Por mais que tente praticar o que podemos apelidar de “Estratégia do Avestruz”, escondendo sua cabeça debaixo da terra para não enxergar o que se passa a seu redor, o cidadão comum deste globo planetário ensandecido está cada vez mais imerso na realidade do colapso acelerado dos ecosistemas que sustentam a Vida.
O cidadão leigo, o João da quitanda ou a Maria da lotérica, podem até não nutrir um conhecimento sóbrio, lúcido e cientificamente embasado sobre estas “tretas” do clima, mas seus cotidianos estão cada vez mais transtornados pela problemática do colapso. Seja a escassez de água ou alimentos, seja o aumento dos preços dos derivados dos combustíveis fósseis, seja as novas zoonoses pandêmicas que nos assolam, os problemas sócio-ambientais não mais são algo que o avestruz-humano consegue pôr a confortável distância com a mesma facilidade de outrora.
Ao nosso redor proliferam inúmeros sinais e sintomas de que a Natureza oprimida clama por menos exploração predatória, menos extrativismo imediatista, menos poluição em todas suas formas, menos vômitos tóxicos de gases de efeitos estufa sendo gerados pelos humanos. E, no entanto, o debate público ainda é escasso e perigosamente procrastinado no que diz respeito ao tabu dos tabus: quanto desta mega desgraça é ocasionada por nossa obsessão em consumir animais mortos?
Quanto está sendo escondido de nossos olhos, inclusive através dos estratagemas da cegueira voluntária, acerca da pecuária em escala industrial que está muitas vezes longe de nossas consciências quando estamos curtindo um churrasco ou um rodízio de carnes? Qual o tamanho do descalabro quando temos milhões de crianças passando fome em países em que a comida que poderia alimentá-las é dada aos animais de abate?
Quem finge não ver a enormidade da crise e adere ao conforto cômodo de que é só uma crisinha, quem pensa positivo e crê em Deus que em sua onipotência há de fazer tudo ficar bem, quem confia nos bilionários que vão encontrar um tecno-fix comprável para nos salvar dessa enrascada, ainda assim confessa, por este próprio apego a manobras diversionistas, que o problema está lá. Tão premente que é preciso mobilizar trabalho psíquico e estruturas de argumento (por mais falaciosas que sejam) em prol desta mega conspiração de silêncio: “está tudo normal, nada está acontecendo.”
Nos últimos anos, sobretudo entre 2019 e 2022, tivemos 6 milhões de cadáveres humanos gerados pela pandemia de covid19 na Terra – apenas nos Estados Unidos e no Brasil, países que juntos possuem pouco mais de 550 milhões de habitantes, os óbitos atingem quase 2 milhões de seres humanos (que tiveram seus destinos encerrados precocemente também pela necropolítica obscurantista de Trumps e Bolsonaros).
Quantos de nós soube ligar os pontos, pôr os pingos nos is, e perceber que a eclosão global da Sars-Cov-2 tem visceral relação com o modo como a humanidade tem habitado esta Casa Comum e sobretudo tem conexão direta com o consumo global de carne? Quantos de nós, ao pensar sobre as causas da pandemia, chegou à conclusão de que esta crise tem relação direta com as “fábricas de carne” que infestam o planeta e também com a produção do agrobiz conexa a elas? Vocês sabiam que 75% da soja plantada na Terra não é para consumo humano, mas para alimentar os animais que depois serão mortos para que degustemos nossos hamburgueres, salsichas, almôndegas e nuggets?
VIvemos numa Casa Comum onde hoje se desenrola a 6ª extinção em massa da biodiversidade planetária (como já expusemos nesta detalhada análise da obra crucial de Elizabeth Kolbert). A última extinção em massa da diversidade de vidas ocorreu há cerca de 65 milhões de anos atrás. Desta vez, ao contrário do asteróide que causou o “wipe out” da biodiversidade dinossáurica, o “cometa” catastrófico somos nós. Ou melhor, são sobretudo os sistemas de produção desenvolvidos pelo capitalismo industrial, fanático por combustíveis fósseis e pelo devoramento cotidiano das carnes de animais mortos. Petróleo e carne estão no epicentro desta mega-catástrofe, e centenas de milhões de avestruzes-humanos fingem que não. Estamos em meio a um mega wipe out, de uma gigantesca biological annihilation, e nossos memes e redes sociais mal tocam no assunto.
O superaquecimento do planeta, ainda que mobilize para sua negação sistemática muito capital injetado em inúmeras campanhas negacionistas que nos lembram da tal estratégia do avestruz, é cada vez mais inegável. Mesmo para aqueles que não sabem bulhufas sobre climatologia nem nunca ouviram falar em IPCC, a crise planetária ocasionada pela devastação da Natureza está se manifestando em nossa carne e em nossa psiquê, está tomando conta de nossas vísceras, e sobretudo está evidenciando-se também em nossos pratos. O cineasta Silvio Tendler, referindo-se ao obsceno consumo de agrotóxicos, encontrou para isso a expressão mais sintética: “o veneno está na mesa.”
Estas temáticas estão presentes no pertinente documentário lançado recentemente, narrado e produzido pela atriz vencedora do Oscar Kate Winslet (Titanic, Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças), “Eating Our Way To Extinction” (dirigido por Ludo e Otto Brockman e disponível na Amazon Prime). O filme conta uma história chocante sobre os produtos de origem animal – resumidos na expressão “meat and dairy”, carne e laticínios – que costumamos colocar em nossos pratos e mandar para dentro de nossas bocas sem pensar muito sobre isto. Em 90 minutos de duração, somos soterrados em evidências de que a pecuária industrial, a “factory farming”, é uma das piores vilãs da nossa eco-desventura atual.
