Maluco Beleza em Metamorfose Ambulante
por Eduardo Carli para o site d’A Casa de Vidro
O cara que se descrevia como “metamorfose ambulante” e “maluco beleza”, a incansável “mosca na sopa” dos caretas, não se fixou. Raul Seixas é, como David Bowie, uma presença dinâmica em nossa cultura, suscitando fortuna crítica sempre crescente e inspirando este fenômeno salutar para qualquer cultura que queira ter futuro: a entrega cheia de entusiasmo a uma criatividade camalêonica, entre nós também exprimida às maravilhas pel‘Os Mutantes, por toda a Tropicália...
Raul não se fixou feito um Cristo no crucifixo. Raul Seixas é algo em aberto, obra-convite que chama não só à decifração mas à recriação. Raul é uma presença sujeita a transformações, assim como o “Raulseixismo” não se consolidou nem como seita, nem como fã-clube de vãs idolatrias – o máximo grau de consolidação se dá com o bordão viral “toca Raaaaaul!” que passamos a ouvir em milhares de barzinhos de música ao vivo e festivais do cenário alternativo…
Este que foi um dos maiores artistas e pensadores brasileiros do século 20 hoje, décadas após o óbito de Raulzito em 21 de agosto de 1989, em 2022 ainda nos interpela com uma obra vivíssima. Raul Seixas (e através dele também o Paulo Coelho que foi seu parceiro) segue nos provocando com as varas curtas de suas ironias pontiaguadas. Segue nos animando para o viver, ao invés de nos deprimindo com desânimos: Raul Seixas segue sendo uma arte revitalizante, e talvez crucial para a “saúde psíquico” daquela fatia do povo brasileiro que se preocupa conscientemente com o forjar coletivo de uma sociedade menos sórdida. Toda a afetuosidade transbordante na obra raulseixista nos contamina, num bom sentido, com seu élan vital cheio de abertura à aventura da vida e à celebração de uma “sociedade alternativa”.
Posso dizer que a arte de Raul me assombra e rodeia desde a primeira infância, ainda que ele tenha morrido quando eu tinha apenas 5 anos de idade. “Medo da Chuva” é uma das melodias mais antigas de que guardo memória, quase certamente a primeira canção que meu cérebro se pôs a decorar e mentalmente cantarolar. Também possivelmente devo a Raul Seixas os primórdios de meus contatos com a filosofia: a noção de sabedoria se impôs muito cedo a mim para explicar o que falava através de “Medo da Chuva” e suas preciosas lições de vida.
Até hoje esta canção me desperta os mais fortes afetos de nostalgia, soa como um blues chorado, pungente, mas cheio de uma vitalidade indomável: ode à coragem, apologia do “ir-ao-encontro” que assume os riscos e custos dos vínculos intensos; e acima de tudo a conexão com os elemementos que é a faceta mística de Seixas, seu hippie-orientalista misticismo que bebe no Baghavad Gita tal como popularizado pela Flower Power Generation gringa / anglosaxã.
A canção “Gita” expressa uma época global para além de ser um clássico incontestável da música brasileira: todo o Movimento Hippie fala através dela, e para massas de milhares de ouvintes esta música foi a primeira que lhes abriu as portas da percepção e do intelecto para uma ideia impressionante. A música como veículo de experiência mística. A unio mystica do cantor com os elementos todos, seu transe de indiferenciação com o cosmos, convida-nos a saltar da consciência careta costumeira rumo a outro enxergar e escutar o mundo. Possível através de inúmeras psicodelizações que tiram nosso aparato cognitivo e sensitivo de seus eixos costumeiros, sacudindo o torpor das “pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”, emblema da melancólica vida mal-vivida que cabe a nós evitar.
Através do nosso contato estético e nossa empatia ética com o eu lírico que Raul Seixas encarna, podemos, assim como em “Medo da Chuva” mergulhávamos nas águas que caem do céu, em “Gita” somos interpelados desligar o eu segregacionista e mergulhar nas pequenezas e imensidões do cosmos.
