Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
O mundo se despede, em Janeiro de 2023, de um ícone cultural que marcou indelevelmente os primórdios do movimento punk, Tom Verlaine (1949 – 2023): aos 73 anos de idade, faleceu o influente artista que liderou o Television nos anos 1970 e gravou 10 álbuns-solo entre 1979 e 2016 (necrológios foram publicados no G1, BBC, The Guardian, dentre outros). Em homenagem póstuma a ele, relembro aqui n’A Casa de Vidro alguns motivos que me levaram a eleger Marquee Moon um dos 10 melhores discos de sua década e recupero a crônica sobre o show da banda que presenciei em 2005 no SESC Pompéia.
O Television surgiu na hora e no lugar onde o punk rock estadunidense estava começando a decolar: na metade dos anos 70, na cena que rodeava o CBGB’s, o pub novayorkino que seria tão crucial para a efervescência da contracultura proto-punk, punk e new wave, fez companhia aos Talking Heads, ao Blondie, aos Dead Boys e a muitos outros grupos nesta renovação sônica e comportamental tão significativa que começou a varrer o mundo na esteira das inovações propostas por MC5, Stooges, New York Dolls e Velvet Underground.
Foi ali em NYC, circa 1977, que o grupo liderado pelos guitarristas Tom Verlaine e Richard Lloyd fez sua primeira apresentação ao vivo, para uma dúzia de gatos pingados reunidos no CBGB, incluindo uma mocinha genial e futura diva da contracultura chamada Patti Smith – ela sairia dali confessando-se absolutamente apaixonada pelo vocalista de voz fanha e pretensões poéticas, dotado de raras ambições artísticas, que começava a despontar em Verlaine, e os dois teriam um relacionamento amoroso passageiro mas que deixou marcas na obra de ambos.
Completavam a trupe do Television o Billy Ficca, um baterista de orientação jazzística, e o baixista Fred Smith, substituto do membro-original Richard Hell – que montara sua própria banda e acompanhado pelos Voidoids marcaria época com outro dos melhores álbuns da história do punk, o esplêndido Blank Generation (já dichavado aqui no site).
Apesar de estarem no epicentro na ceninha punk que começava a pegar fogo, a banda se vinculava pouco ou nada ao estilo que se notabilizou por canções frequentemente construídas com três power-chords, bateria frenética e gritaria estrondosa como os Ramones e – do outro lado do Atlântico – os Sex Pistols, o Damned e o The Clash. O Television sempre teve uma aura mais cult, um virtuosismo instrumental mais refinado, e um clima de intelectualidade e experimentação que tornava a band dificilmente rotulável como punk – surfando na primeira onda deste, já eram new wave e já tinham pé no indie-prog e no pós-rock, tanto que viriam a influenciar bandas tão diversas quanto Echo & The Bunnymen, Mogwai, Wilco e Strokes.
Tinham certa afinidade com a estética do Velvet Underground ou com o som de certas bandas do rock clássico como o Lynyrd Skynyrd e o Grateful Dead, sem falar em grupos de fusion e progressivo. Verlaine citava com frequência seu tesão pelos Rolling Stones, seu gosto pelo compositor clássico Maurice Ravel e sua condição de aficionado pelos mestres do jazz Miles Davis e Albert Ayler como influências determinantes.
Os duelos guitarrísticos – que por vezes se estendiam em improvisos quilométricos (“Marquee Moon”, a música, tem 10 minutos de duração), e as letras poéticas e um tanto surreais de Tom Verlaine (que tem um sobrenome imponente para um pretendente a poeta, e através do qual homenageou o poeta francês Paul Verlaine…), tornavam o Television uma banda radicalmente distinta de outros atos mais viscerais e “primitivistas” que seriam depois rotulados como punk. Todo este virtuosismo e pretensão tornavam a banda algo distinto dos grupos que apostavam num minimalismo proposital e que defendiam o dogma de que nenhuma canção com mais de 2 minutos de duração e menos de 150bpm de andamento poderia prestar.
Extremamente influente, apesar do sucesso comercial irrisório, o Television foi o tipo de banda que precisou somente de um álbum, incrivelmente canônico, para entrar na história da música gravada. O segundo disco deles, Adventure, foi um fiasco tremendo, e nada daquilo que os músicos fariam no futuro chegaria aos pés de gerar a ressonância sócio-cultural de Marquee Moon, um dos debuts mais finos da história do rock. “Não muita gente conhece o Television, mas eles estão em todo lugar. Estão nas guitarras desconstruídas do Sonic Youth, nas notas sincopadas e garageiras dos Strokes, nos solos improvisados do Queens of the Stone Age, na crueza de PJ Harvey…”, escreveu o Tiago Ney na Folha de São Paulo. Pois é: eis aí mais um caso de banda que marcou mais por influência em outras bandas do que por sucesso popular.
