Tenham a “coragem de ter medo”! – é o que conclamava Günther Anders diante da ameaça dos cogumelos atômicos: “é a nossa capacidade de ter medo que é pequena demais e que não corresponde à magnitude do perigo atual” (1). Agora, diante do golpe fascista que o bolsonarismo está tramando para contestar as eleições que com alta probabilidade perderá (em Junho de 2022, pesquisas de intenção de voto revelam vitória de Lula no primeiro turno) (2), vale o mesmo mote: tenhamos a coragem de temer, e de depois agir afrontando este medo que existe diante de uma ameaça concreta, escancarada.
Não sejam covardes que fingem que está tudo normal e que as instituições estão funcionando perfeitamente quando o presidemente brucutu elogia os policiais que chacinaram 23 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio (3).
Não sejam covardes de não temer quando o Centrão está comprado pelo Orçamento Secreto (4), o Sr. Lira senta em seu trono na Câmara dos Deputados e ignora mais de 130 pedidos de impeachment e temos um Engavetador Geral da República que não tem pudores de ser cúmplice de um genocida (mas que não suporta os artigos de Conrado Hubner). (5)
Não sejam covardes de não temer que a mamatocracia hoje constituída em prol dos milicos e seus parentes é fácil de ser desmontada: como revelou a Revista Piauí em “As Pensões e os bilhões da família militar” (6), “em 2020, o governo federal pagou pensões a 529 mil pessoas – em geral, parentes de servidores civis e militares que já morreram. Somadas, essas pensões custaram R$ 36,5 bilhões, valor maior que o orçamento do Bolsa Família, que atende cerca de 14 milhões de famílias. Os parentes de militares são responsáveis pela maior fatia do bolo, e receberam, em média, 47% a mais do que os parentes de civis. Mais de 2 mil pessoas se encaixam na categoria de superpensionistas – isto é, acumulam mais de um benefício, como no caso de mulheres que são filhas e viúvas de militares ao mesmo tempo. Com o dinheiro das superpensões, seria possível comprar ao menos 35 milhões de doses de vacina da Astrazeneca.”
Não sejam covardes de não temer uma conjuntura onde o nepotismo veste farda (7).
Gregorio Duvivier e equipe não apenas estão realizando um excelente trabalho informativo e didático a partir de cada episódio do salutar Greg News / HBO, estão também tendo a atitude digna e louvável de não se omitirem diante do horror fascista que nos assombra: no fim do programa “Medo”, clama-se para que tenhamos a “coragem civil” que tem nos faltado para criar uma fortaleza de poder popular que barre a intentona golpista em curso.
Mas também clama-se que esta coragem só virá se reconhecermos uma realidade que dá medo, para só depois a enfrentarmos. Que o medo nos coligue e nos solidarize para que possamos enfrentar o bolsofascismo, o militarismo, a truculência de um regime que produziu a morte-em-massa durante a pandemia e que agora deseja melar as eleições que vai perder.
Não sejam covardes de não temer quando estamos diante, desde já, de um regime militar nascido de um processo eleitoral fraudulento: em 2018, Bolsonaro só venceu pois o líder nas intenções de voto estava injustamente trancafiado em Curitiba. “Concretamente, esse é um governo militar, como não poderia deixar de ser um governo que tem sete mil militares em postos do primeiro e do segundo escalão”, destaca Safatle. “A verdade é que muitos de nós insistimos que não havia outra coisa a fazer do que lutar e exigir o impeachment de Bolsonaro o mais rápido possível, antes do processo eleitoral, pois justificativas não faltavam, seus desejos de ruptura institucional nunca precisaram ser escondidos. No entanto, em nome do respeito institucional e da recusa em fazer o país passar por mais outro “trauma”, estamos agora diante de um trauma que chega até nós em câmera lenta.”