Página do filme no IMDb: https://www.imdb.com/title/tt6462160/
Enquanto a estratégia do avestruz seguir viralizando diante de filmes assim, estamos perdidos. O avestruz humano costuma negar-se a escutar mensagens assim com o argumento de que se trata apenas de pregação desse pessoal ecochato e vegano. Mas não se trata apenas de proselitismo ou lobby daqueles que querem fazer avançar os interesses das dietas a base de plantas.
A produção intelectual e audiovisual que adere à causa vegana é injustamente transformada em assunto de nicho, ou colocada em uma caixinha identitária, quando na verdade o veganismo é uma das vertentes que melhor associa o campo da conduta individual com o domínio mais vasto da totalidade da biosfera. O veganismo é meio de conectar o organismo com Gaia – e regenerá-la neste momento em que, como alertou Antonio Nobre em seu diálogo com Margaret Atwood na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, o que ocorre é uma “falência múltipla de órgãos no corpo de Gaia”.
“Eating Our Way to Extinction” está alinhando com outros filmes como “Cowspiracy”, “Seaspiracy”, “Earthlings”, “Carnage”, “Meat The Truth”, dentre outros, no seu desejo de frisar o quanto o carnivorismo massivo, a escolha ultra disseminada pelo consumo cotidiano de bichos mortos, é absolutamente insustentável e não pode ter futuro se queremos legar às futuras gerações um planeta Terra habitável. A persuasiva voz de Winslet cita vários estudos que comprovam a “pegada ecológica” brutal das práticas sociais derivadas do carnismo, tanto no que diz respeito ao consumo excessivo de água, à derrubada de florestas para “passar a boiada”, à emissão de gases de efeito estuda bem piores que o CO2 (como metano [CH4] e óxido nitroso [N2O], que o gado ruminante é “especialista” em expelir para o ambiente).
O filme também atenta para a dramática situação dos oceanos, mares, rios e lagos cada vez mais repletos de plásticos e microplásticos. A lorota de que comer peixe é uma solução cabível, ao invés de comer “carne vermelha”, é desmascarada. A pesca em escala industrial, além das “fazendas de peixes” típicas da Noruega, também são desmascaradas pelos nefastos efeitos sócio-ambientais que produzem.
Também as absurdas políticas do establishment político, de joelhos diante dos interesses do agrobiz ruralista e agropecuário, são denunciadas: como é o caso da chocante discrepância entre os miúdos incentivos dados aos produtores de frutas, legumes e hortaliças em contraste com os mega-subsídios dados às gigantes corporações trans-nacionais responsáveis pelos holocaustos animais que a propaganda do McDonald’s não conta.
Leonardo DiCaprio, divulgado o documentário narrado por Winslet (com quem contracenou em “Titanic”), disse que “este é o filme que as futuras gerações desejarão que todos estivessem assistindo agora” (“this is the film future generations will be wishing everyone watched today”). As futuras gerações olharão com horror para todos aqueles humanos que, fingindo-se de avestruzes, recusam-se a enxergar que o veneno está na mesa (também nos agrotóxicos e microplásticos que poluem cada vez mais nossa comida) e que não há nenhuma possibilidade de fazer frente ao colapso ecológico mantendo-nos de dentes tão aferrados ao consumo massivo e desenfreado de carne.
Para os brasileiros, o filme também tem seu interesse ao revelar um pouco da sina trágica dos Guarani-Kaiowá; ao expor iniciativas de reflorestamento da Amazônia; ao entrevistar alguns povos-floresta que vivem há milênios em interação não-predatória com os ecossistemas deste território que veio a chamar-se Brasil; e ao revelar o altíssimo custo para a saúde coletiva conectado a uma sociedade maníaca por carnes e que se recusa a trabalhar em prol de uma célere transição para a popularização de dietas livres de crueldade contra os animais que decretamos comestíveis – e para cuja “produção” mobilizamos um horrendo aparato de devastação sócio-ambiental.
Subjacente está uma cegueira, no seu sentido Saramaguiano, a respeito dos animais que comemos e do impacto ou pegada que este consumo acarreta, como exposto por Eliane Brum: “Conhecemos os animais pelos nomes dos cortes de sua carne – maminha, alcatra, picanha… -, e eles já chegam a nós embalados em bandejas nas prateleiras climatizadas dos supermercados, nos poupando de todo o sangue.” (BRUM, Banzeiro Okoto, p. 207).
Tudo conspira para inspirar-nos preocupação, no Brasil mais do que em qualquer outro ponto do planeta, sobre a gravidade do colapso conexo à extensão excessiva dos “gados”. Chega de permitir que fascistas ecocidas “passem a boiada” e manipulem “gados humanos” em prol de seus projetos de morte e devastação “lucrativas”; mais do que nunca, vale o brado e a bandeira: florestas de pé, fascistas no chão!
Texto: Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Site: https://www.acasadevidro.com
Ilustração em destaque: Cartunista Das Cavernas
Leia também:
FAZER DOWNLOAD DO FILME EM TORRENT (2.44 gb) – Via Fórum Making Off
BAIXAR O ARQUIVO TORRENT / BAIXAR A LEGENDA EM PORTUGUÊS
COMPARTILHAR NO FACEBOOK:
https://www.facebook.com/photo?fbid=400741678743458&set=a.347691984048428
Publicado em: 24/06/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia