em menos de 4′. Os Crowes aqui planam no ar com tranquilidade, sem pressa, viajando nos trilhos da memória e curtindo-se no processo de gerar curtição. Share the ride!
Talvez seja preciso já ser admirador de longa data da banda para enxergar este álbum pelo que ele é: um rico tesouro que nos deixam alguns amigos queridos antes de darem aquela sumida no mundo. Desde o primeiro play em Croweology, eu abri meus ouvidos para o que viria não com desconfiança, senso crítico, como um júri na frente de um réu, mas com o amplo afeto que os Crowes já me conquistaram. Neste disco, they preach to the converted. E eu, faz tempo, sou assecla entusiasta deste culto sem deus cuja única igreja é a estrada, cujo único messias é o som e cuja única pregação é em prol da paz, do amor e de uma rock’n’rolling soul…
Aqui pára, por hora, a caravana hippie’n’roll dos Crowes. Ao invés do pranto, prefiro a alegria por terem existido. Let’s wave goodbye. And let’s keep on playin’ these songs!
No ano anterior, 2009, eu tinha celebrado, no mesmo Depredando o Orelhão, o injustiçado By Your Side, quinto álbum de estúdio, sucessor do também estupendo e subestimado Three Snakes And One Charm, escrevendo:
By Your Side, o disco dos Crowes que mais ouvi na vida, é uma fodástica aula de rock and roll ministrada por caras que são pHds no assunto. Ouvindo este álbum dos mestres – ou qualquer dos outros álbuns, na real! – não é absurdo concluir: eles merecem entrar na linhagem do Led, dos Stones, do Cream e dos Faces como mestres absolutos na história do “blues-rock” – ou simplesmente do rock fucking roll. Há quem prefira The Southern Harmony and Musical Companion, o clássico de 1992, que trazia o hit fantástico “Remedy”, mas pra mim By Your Side é um disco ainda mais empolgante, flamejante, apaixonante! Foi o primeiro álbum deles que descobri, lá pelos 15 aninhos de idade, e ele me fez tocar air guitar até que me doessem as juntas e me esgoelar até ficar rouco no chuveiro. E me fez, desde então, colocá-los no topo do meu panteão musical, nos céus, agradecendo-os com ardor por serem desses que vivem para dizer: “rock and roll ain’t noise pollution, rock and roll ain’t gonna die!” (AC/DC).
Pra mim o Black Crowes é como o Led Zeppelin, se este se libertasse de todas as suas pretensões artísticas e se abandonasse, com todo o entusiasmo de que era capaz, ao mais puro hedonismo rocker. A vontade de “fazer boa arte” parece pra lá de secundária para esses Corvos Alucinados, capazes de deixar nossos tímpanos em estado de completa folia. A “missão”, muito mais urgente e atraente do que criar “obras de arte”, parece ser realizar um rock and roll que é pura exaltação da vida – como tanta boa arte, por vezes, consegue ser. E deve ser! Eles fazem pela via rocker o que a boa arte – especialmente quando é dionisíaca e embriagada! – por vezes é capaz de fazer: exaltar a vida e fazer-nos amá-la! Tanto que imagino que eles talvez concebam o rock and roll como uma religião sem transcendência, que trata de levar-nos a precários paraísos, aqui e agora, nas asas do som. Como as estrelas fazem com o céu, as roupas com os corpos, os perfumes e os sons musicais com o ar, estas músicas decoram a vida: deixando-a mais bela, mais bem-vestida, mais excitante e tão fodidamente cool que sentimos que jamais nos faltará tesão para vivê-la e devorá-la.
Quase todas as canções por aqui tem uma garota como interlocutora, o que não nos deve fazer saltar de imediato para a conclusão de que são simplesmente “canções de amor”. Há, por aqui, monumentais canções românticas, algumas que entram fácil para o rol das mais belas já compostas, mas o buraco é mais embaixo e o leque temático é mais aberto. “Stop Kicking My Heart Around” é um quase-irado anátema contra uma mulher sádica e sapeca, que não pára de chutar por aí o coração do nosso pobre eu-lírico. Tadinho! É um blues-rock fluido, líquido, empolgantérrimo, que lembra um cruzamento entre o Cream e o AC/DC, entre os Small Faces e o Aerosmith.
Nele parece que se consegue, através da terapêutica do cantar e do tocar, uma superação das forças corrosivas do ódio através de uma catarse ao mesmo tempo irada e bem-humorada. Chris Robinson, de modo algum, soa como um homem ferido, que lambe suas feridas no escuro ou que chora suas lamúrias como um emo ou um gótico. Não se deixa derrubar pelo tumultuado chutar-pra-cima-e-pra-baixo que realiza a diabinha, como uma futebolista pé-de-bagre no esporte dos corações, mas soa muito mais como um homem inabalável, selvagem, aos reclamos contra a crueldade feminina ao mesmo tempo que ruge sua força feito um leão plantiano! E como é que pode o animal cantar desse jeito?!? É como Robert Plant, Bon Scott, Mick Jagger, Steven Tyler e Rod Stewart liquidificados e anfetaminados! Bloody hell!