“Eu perdi o meu medo, o meu medo
O meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra
Traz coisas do ar…
Aprendi o segredo, o segredo
O segredo da vida
Vendo as pedras que choram
Sozinhas no mesmo lugar
Eu não posso entender tanta gente
Aceitando a mentira
De que os sonhos desfazem
Aquilo que o padre falou
Porque quando eu jurei meu amor
Eu traí a mim mesmo
Hoje eu sei que ninguém nesse mundo
É feliz tendo amado uma vez, uma vez…”
MEDO DA CHUVA
“Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra
Do fogo, da água e do ar…”
GITA
Tem quem ralhe com Raulzito por ele ter sido muito idólatra de Elvis Presley e outros roqueiros americanos; falava inglês feito um prof do Cel Lep, e expressa sim, em várias de suas facetas de crooner roqueiro cosmopolita, uma vertente que é de “estadunidização” da cultural brasileira, um certo imperialismo cultural Yankee. Mas é complexo: há uma forte plasmagem do rock dos EUA e dos U.K. aqui no contexto sônico, de rítmicas populares nordestinas, da Bahia nativa de Rauzito sobretudo mas também de todo o Nordeste, que pulsa nesta obra. A influência Beatle, Dylanesca, Presleyano, Little Richardíca etc. certamente existe, mas é sem subserviência, Raul sempre re-criando estas formas importadas através disto que vale chamar de criatividade camaleônica. Raul foi nisto um mestre incontestável e neste método, pela riqueza e variedade de seus frutos, disputa no palco global o pódio dos camaleões mais interessantes da cultura…
Recupero, a seguir, alguns textos antigos que expeli de mim sobre Raul, figura que, como aqui se vê nestas mal traçadas linhas do quase-finado ano de 2022, instiga-me há anos a ser mais como ele, metamórfico ambulante, no torvelinho das inquietudes… criando como e o que pode (e até não sei quando)!…
https://depredando.blogspot.com/search?q=RAUL+SEIXAS
“…um espírito versado na serpentina arte de mudar de pele. […] E feliz em não abrigar em si uma alma imortal, mas muitas almas mortais.”
NIETZSCHE
(Humano Demasiado Humano II – Prólogo #2 e #17).
O nome escrito no RG perdura do nascimento à morte, quiçá modificado, vez ou outra, por casório, mudança-de-sexo ou ida-pro-estrangeiro. Já a criatura que este nome batiza decerto é bem mais fluida e líquida do que sugere a fixidez dos documentos. Somos seres mutantes! As barbas sucederam aos meus dentes-de-leite do mesmo modo como os cabelos alvos da velhice hão de esbranquiçar estas madeixas temporariamente cheias de cor. E não será melhor aquiescer à roda-viva dos tempos ao invés de aspirar por impossíveis imutabilidades?
“Não se entra duas vezes no mesmo rio”, dizia Heráclito uns 2.500 anos atrás. A ancestralidade do dito, seu caráter de “clássico” da filosofia, não significa que o rio de que ele falava – o rio cósmico, o rio universal, o rio de Tudo o que escorre… – cessou de correr. Prosseguem as marés em sua dança com a Lua. Prosseguem as águas a responderem aos chamados invisíveis das gravitações planetares, eternamente fluentes, e sempre aos humanos indiferentes, por mais embasbacados que fiquem estes diante de mares e luares!
Se a própria Natureza ao nosso redor é dinâmica eterna e imparável mobilidade, seríamos loucos se quiséssemos, apegando-nos a dogmas e nos engessando em ortodoxias, sermos fixos como as “pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Raul, como canta-nos em “Medo da Chuva”, “aprendeu o segredo da vida vendo essas pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Conheço poucos versos mais lindos na história da poesia e da música brasileira. Raul Seixas nos comove e nos encanta tanto, me parece, pois não quis ter um destino de pedra, estagnada em sua solidez, e preferiu ser rio. Voilá alguém que “preferiu ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.
