Aqueles versos de Chico Buarque ficam ecoando sem fim na consciência: “Toda vez que um justo grita / Um carrasco o vem calar / Quem não presta fica vivo / Quem é bom mandam matar.” Cantados por Nara Leão e presentes na bela série documental sobre “O Canto Livre de Nara…”, expressam algo profundo não somente sobre a história mas também sobre a atualidade tenebrosa deste território que chamamos Brasil.
Invadido pelos portugueses por volta de 1500 d.C., o território repleto de povos originários que aqui viviam entrou no radar do imperialismo europeu como fonte de pau-brasil e logo experimentaria uma mortandade-em-massa de escala épica. O desmatamento somado ao genocídio já estava lá, no DNA do projeto imperial, na porta-de-entrada da desventura colonial que nos afligiu após a Conquista.
De Chico Mendes a Marielle Franco, de Dorothy Stang a Dom Phillips & Bruno Pereira, o Brasil sob o domínio de gerações de “Elites do Atraso” tem se especializado em construir ruínas e em mandar matar quem defende a sociobiodiversidade. Jair Bolsonaro e seus cúmplices-no-crime são apenas a manifestação mais tardia, extremista e violenta do genocídio continuado contra os “povos-floresta” que são a vanguarda desta resiliente e cotidiana defesa da sociobiodiversidade – que é também a defesa de nosso futuro comum, impossível sem ela.
Nos versos com que iniciamos este texto, trechos do tema d’Os Inconfidentes, em que a música de Chico honra a poesia de Cecília Meirelles, há um retrato do Brasil contemporâneo, onde “quem é bom mandam matar”. No caso de Nara Leão, após o golpe militar de 1964, aquela que antes era descrita como “musa da bossa nova” tornou-se alvo dos milicos após uma entrevista que concedeu à imprensa e que saiu com o título sensacionalista: “esse Exército não vale nada”. A cantora criticava a tomada violenta do poder consumada em 1º de Abril e manifestava legítima contestação em relação às atitudes liberticidas, autoritárias, anti-democráticas e truculentas da auto-entitulada “Revolução de 1964”.
Ameaçada com a prisão – onde, como sabemos, a tortura psicológica e física começava a ser praticada pelo regime dos generais -, Nara Leão teve que ser defendida por camaradas do meio artístico-cultural, a exemplo do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade que pode ser lido na íntegra no site d’ A Casa de Vidro:
https://acasadevidro.com/carlos-drummond-de-andrade…/
“Meu honrado marechal
dirigente da nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão (…)
A menina disse coisas
de causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
abala a Revolução?
Narinha quis separar
o civil do capitão?
Em nossa ordem social
lançar desagregação?
Será que ela tem na fala,
mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
em vez de Nara, é leão? (…)
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo Cão?
Que é pela paz e amor
e contra a destruição?
Deu seu palpite em política,
favorável à eleição
de um bom paisano – isso é crime,
acaso, de alta traição?
E depois, se não há preso
político, na ocasião,
por que fazer da menina
uma única exceção? (…)
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares,
espalha sua canção.
Meu ilustre marechal
dirigente da nação,
não deixe, nem de brinquedo,
que prendam Nara Leão.”
Carlos Drummond de Andrade
Bem, Nara Leão não está mais entre nós, mas em entrevista à série Chico Buarque manda a real: o que ela disse ainda está valendo. Se as Forças Armadas do Brasil realmente querem manchar tão profundamente sua história já nada louvável, e quiserem apoiar a aventura golpista do Sr. Genocida que não ganhará nas urnas, então não nos resta outra conclusão – eis uma “instituição” que não vale nada em uma república democrática.
Nara não foi presa, mas Chico, Caetano, Gil e tantos outros amargaram a prisão, os interrogatórios, os exílios, coisa típica de um regime totalitário onde quando um justo canta, o general manda calar.
Estes episódios pretéritos iluminam nosso pântano presente. Na ditadura empresarial-militar tão louvada pelo bolsonarismo, a liberdade de expressão dos que se opunham ao regime e que se engajaram no combate a ele era trucidada pela repressão. Hoje, o regime militarista e armamentista também age em conluio com milícias rurais e urbanas para que todos aqueles que reXistem à barbárie bolsofascista sejam silenciados, ou mesmo mortos. “Toda vez que um justo grita / Um carrasco o vem calar”. Como escreveu Eliane Brum, falando sobre a devastação acelerada da Amazônia e das execuções de Dom e Bruno: “Não é incompetência nem descaso: é método”.
O Ricardo Kotscho, no UOL, frisa que “uma das primeiras vítimas deste método de destruição, lembra Brum no texto, foi exatamente o indigenista Bruno Pereira, um dos mais competentes de sua geração, exonerado do cargo de coordenador de povos isolados no Vale do Javari, quando Sergio Moro era ministro da Justiça do recém-empossado governo Jair Bolsonaro. Pereira tinha acabado de comandar uma operação de repressão contra 60 garimpos ilegais na região e foi obrigado a pedir licença para continuar seu trabalho, agora como assessor da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), até desaparecer na floresta no junto com o jornalista inglês Dom Phillips….” – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/…/a-guerra-da-amazonia–o…
O morticínio em massa que o bolsonarismo cometeu durante a pandemia de covid19 foi concomitante com gravíssimos crimes de etnocídio e ecocídio perpetrados pelo mesmo desgoverno – que segue não apenas impune, mas pretendendo concorrer à re-eleição. Como se resultados absolutamente catastróficos entre 2018 e 2022 capacitassem o Coiso a se pleitear para mais 4 anos num cargo onde ele só consegue produzir desordem e retrocesso. Sair Salnorabo já demonstrou com uma tonelada de evidências que não está apto a presidir um país – não tem as qualificações necessárias nem mesmo para ser síndico do condomínio Vivendas da Barra, onde moravam seus vizinhos milicianos que executaram Marielle Franco.
Na foto de Ricardo Stuckert que ilustra este post, temos uma visão fotográfica de um outro país possível e que nos cabe conjuntamente construir. Um país onde os povos originários não sejam massacrados pelo governo federal em conluio com o poderio econômico do agronegócio, da pecuária industrial, do garimpo, dos grileiros e latifundiários. Um país onde os cidadãos não passem pano para etnocídio e ecocídio em escala massiva, mas que protestem junto aos centros de poder, exigindo a penalização dos exterminadores da floresta e das gentes que a defendem.
Para desbolsonarizar o Brasil, e para começarmos a acordar deste longo pesadelo em que ele nos afundou, precisaremos de muito engajamento que vá para além dos ativismos-de-sofá na rede social. Precisaremos ser corpos em aliança em defesa da pluralidade de vidas que constituem a teia vital desta terra, e diante dos exterminadores do nosso futuro teremos que criar unidade na diversidade, estando prontos para as mais duras batalhas.
Não queremos a esperança paralítica dos que rezam trancados em seus quartos por tempos melhores mas nada fazem em prol de seu advento. Não queremos a esperança que não age, o pensamento positivo dos que crêem que dias lindos virão bastando que esperemos pacientemente por eles. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. E aqui temos defendido que um brado e uma bandeira sob a qual podemos unir as forças de nossas reXistências é: FLORESTA DE PÉ, FASCISMO NO CHÃO!
A CASA DE VIDRO
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https://acasadevidro.com/documentarios-sobre-o-colapso…/
Publicado em: 01/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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