“I’ve been down, but never on my knees”, canta ele em “By Your Side”, e talvez seja, ao mesmo tempo, uma lembrança de suplícios enfrentados (“i’ve been down…”) e uma orgulhosa demonstração de força de superação (“but never on my knees”!). A sensação, ao ouvir essa belíssima balada, é a que o cantor está nos dizendo: a vida tenta me derrubar, mas não consegue. Que chovam sobre mim rasteiras e carrinhos, não importa: ao chão não me tacam! É o espírito ou a vibe que também anima “I’m Not Down”, do The Clash, uma das melhores músicas do London Calling.
E é essa sensação interna de potência e de intensidade vital, que jorra do cantar de Chris Robinson, e que parece sintoma claro de sua personalidade, o que garante que ele possa fazer tantas promessas à amada: “If you feel your heart is breaking / And all your friends are faking / When it’s giving and not taking / I will be by your side”, promete. E sentimos que, mais que açúcar, é força o que ele fornece. Esta não é uma canção de amor idiota, em que um paspalhão derrete-se em promessas impossíveis a uma mulher que chora por não poder ter, mas sim a emanação exaltante de uma alma tão confiante em si mesma que sente-se capaz de ser apoio sólido para outra alma.
Oferecer apoio e amparo à amada, através de uma música, com certeza não é idéia nova: já rendeu, além de cerca de um milhão e 400 mil péssimos pops românticos chicletudos que infestaram os tops-of-the-pops história afora, alguns lindos clássicos do soul, como “Lean On Me”, de Bill Withers, alguns hits irresistíveis de R&B, como “I’ll Be There For You”, e alguns belos folks. Mas raras vezes esta promessa, na história da música pop, soou tão crível, e tão apaixonadamente expressa, quando na voz de Chris Robinson.
A primeira estrofe de “By Your Side” parece ironizar os antagonismos humanos, retratando sem dó como a miséria de alguns constrói a riqueza de outros e a dor testemunhada pode gerar em quem a vê secretas alegrias. “When you’re lost, then I am found / When you slip, I hold my ground / When I fall, please take a bow / And when you’re up, just remember I am down”. Na segunda estrofe, a ironia se transmuta em crítica, quase em lição de moral, quando Chris canta: “People looking for fortune and fame / They don’t know that it’s all the same / It’s like any other game / You know there’s a loser, but it’s allright”. Quem busca fama e fortuna sabe muito bem que a conquistará ao preço da miséria e do anonimato dos que não as terão e ficarão pelas sarjetas, e que são sempre a imensa maioria. Como um vencedor da medalha de ouro que não sente nem uma lágrima de piedade e tristeza vir a seus olhos ao presenciar o decepcionado sofrimento do lanterninha ou do segundo no pódio.
“Heavy” é uma eufórica celebração de um amor que começa, repleto de encantamento e excitação, quando as incertezas quanto ao vínculo tornam-se uma confortável solidez e os pombinhos podem se dizer com absoluta convicção: “somos um do outro”. E às vezes um deles sai, enlouquecido de tão contente com o início de seu êxtase, com o desencadeamento do pacto que tantas flores e orgasmos lhe trará, e corre para fazer um rock and roll. Surgem assim pérolas como “Heavy”. Se esta “mina” é chamada de “pesada”, não é certamente por ser gorduchinha ou por ser um fardo nos ombros do cara. É “pesada” no sentido de pesar na vida e no coração, como só sabem pesar as coisas que são significativas e transformadoras, benignas e tonificantes. “You’re so heavy, heavy, heavy…”, canta Chris, e é um elogio, uma palavra de amor , e não uma punhalada de escárnio ou de um reclamo de irritação. Você pesa para mim: para mim você conta muito, e não tem a leveza necessária para ser arrastada do meu galho como uma folha que qualquer brisa branda faz voar pelos ares. “For the first time, I know you’re mine!”, diz o refrão, e é essa alegria extrema de descobrir que pela primeira vez a realidade fulgurante e inegável de um amor sólido o que faz esse foguete em forma de música decolar com tamanho estardalhaço.
Talvez digam que estou “forçando a barra” e transformando versos bestalhões em bela poesia. Pode até ser. Se pegarmos, por exemplo, uma canção tão clichêzenta e com gosto de comida requentada como “Diamond Ring”, vai ser difícil negar que a poesia é tosca e o lirismo pobríssimo: “You’re the reason I want to sing / You make me feel like a king / I love the sunshine that you bring / I think I’ll buy you a diamond ring!” Esse rompante de consumismo, no final, até nos deixa com medo de que se trate de um eu-lírico ricão tentando comprar o amor da moça com presentes deslumbrantes! Mas certamente não é o caso aqui: a sensação que nos passa a música é de uma embriaguez de alegria tão envolvente que nos faz sair pôr aí passarinhando e assobiando melodias solares, a cantar de felicidade quase sem razão (ora, Ela é a razão!), sentindo-nos como reis, deliciados debaixo das carícias que nos faz o sol – ou seja, todos esses rompantes de euforia que às vezes têm os amantes e os apaixonados e que soam tão abomináveis e irritantes aos solitários e aos deprimidos. Os Black Crowes nunca tiveram medo da felicidade, e é nada menos que felicidade que eles, por vezes, espalham pelo mundo como a peste. There’s nowhere to run, nowhere to hide, their bliss is gonna get ya!