“Depois de uma gestão criminosa da pandemia, com suas mais de 650 mil mortes, depois de uma gestão econômica de pauperização e depois de ser o primeiro governo em décadas a entregar a nação à diminuição do poder de compra do salário mínimo, o ocupante atual da presidência detém algo em torno de 30% das intenções de voto. Se levarmos em conta que sequer começamos a campanha eleitoral e que, em campanha, ocupantes do governo que tentam reeleições têm a tendência natural de subir, uma vez que contam com o apoio da máquina governamental, podemos perceber uma impressionante resiliência que mereceria ser estudada mais a fundo e de forma mais analítica.” (8)
Sim, temos o direito e talvez o dever de temer que um governo tão catastrófico, que produziu a morte e o adoecimento em massa durante o pandemônio, que não salvou nem a economia nem as vidas humanas, que aliou-se ao coronavírus e também produziu miséria em vasta escala, ainda possua apoio de uma parcela tão grande da população e do eleitorado. O tamanho da infecção ideológica, do contágio odiento da doutrina bolsofascista, é coisa que assusta: não o indivíduo Jair em si, mas a extensão do gado por ele tangido, a magnitude do milicianato que ele tornou cúmplice de seu projeto autoritário e liberticida. E mais temível ainda é o fato de ser um gado que está sendo incentivado a andar armado, a pensar em termos de “bandido bom é bandido morto”, a aceitar normalmente a apologia do crime contida em frases como “vamos metralhar a petralhada”, um gado humano que vai comendo alegremente o capim do ódio nesta fazenda onde passam boiadas e garimpos sobre as cinzas de uma democracia quase que já reduzida a cinzas.
Como escreveu Boulos, “é muito improvável imaginarmos Bolsonaro perdendo as eleições e aceitando a derrota. Será preciso derrotá-lo nas urnas e nas ruas. Não estamos num processo eleitoral normal. Nosso papel não será apenas no dia 2 de outubro. Essa eleição vai exigir engajamento e mobilização de todos nós. Temos 5 meses para disputar a consciência da sociedade, eleger Lula e derrotar a ameaça bolsonarista. Pra cima deles!” (9) Não será sem medo, mas teremos que ir assim mesmo, afrontando nossos temores, como ensinava Audre Lorde, jamais esperando que a ação coletiva se dê apenas quando tivermos aquilo que nos está historicamente inacessível: o luxo supremo do completo destemor.
“Podemos aprender a agir e falar quando temos medo da mesma maneira como aprendemos a agir e falar quando estamos cansadas. Fomos socializadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, e enquanto esperarmos em silêncio pelo luxo supremo do destemor, o peso desse silêncio nos sufocará. O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar o silêncio e de atenuar algumas das diferenças entre nós, pois não são elas que nos imobilizam, mas sim o silêncio. E há muitos silêncios a serem quebrados.” (10)
REFERÊNCIAS
(1) ANDERS, G. Teses para a Era Atômica. Aforismo 13. Disponível em http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/anders.html#.Ypytl8PMKUk
(2) REVISTA FÓRUM. Lula chega a 53% dos votos válidos na média das pesquisas e vence no primeiro turno. Disponível em https://revistaforum.com.br/politica/2022/6/3/exclusivo-lula-chega-53-dos-votos-validos-na-media-das-pesquisas-vence-no-primeiro-turno-118274.html
(3) NEXO. Bolsonaro parabeniza PM do Rio por chacina na Vila Cruzeiro. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/extra/2022/05/25/Bolsonaro-parabeniza-PM-do-Rio-por-chacina-na-Vila-Cruzeiro
(4) GREG NEWS. Orçamento Secreto. Maio de 2022. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JbggQGnu1Sk
(5) JOTA. Aras processa criminalmente professor da USP por críticas à sua atuação como PGR. Disponível em https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/conrado-hubner-mendes-aras-20052021
(6) PIAUÍ. As Pensões e os bilhões da família militar. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/as-pensoes-e-os-bilhoes-da-familia-militar/
(7) JACOBIN. O nepotismo veste farda. Disponível em https://jacobin.com.br/2022/05/o-nepotismo-veste-farda-2/
(8) SAFATLE, V. O que fazer diante de um golpe em preparação. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/o-que-fazer-diante-de-um-golpe-em-preparacao/
(9) BOULOS, G. Há risco de mais um golpe militar no Brasil?. Disponível em https://jacobin.com.br/2022/05/ha-risco-de-mais-um-golpe-militar-no-brasil/
(10) LORDE, Audre. Irmã Outsider. Ed. Autêntica. Excerto publicado pelo The Intercept disponível em https://theintercept.com/2019/11/27/audre-lorde-ensaio-irma-outsider/
REDES:
Publicado em: 05/06/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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