O POP NÃO POUPA NINGUÉM
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.com
O criador assim resume os encantos punk de sua criatura – que não é pouca porcaria, é muita:
– Conta a lenda que Bob Cuspe não nasceu, foi escarrado num subúrbio qualquer de uma grande cidade qualquer. Cresceu e se transformou num enorme e incômodo furúnculo nas axilas da sociedade. Já foi acusado de direita pelos esquerdistas e de esquerda pelos direitistas, mas não é uma coisa nem outra. Na verdade, é apenas um sujeito que, ao invés de ficar babando de esperança feito tia velha, preferiu arrepiar os cabelos, vestir uma munhequeira e sair por aí, cuspindo em tudo e todos, tornando-se um autêntico nervo exposto.” (Todo Bob Cuspe, Cia das Letras, pg. 13)
Estas palavras de Angeli, o subversivo artista brasileiro que acaba de aposentar-se neste ano 2022 por estar sucumbindo à afasia, revelam um pouco das intenções que estiveram por trás da eclosão do escarrador mais catarrento das HQs do Brasil. O “furúnculo nas axilas da sociedade” é também uma ferramenta estético-política que o artista brandiu para falar dos males que afligem a nação onde cantores pop passam na Globosta e apoiam a Ditadura, mas o cidadão-de-bem continua xingando de escória os jovens que expressam, desde a sarjeta, sua Cólera.
Passando ao largo da crítica respeitosa, da conciliação de classes cheia de parcimônia e temperança, ou da fofura dos docinhos, Angeli figurou em Bob Cuspe uma sátira do movimento punk que é também uma metralhadora giratória contra tudo aquilo que, nas metrópoles made in Brazil, faz revirar o estômago e faz com que sintamos ganas de cuspir ou vomitar diante de alguma grotesca escrotidão.
Em uma tira, um gordo senhor das elites come seu nhoque com vinho em um restaurante grã-fino enquanto um montão de moleques maltrapilhos o rodeiam: “quer chocolates, senhor? quer drops? chicletes? cigarros?“, dizem os pixotes, e ele responde-lhes como se fossem moscas em sua sopa: caia fora, trombadinha! Bob Cuspe testemunha a cena e depois intervêm, perguntando com o moicano e os dedos em riste: vergonha na cara, senhor? (Todo Bob Cuspe, Cia das Letras, 2021, pg. 36).
Este raro arroubo de moralismo contrasta com as atitudes bem mais diretas com as quais Bob lida com seus desafetos: com uma chuva de saliva – é tchú pra cima do jornalista (todo melado com cuspe, ele diz: “Cáspita! Mais um leitor do Paulo Francis!“), é tchú pra cima do psicanalista fróidiano, é tchú nos que querem entrar para a política institucional, é tchú pra cima dos garçons do boteco e para as mulheres que encontra pela rua (as feministas, aliás, teriam muita razão em acusar um certo sexismo em certos retratos da mulher masoquista que povoam as páginas).
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O recente longa-metragem de animação dirigido por Cesar Cabral, com o subtítulo Nós Não Gostamos de Gente (2021), frisa uma certa misantropia que de fato está por todo lado nas tirinhas que Bob cospe e escarra a torto e a direito sobre quase todo mundo (a exceção é sua mamãe, que faz um excelente bolo de fubá e em quem o filhão nunca cuspiu). Através do vozeirão de Milhem Cortaz, o Bob Cuspe do filme existe numa Sampa pós-apocalíptica e surreal infestada pelos minions irritantes do pop.
Em paralelo ao enredo jocosamente sci-fi distópico e splatter movie que rola dentro do universo criado por Angeli, há a parte propriamente documental do filme, com as vozes reais de Angeli, de sua companheira, de Laerte (dentre outros convidados), falando sobre os processos criativos e as mutações da vida real de um artista de alto calibre.