Com uma voz semi-anasalada e bastante incomum para um rockstar, Verlaine construía painéis impressionistas e estranhos em suas letras – não é a toa que a jovem Patti Smith caiu de amores por ele e logo eles dividiram a autoria de um livreto de poesias. Outro paralelo entre ambos foi a escolha de fotos de Robert Mapplethorpe para a capa dos dois magníficos álbuns de estréia – Marquee Moon e Horses.
Quando, logo na primeira música, Verlaine canta que “entendo todos os instintos destrutivos / eles parecem tão perfeitos / eu não vejo o mal”, é como se estivesse defendendo o punk contra os anátemas conservadores que buscavam enquadrá-lo e negligenciá-lo como um malévolo ataque de jovens cedendo a seus impulsos destrutivos. No art-punk Verlaine e sua trupe não viam nenhum mal, e “I See No Evil” era um cartão de visitas sui generis que mostrava que a banda tinha, talvez, uma ligação mais espiritual ou ética com o movimento punk que propriamente musical.
Na revista Bizz #22, em 1987, na sessão Discoteca Básica, Celso Pucci e Thomas Pappon destacaram:
“Em meio à avalanche punk em que a maioria das bandas fazia um som rápido e primário (Ramones, Dead Boys) ou flertava com o pop (Blondie, Marbles), o Television optava por uma linha musical mais elaborada, com melodias harmoniosas, convivendo com ruídos e faixas longas que, ao vivo, se transformavam em verdadeiras jam sessions.
O som do Television remete à uma gama de referências musicais que vão de Byrds a Neil Young, de Doors a Velvet Underground. Não que o grupo soasse como uma das bandas citadas. Ela parecia querer ser todas elas ao mesmo tempo, e um pouco mais.
(…) As texturas sonoras são molduras perfeitas para as letras, como na balada “Venus”, em que Verlaine cai direto nos braços da Vênus de Milo. (…) Em “Prove It”, a combinação de base sonora simples com o caleidoscópio de imagens evocadas por Verlaine é mais uma vez perfeita. Em “Tom Curtain”, a última música do disco, outra magnífica combinação: a voz chorosa de Verlaine relembra os anos passados, enquanto sua guitarra estridente rola suas lágrimas mais amargas.”
Eterno queridinho da crítica musical, Marquee Moon compensou sua baixa vendagem e pífio sucesso popular com uma pagação-de-pau por parte dos “entendidos” que é realmente digna de nota. Em 2003, foi considerado pelo semanário britânico NME como 3º melhor álbum de todos os tempos. Está entre os 25 melhores discos já lançados tanto no Rate Your Music quanto no Acclaimed Music. Nick Kent, um dos maiorais da crítica musical ao lado de Lester Bangs, carregou a mão quando escreveu seus panegíricos em louvor ao álbum. Já a respeitadíssima Pitchfork o considerou o 3º melhor disco da década de 70.
SAIBA MAIS: NICK KENT — ERLEWINE da AMG – – – LESTER BANGS (Free Jazz/Punk Rock) – – – PERFECT SOUND FOREVER
TELEVISION – AO VIVO EM SÃO PAULO: Sesc Pompéia, 25/10/2005
(Leia tb: Omelete)
Uma onda de reuniões de bandas históricas do proto-punk começou a rolar nos últimos tempos, e o melhor: o Brasil tem sido praia obrigatória onde todas elas vieram ancorar. Antes eu lamentava, cheio de nostalgia pelo que não vivi, porque nunca mais iria poder ver à minha frente nenhuma daquelas bandas que fizeram de “Mate-me Por Favor!” um dos livros que eu mais curti ler na vida. Felizmente, esses monstros do passado resolveram ressuscitar: o MC5 reformado já veio pro Campari Rock, semi-fundido com o Mudhoney, e matou a pau num show inesquecível; agora veio também o Television, com sua formação original; e logo mais São Paulo vai poder ver Iggy e os Stooges no Claro Que é Rock. Sequência nada má para um ano que foi um dos melhores da história deste país em termos de shows internacionais.