E isso, pra mim, é rock’n’roll até o osso. Pedras que rolam não criam limo. Mas melhor que ser pedra que rola é ser homem-rio. Não é à toa que Walter Carvalho inicia seu filme com um dos símbolos-mor da contracultura hippie sessentista: os dois motoqueiros de Easy Rider, encarnados por Dennis Hopper e Peter Honda. Raul Seixas, seguindo essa metáfora, teria sido um easy rider tupiniquim, um que põe o pé-na-estrada ao invés de ser samambaia, um maluco beleza sem medo de ver o misticismo misturado com a lucidez, nem o rock com o baião, Jimi Hendrix com Luiz Gonzaga, Satanás com Cristo, Crowley com Shiva… A ousadia das mesclas, a leveza desse saltar eclético em várias “ilhas” da cultura, faz de Raul um desbravador de novas sendas para a liberdade!… “Faze o que tu queres… há de ser tudo da lei!”
Que esse anarquismo estético todo seja altamente subversivo eu não duvido. E é ótimo que seja. Raul Seixas permanece um remédio necessário contra o caretismo. Longe de mim bancar aqui o bully dos caretas, ainda mais considerando que tenho, com certeza, minhas próprias caretices, como todos. O problema é que o caretismo não é tão inofensivo como parece: estou convencido de que muitos “homens de poder”, muitas altíssimas autoridades políticas-militares-religiosas-policiais, muitos destes que são responsáveis por criar as nossas leis e vigiar nossos comportamentos e nossas interações sociais, são caretas dogmáticos.
Um exemplo: a sangrenta Guerra às Drogas, baseada em ortodoxias proibicionistas, por exemplo, já deixou 50.000 mil mortos no México nos últimos 5 ou 6 anos… A mesma guerra absurda, levada a cabo faz algumas décadas pelo DEA norte-americano, que segue seguindo à risca a cartilha do czar Anslinger, causou trilhões e trilhões de desperdício de verba pública e o encarceramento em massa de um imenso contingente populacional: 25% dos presos do planeta estão nos Estados Unidos da América, o maior Estado policial e militar do mundo. Quanto aos assassinados no Rio de Janeiro ou na Colômbia, bem… quem é que está contando? E como não perder a conta diante de um genocídio tamanho?
Aliás, não haveria um certo eufemismo no próprio termo “Guerra às Drogas”? Como se as perseguidas fossem só as substâncias, e não… as pessoas que as utilizam e comercializam! Esta guerra contra pessoas, movida por preconceitos que se agarram com a obstinação de sanguessugas às nossas legislações, tem a ver – e me arrisco agora em psicologia social raul-seixista! – com o caretismo institucionalizado dos fanáticos pela ordem. E Raul Seixas é um providencial antídoto.
O que eu quero dizer é que acho ótimo que tenha existido uma figura como Raul para ser uma mosca na sopa de tudo quanto é discursinho pró DOPS, Opus Dei, Caveirão do BOPE… Raul foi, de fato, uma das maiores figuras da contracultura brasileira na segunda metade do século passado, um artista de criatividade exuberante, e que nos mostrou a beleza da ousadia, da quebra de paradigmas, do comportamento distoante. Ouvir Raul é uma cura contra a normopatia, termo que empresto do psicanalista José Ângelo Gaiarsa, talvez o mais brilhante e mais célebre dos nossos reichianos.
“Normopata” é aquele tipo de neurótico, comuníssimo aliás, que deseja, acima de tudo, ser normal. Somos todos um pouco normopatas: em situações sociais, especialmente, modelamos nosso comportamento de acordo com o que nos foi ensinado sobre o que é normal e o que é patológico, o que aceito e o que é ilícito. Ah, esses sininhos de Pavlov que não cessam de bater, infernais e aporrinhantes, dentro de nossos cérebros!
A normopatia, neurose de massa, talvez ajude a explicar fenômenos tão atuais, e tão justamente combatidos por tantos movimentos sociais, como a homofobia, o racismo, o bullying. Pessoas que possuem uma “imagem ideal” do que seja a normalidade – por exemplo, normal é quem é branco, católico, heterossexual e “democrata” – tendem a soltar seus anátemas (e às vezes seus cachorros e sua polícia…) pra cima de quem destoa desse ideal do “Normal”. E dá-lhe pauladas e preconceitos pra cima de comunistas, negros, homossexuais, ateus, anarquistas, índios, “hippies” e tantos outros “desviantes” (na perspectiva dos fanáticos pelo normal, claro…).