Na sociedade urbana oni-caótica em que existe, Bob Cuspe e seus camaradinhas punk só conhecem a linguagem do ódio, exacerbada pela hora do rush. Eles estão sempre em modo “tô de saco cheio”. Ficam até mesmo de saco cheio de ficarem de saco cheio – como naquela página antológica em que Bob recusa o convite de outro punk para cuspir em executivos na Av. Paulista, estourar cabines de banco 24h, quebrar vitrines de shopping center, mijar em porta de igreja e furar pneu de viatura policial. Nesta ocasião, Bob Cuspe não tá afim de vandalismo, quer é comer o bolo de fubá da mamãe.
Angeli não criou um herói, uma idealização ou um arquétipo de punk, mas povoou sua criatura com contradições, com posturas ridículas. Não ofereceu aos punks uma figura a ser idolatrada, mas fez de Bob Cuspe um poço de contradições, também ele uma figura que Angeli escarra em cima, pontuando que certas vertentes da punkidade podem perigosamente aproximar-se de um niilismo oni-agressor, a atitude sem nuances e proto-fascista do cuspir em tudo (nome, aliás, de uma das canções de batalha da banda punk brasileira Flicts).
Utilizando recursos da comédia pastelão, faz Bob tropeçar na casca da banana que está comendo ou cuspir pra cima só para ver o cuspe cair em sua própria cara. Não há pureza moral, nem delicadeza de conduta – Bob Cuspe é tão sujo e escroto quanto a sociedade na qual ele age como nervo exposto.
No cenário político nacional do último período histórico, talvez o gesto mais Bob Cuspe que pudemos testemunhar em massa, enquanto cidadãos ligados ao noticiário, foi a reação do deputado federal Jean Wyllys (à época no PSOL) às atitudes e falas do então deputado Jair Bolsonaro ao votar favoravelmente ao impeachment de Dilma fazendo apologia ao torturador Ustra. Naquela noite de infâmia, é possível especular que Bob Cuspe teria se sentido representado pela cusparada de Wyllys e que talvez o tivesse aconselhado para que seu petardo tivesse sido mais repleto de catarro. Um catarro massivo que representasse o nojo de uma enorme parcela da sociedade brasileira que julgou as ocorrências daquele 2016, no Congresso Nacional, como um escrotíssimo show de horrores que a palavra Golpe não chega nem perto de servir de veículo pleno. O cuspe nos expressa e nos representa, às vezes. Sobre o tema, na Revista Cult, Gilson Ianinni e sua Ode ao Cuspe encontrou as palavras mais oportunas:
E no que diz respeito à música e ao cenário cultural que esta integra, é da primeira importância frisar o quanto Bob Cuspe é uma tentativa de Angeli participar de um debate que, de maneira simplificada e tosca, podemos chamar de A Batalha Do Pop Contra o Punk. Quando perguntando sobre porquê foi morar num bueiro subterrâneo, em meio ao esgoto, companheiro das sarjetas, Bob aponta como um dos seus motivos: “eu não aguentava mais ouvir Lulu Santos!” (p. 47) No filme, também fica evidente que a batalha de Bob Cuspe é contra um pequeno exército de minions que parecem com Elton John, o Rocketman, e que constituem uma espécie de monstro de muitas cabeças, uma espécie de Hidra do Pop.
Bob Cuspe é a hiperbólica encarnação satírica de um cara que recusa o lixo pop, mas não por estar distanciado dele como os acadêmicos em suas torres de marfim universitárias, mas sim por estar todo afundado nesta lixeira pop, saturado de tanto comercialismo cultural. Ele é da “Geração Coca-Cola” que, segundo o verso de Russo da Legião, nos faz comer lixo comercial e industrial desde pirralhos – “mas agora chegou nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.
Escolher como “alvos” Lulu Santos e Elton John faz parte de uma estratégia de Angeli para falar de encarnações mais famosas e significativas deste “princípio do pop” que ele rejeita com palavras e atos – no caso, o ato de cuspir. Culturalmente, Bob Cuspe é contra-cultural num sentido também bem tosco e primário: tudo que é hype, tudo que tá na crista-da-onda, todas as popices enjoativas que fazem sucesso, ele recusa. Mas é também porque os comerciantes de tudo não lhe deixam em paz no seu bueiro. O cenário pós-apocalíptico do filme inclui um exército de pop stars pra lá de escrotinhos. Uma espécie de gangue de Elton Johns bastante aporrinhantes. Se vivesse na gringa e falasse inglês, Bob Cuspe provavelmente adoraria o neologismo suckcess, uma mistura de sucess com sucks, na noção de que sucess… sucks!
Já no mercado das crenças, Bob Cuspe também é um herege, e dá-lhe tchú sem pudores sobre os discursinhos gratiluz namastê do guru Ralah Ricota, dá-lhe tchú pra cima do hare krishna que quer lhe vender incensos que “trarão luz para sua escuridão” (p. 49). Ele é como Diógenes de Sínope mandado o imperador se escafeder: Alexandre, porra, sai da frente do meu sol! As estrelas do pop que fazem entrada nas tiras – como o cantor Ritchi Pareide, vindo das praias cariocas, que só fala do amor, do sol, do som, do mar – saem das tiras molhadões de cuspe e pedindo um lencinho ou toalha pro pessoal da produção. Angeli vai moendo a golpes de sarcasmo o hit parade. Dá uma cacetada aqui na bossa nova, outra cacetada ali no iê-iê-iê, e assim vai delineando também o gosto musical do Bob Cuspe.
Tentar responder à questão qual seria a playlist das canções prediletas dele não é tão difícil assim. O próprio Angeli nos fornece 25 canções que Bob Cuspe adora – quando tocam no rádio, o que ocorre raramente, ele consegue não cuspir no aparelho ou arrancar dele as antenas. As canções estão descritas na pg. 152 de Todo Bob Cuspe, mas nós facilitamos o trampo de quem quer ouvi-las e botamos uma playlist no Spotify que tem algumas das bandas e artistas prediletas do “cara”: Raul, Clash, Pistols, RDP, Dead Kennedys, UK Subs, Garotos Podres, Inocentes, Jesus and Mary Chain, Stooges, Lou Reed, PiL, Camisa de Vênus, Titãs, e por aí vai. Para completar a lista, A Casa de Vidro ficou muito atenta à trilha sonora do filme – que teve a participação em sua confecção do André ‘Karnak’ Abujamra – para inserir algumas músicas mais que tem a ver diretamente com a vibe do Angeli na criação de Bob Cuspe e que também remetem ao “climão” da Chiclete com Banana (uma referência explícita à Jackson do Pandeiro).
Angeli provavelmente agora se calará, ou melhor, a afasia o conduzirá a um certo silêncio e reclusão expandidos, uma saída da esfera pública. Mas suas obras merecem continuar participando desta arena pública de debates e enfrentamentos. Alguns escarros de Angeli são certeiros ainda hoje, em 2022, quando o bolsonarismo genocida não encontra em nossa produção musical de massa nada que escarre tanto quanto o presidemente merece. O rock nacional em língua portuguesa, salvo raras exceções (como Pitty, Francisco El Hombre, Baiana System, Machete Bomb etc.), não tem na atualidade a coragem de enfrentar o escrotíssimo fascismo da República das Milícias e faz lembrar aquela geração do “leite com nescau” – limpinhos e cheirosos, alguns jovens bem-sucedidos e felizes, orgulho dos pais, chegam até o bueiro de Bob Cuspe e se apresentam: somos o rock nacional. É óbvio que Bob Cuspe não tolera estes roqueirinhos que vendem marshmallows musicais nos hipermercados e fazem pose de rebeldes e marginais enquanto contam os dólares que entram quando suas canções entram no hit parade.
Ele cospe o suficiente para afogar uma banda inteira de “rock nacional leite com nescau” numa tsunami de escarro: não é porque moro no esgoto que vou aturar qualquer merda! (p. 159) Os músicos do pop-rock saem andando pela direita do quadrinho em busca de um lenço ou do colo da mamãe. Em 1968, os rebeldes de Paris disseram que queriam ideias que fossem perigosas; já passou a hora de falarmos o mesmo sobre nossa produção musical: é preciso que pare de ser tão delicada, tão conciliadora, tão leite-com-nescau, tão cheia de iscas para o lucro, e enfrente a porra dos fascistas e seus cúmplices! Cáspita, que bom mocismo mais escrotinho, roqueirinhos!