A formação original do quarteto americano Television aterrisou na choperia do SESC Pompéia (um lugarzim trimmassa) para mostrar ao povo paulista o que já tinham visto os cariocas que foram ao TIM Festival: um guitar rock complexo e virtuosístico tocado com grande técnica e perícia, mas realizado por uns tiozões um tanto acabados e desprovidos do entusiasmo que imagino que tinham nos anos 70. Foi ótimo ver o show muito de perto, podendo prestar atenção em todos os mínimos detalhes: as veias na mão esquerda de Tom Verlaine; o setlist pregado com fita crepe no chão; a camiseta de Richard Lloyd posta ao avesso… Eu tava tão perto que poderia até ter acertado uma cusparada na cara de algum deles, se quisesse. Já pensou que história clássica pra contar pros netos? “Eu cuspi na cara do Tom Verlaine! Juro por Deus!”
Apostando num virtuosimo instrumental centrado em duelos guitarrísticos, e nas letras poéticas e um tanto surreais de Verlaine, a atual encarnação do Television resgata novamente a noção que entreti desde que caí de amores por Marquee Moon: esta banda nunca teve a visceralidade e a barulheira que fizeram a fama do punk, mas ainda sim participaram deste cenário trazendo a ele uma salutar diversidade e colaborando para tornar esta subcultura ainda mais estranha e inrotulável.
Sem dúvida que valeu a pena ter visto de perto essa entidade histórica do rock americano dos anos 70, mas, infelizmente, o Television deu amostras, em 2005, de cansaço e falta de vitalidade. Em cima do palco, todos os quatro músicos, todos já sessentões, parecem um tanto apáticos, soturnos e excessivamente sérios. Não se comunicam com o público nem entre si, e também não parecem estar se divertindo muito com a música que produzem. Tom Verlaine, magricela e altão, parece o pai de Thurston Moore ou Mark Arm, um tiozão do guitar rock que não esconde a calvície tomando parte de seu crânio. Com voz um pouco débil e uma timidez imensa, Verlaine cantou baixinho e não teve coragem de berrar quando era a hora certa para isso – acabou fazendo uma performance vocal medíocre.
Já o guitarrista Richard Lloyd, disparado o melhor músico da banda, permaneceu o show inteiro com aquela cara de diarréia dele, como se estivesse ansioso pra que o show acabasse logo pra poder ir no banheiro. Parece que aquela é a fisionomia natural dele, nada a ver com desarranjos intestinais. Mas bem que parecia careta de retenção anal…
A cara de poucos amigos de Lloyd e a aparente falta total de qualquer conexão afetiva entre os membros da banda me deu uma má impressão: parecia que ali em cima do palco estavam caras que, se concordaram em voltar aos palcos e prometeram lançar disco novo em 2006, não foi certamente por amizade ou por gosto pela convivência. Não, aquilo estava longe de ser uma BANDA DE AMIGOS. O que não impediu que a música, muito bem ensaiada e tocada com imensa competência, agradasse aos ouvidos, especialmente as guitarrinhas interpenetrantes de Verlaine e Lloyd. Destaque para o “hit” “See No Evil” (cantado junto por grande parte do povo presente), o imenso guitarrismo viajante de “Marquee Moon” (que musiquinha foda!) e a versão para “Knocking On Heavens Door” de Bob Dylan.
Mas, sério: a perícia técnica dos caras é incrível, mas o tesão de tocar e a empatia com o público eram praticamente inexistentes, o que estragou um pouco o gosto do show. O Television inteiro me pareceu um tanto antipático, humanamente falando, carente de carisma, com baixa intensidade de élan viral. Quem viu o revival do MC5 com Mark Arm do Mudhoney sabe: Wayne Kramer, naquela ocasião, conseguiu fascinar o público e fazer daquela noite algo de extremamente especial para quase todo mundo ali dentro pois estava extremamente empolgado e radiante em cima do palco… O Television, por sua vez, voltou um tanto triste e apático, uma pálida sombra perto do vulcão que foi o Motor City Five, irradiando uma energia e juventude que também pôde captar a partir do contágio de estarem no mesmo palco com os caras que marcaram uma próxima geração, no caso, o grunge-punk do Mudhoney.
Nesta temporada de revivals de 2004-2005, dou nota 10 para o show estupendo do MC5 + Mudhoney, e um 7,5 para o Television – que, apesar do show que não se alçou aos píncaros esperando, continua sendo o autor, com Marquee Moon, de um álbum 5 estrelas na história do rock e que merece sempre ser revisitado e reapreciado por seu encanto infindo.
“Television’s first album is a record most adamantly, not fashioned merely for the N.Y. avant-garde rock cognoscenti. It is a record for everyone who boasts a taste for a new exciting music expertly executed, finely in tune, sublimely arranged with a whole new slant on dynamics, chord structures centred around a totally invigorating passionate application to the vision of centre-pin mastermind Tom Verlaine.” – NICK KENT
Publicado em: 29/01/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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