“Diamong Ring”, pois, pode ter uma letra que soa, lida no papel, como uma imensa bobagem; mas aquelas palavras, quando cantadas, nos contaminam de excitação e alegria até que essa coisa chamada “boa poesia” pareça uma imensa idiotice. E logo já estamos, como aquele eu-lírico, transbordantes de gratidão e querendo sair correndo para comprar o que de mais precioso há na terra para dizer, com ele, à mulher amada, do tamanho do nosso “obrigado”. Há também por ali momentos brilhantes, como “When you smile it should be a crime / And you do it to me everytime”, que lembra o lado extremamente sagaz e espirituoso dos românticos meio sacanas. Chico Buarque já escreveu algo parecido em seu hiário “Tango Do Covil” quando disse: “Sua beleza é quase um crime”. E um pouco de sacanagem faz bem a todo bom romântico!
“Only a Fool”, por sua vez, é uma das mais lindas. Não se enganem: é assim que soa, que deveria soar, que não pode deixar de cantar, um homem que é feliz no amor! É essa a canção que cria uma alma masculina que achou seu complemento, seu fermento, sua alegria, seu apoio, numa alma feminina que abraça e por quem é abraçado. “You’re my lover, my soul, my best friend / And I don’t want this to ever end”, canta Chris. E, mais uma vez, lidas no papel, essas palavras podem parecer bestices e clichês, presentes como parecem estar em mil outras canções que no palco do pop já desfilaram seus 15 minutos de fama. Mas, ouvidas na voz de Chris Robinson, soam como testemunhos muito verdadeiros e acreditáveis de um sentimento interno de potência e força que só o toque do amor é capaz de desencadear.
Já “Go Tell The Congregation” concebe a comunidade religiosa como uma espécie de divã de psicanálise gratuito, onde as pessoas desabafam seus fantasmas e cospem fora seus demônios. Até a visão de religião do Black Crowes é catártica! Não surpreende, pois, que a visão de vida e de arte do Black Crowes seja, pois, pura catarse, e no bom sentido: purificadora, purgadora, higienizadora da alma. É uma música religiosa, no sentido estrito da palavra? Não: pois não é música de pregação, que tenta convencer os incréus a abraçar a fé, nem muito menos uma música em louvor do Criador e sua hoste de anjinhos. É, muito mais, um libelo em favor da solidariedade humana, como se a igreja pudesse gerar certos vínculos sociais úteis às pessoas presentes naquela agremiação. “When you want to lose your blues / When there’s nothing left that you can do / When you want to tell the truth / When the devil’s gotta a hold on you”, canta ele, e um insistente coral gospel adiciona, ao fim de cada verso, a conclamação imperativa: “Go tell the congregation!” Trata-se da religião como uma espécie de grupo de ajuda mútua , que cria uma rede de solidariedade onde uns possam ouvir os problemas dos outros, apoiando-se uns aos outros, mais ou menos como um encontro da Alcóolatras Anônimos ou das Estupradas Traumatizadas.
Tô um pouco de sacanagem, claro. Mas é só pra justificar pra mim mesmo o fato estranhíssimo de eu ser capaz de amar tanto uma música de temática profundamente religosa. É que o Black Crowes é uma banda tão fodida de boa que até fazendo certos róques altamente GOSPEL eles soam legal pra caralho (e legal-pra-caralho certamente não é o qualificativo que mais costumo usar para falar de música gospel!). Em vários momentos do álbum, um coro sensacional de negonas, cantando no background como se estivessem tomadas pelo Espírito Salto no altar da Capela Sistina, cantam de um modo tão fodástico que sou obrigado a admitir: não não não, os ateus não são capazes de cantar assim!
Das melhores bandas da história do rock, o Black Crowes foi aquela que parece ter se apropriado com mais espírito e entusiasmo da “elevação” da música gospel, quando grande parte das outras gigantes do estilo – o Led Zeppelin, os Rolling Stones, os Faces, o Lynyrd Skynyrd… – se enlamearam muito mais nos lodaçais do blues. O Black Crowes me soa como um bando de hippies cabeludos, fedorentos, cool as fuck e autenticamente apaixonados por rock and roll – e que invadem a Igreja para mostrar aos caretas como é que se celebra uma missa fodástica. São os profetas de uma religião que é, com absoluta certeza, tão melhor que todos os monoteísmos ocidentais e todas as místicas orientais: o rock and roll! Taí uma boa definição, talvez: o Black Crowes faz música como se o rock and roll fosse uma espécie de religião, e uma que nos dá acesso a tais êxtases e elevações que nunca mais precisaremos de um Cristo.
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Publicado em: 08/03/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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