No Brasil, como prova a onipresença e onirecorrência do “Toca Rauuul!” em qualquer show, boteco, pub, roda-de-samba ou concerto de música clássica, Raul Seixas virou uma espécie de mito nacional, neo-Macunaíma, objeto de um culto equivalente em terras de Pindorama àquele prestado à Che Guevara em outras plagas (cubanas ou argentinas, por exemplo). Raul é muito mais que música: é um “modelo” de comportamento, um ideal de personalidade, alguém que muita gente se põe a imitar e reverenciar como se se tratasse de um novo Cristo – e bem peculiar, aliás, dadas as propensões de Raul para o satanismo e seu amor muito maior pelo Baghavad-Gita dos indianos do que pela Bíblia dos romanos…
O pivete baiano que se encantou com Elvis Presley e Litte Richard, que puxou a gola pra cima e começou a rosnar e uivar com “Tutti Frutti” ou “Be-Bop-A-Lula”, acabou sendo, junto com os Mutantes, um dos principais agentes da mistura entre a música brasileira e o que estava na crista da onda no panorama musical internacional. Raul não tinha medo de “importar” – e sem pagar direitos autorais ou ter que responder processos por plágio – o que havia de melhor no rock gringo. Ele não copiava – ele expropriava. Quer dizer: apropriava-se de modo muito próprio do que suas espertas antenas incorporavam e acabava por realizar uma síntese absolutamente original e inaudita de elementos antes considerados imisturáveis. Um antropófago!
Com Raul, acontece na cultura brasileira um dos mais poderosos fenômenos do que eu chamaria de idolatria secular. O pop star, afinal de contas, é uma espécie de ídolo a vagar fora das igrejas. Cultuado, como outrora Dionísio e Baco, nos locais de dança e carnaval, nos agrupamentos clandestinos de entusiastas, nos locais onde emergem zonas autônomas temporárias e os sujeitos experimentam as “delícias do deslimite” (Rüdiger Safranki). Como quantificar o impacto de uma figura carismática dessas nos sonhos de milhares de homens e mulheres? Como calcular quantas personalidades são moldadas, ao menos em parte, tendo o raul-seixismo como modelo e ideal? Quando John Lennon soltou aquela que deixou de cabelos em pé os fundamentalistas religiosos (“Os Beatles são mais populares do que Jesus Cristo”), estava só dando amostras de seu apuradíssimo senso social. Pois de fato, em nossas sociedades do espetáculo, pra usar a expressão consagrada por Guy Debord, os pop-stars talvez tenham mais impacto social do que alguns mofados símbolos religiosos de milênios atrás.
Raul Seixas, arauto da contracultura brasileira, padroeiro de todas as lutas anti-manicomiais e anti-dogmáticas, sátiro e palhaço de uma sociedade gerida por elites doentes, é também aquele que nos ensinou que para desafinar o coro dos contentes não é necessário ser soturnamente triste. Com que contentamento e com que jovial audácia Raul não encarnava a ovelha negra! Esta é uma mosca risonha pousando nas intragáveis sopas dos dogmáticos, dos fanáticos, dos caretas. Como a Mafalda de Quino, Raul é um quixotesco protestador contra as sopas azedas deste mundo. E, nos antípodas do inseto nauseante e repugnante no qual o Gregor Samsa de Kafka se viu transformado, Raul Seixas é uma mosca feliz e saltitante. Provoca e alfineta, introduz a dissonância no coro dos normais, questiona as autoridades autoritárias, abre novas vias de interpretação do mundo e da vida, escancarando portas e janelas com pontapés de poeta… O estrago que causou, a influência que gerou e os encantamentos que despertou prosseguem agindo e ecoando, anos e anos depois que os primeiros vermes roeram as frias carnes de seu cadáver alcóolatra e de pâncreas mutilado. E hoje em dia, fantasma entre nós, que frequenta nossos pesadelos e sonhos, que anima nossas festas e nossos cinemas, que é semente nos solos de nossa cultura e inspiração para o desabrochar de nossa criatividade, Raul parece uma figura que saiu da vida só para gozar, altaneiro, da notável sobrevida dos mitos.
por Eduardo Carli – 2012/2022
São Paulo/Goiânia
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Publicado em: 16/12/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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