Onde está a autêntica contra-cultura do escarro que se insurge, de maneira feia-horrenda, contra os feios e horrendos sintomas mórbidos de nossa época? Sintomas mórbidos como são, é evidente, não só os Bolsonaros (a familícia) quanto também os bolsominions (os patriotários e suicidadãos que se prestam ao desserviço público de lamberem as botas dos mais escrotos dentre as estirpes dos opressores). Depois de 4 anos de Bolsonaro, talvez dê para dizer que punk is not dead, mas decerto vem respirando por aparelhos.
Hoje, a galera muitas vezes não sabe distinguir de fato entre pop e popular, o primeiro termo sendo aqui compreendido como vinculado à multimilionária indústria do entretenimento e suas lucrativas mercadorias culturais, enquanto o segundo teria vínculos, aí sim, com o “povão”, a ralé, a produção feita com o pé na lama, na sarjeta, na favela, nas situações de opressão e humilhação em que estão os “condenados da terra”.
Que Bob Cuspe possa estar conosco inspirando-nos alguns escarros salutares com os quais podemos e devemos agir nestas trevas de infâmia em que estamos tão submersos que estamos já quase esgotados de tanto estar no esgoto. Camaradinhas, motivos para escarro e escárnio não faltam diante das as forças conservadoras, regressivas, neo-fascistas, bolsonarentas deste Brazzzil têm nos ofertado, com a profusão de um banquete, motivações para que cuspamos. Com Tyler Durden, com Bob Cuspe, temos que re-aprender os meios nada delicados para dizer nossos nãos aos fake-profetas das ridículas salvações, nossas recusas dos escrotões que fazem do palanque um vomitório de demagogias vis, pregando armamentismos, ditaduras e torturas enquanto muitos indignamente calam e consentem. Há talvez alguma dignidade moral no escarro de escárnio contra o opressor, e esta dignidade dúbia do cuspe rebelde não acessam e não atuam os bem-comportados súditos da ordem iníqua que nos enfiam goela abaixo.
A certo ponto do filme, Bob Cuspe está em busca do Angeli para tentar convencer o seu criador a não matá-lo e, para atravessar o deserto apocalíptico de São Paulo resolve pegar um táxi, sendo prontamente zuado com um novo apelido: Pop Cuspe. O pop de fato não poupa ninguém, e Bob Cuspe não é só o avesso do pop, é fruto deste; Angeli é o cronista de um tempo todo contaminado pelo pop, uma época de popices intragáveis que as multidões comem muitas vezes de maneira complacente. É só pensar que o próprio Jair Bolsonaro, com sua crueldade modelo ostentação, com seu discurso de ódio memeficado, com suas bravatas autoritárias realizadas em lives de estética Al Qaeda, virou um cara pop. É tarefa histórica de movimento de contracorrente cultural como o hip hop e o punk serem o pesadelo do punk, mas sem purismo: sabendo que o pop também nos marca, nos contamina, nos seduz, nos acaricia, muitas vezes nos torna seus cúmplices, seus consumidores carneiros, mas na maior parte das vezes o que ele é mais merece é nosso escarro e escárnio. Que o punk nos poupe do pesadelo do pop ainda que seja, em larga medida, um fruto distorcido do mesmo, uma ovelha negra do rebanho branco do pop.
Se apenas engolir o pop passivamente é uma estrada para a ruína, tenhamos a ousadia de propor este despautério, de pôr em jogo este despropósito em defesa do punk, no caminho com Angeli e suas criaturas: há mais dignidade ética e saúde psíquica naqueles que vomitam e cospem diante da opressão e do horror do que naqueles que calados consentem.
Goiânia, 22/7/22
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Publicado em: 23/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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