A Ideologia, este negócio que intelectuais de esquerda costumam querer desconstruir com as bananas de dinamite da Crítica, não é vista por boa parte de seus consumidores como algo ruim, ou seja, como uma desastrosa alienação da consciência que nos rouba a lucidez e nos entrega como reféns aos caprichos da classe dominante opressora.
A Ideologia é muitas vezes um leite condensado que a gente come até se empanturrar, e que depois nem corremos atrás de um exame de glicemia para checar se atingimos um grau grave de açúcares na corrente sanguínea.
Saí do cinema, após assistir a Coda, matutando sobre o poder do Cinema enquanto veículo de Ideologia. Este filme açúcarado, comovente e um tanto melodramático é uma verdadeira bomba semiótica que os EUA lança ao panorama cultural global no intento de influenciar seus rumos em prol de sua própria investida no American Dream (ele se chama assim, como dizia George Carlin, pois é preciso que você esteja dormindo para acreditar nele…).
Após os créditos finais, com aquelas lindas canções e gestos ressoando ainda na memória, nós nos pegamos pensando nas motivações que levaram a Academia a premiar como a melhor obra cinematográfica do ano este indie flick que bombou em Sundance e depois foi comprado pelo serviço de stream da Apple. O filme é um baita case de sucesso que traz em seu cerne o elogio do mérito individual que transpõe quaisquer barreiras em seu caminho para o topo.
Se, no ano anterior, o desalento do precariado foi reverenciado através da consagração de Nomadland, em 2022 foi a vez da entronização de uma heroína da meritocracia. Talvez o filme tenha sido escolhido não apenas por suas virtudes intrínsecas, que não são poucas, mas também por ser a encarnação daquilo que os EUA deseja vender ao mundo como sendo sua essência? Não está encapsulada no filme a doutrina da Terra de Oportunidades, das inúmeras portas de possibilidades que se abrem para os talentosos, ainda que estes partam de condições adversas?
Consagrado no Oscar de 2022 com três prêmios (Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado para Sian Heder e Melhor Ator Coadjuvante para Troy Kotsur), Coda é certamente um filme eficaz em comover, daqueles que conduz uma considerável parte da platéia às lágrimas. Possui uma dose considerável de originalidade que espraia frescor sobre a telona, ainda que poucos estejam lembrando que trata-se de um remake do filme francês A Família Bélier, de Eric Lartigau (2014).
Termina concedendo-nos os prazeres fissurantes do happy end, naquilo que a BBC chamou de um feel-god movie, mas que recalca toda a problemática do que viria a seguir após o final-tão-feliz. Ideologia também se manifesta nisto: vender um estágio do percurso como o desenlace feliz de toda a trajetória, forcluindo os fatos sinistros sobre como seria a vida da família de Ruby na ausência desta após seu vôo de Ícara para longe do ninho, nas asas da Música na qual ela se excede em méritos.
Em vários aspectos, a narrativa lembra aquela da série Maid – em ambas, a protagonista é uma mina talentosa presa aos perrengues de uma vida laboriosa e exaustiva. Ambas transbordam de vontade de escapar ao emparedamento de suas origens; uma é cantora, a outra tem os talentos literários que se espera de uma escritora, e ambas perfazem a travessia da heroína (para lembrar das teorias sobre o herói mítico propostas por Joseph Campbell). Elas comovem pois saltam por cima dos obstáculos que as prendiam a um relacionamento abusivo ou a uma família divergente e surda-muda que tendia a perpetuar o estado de dependência em relação à filha-que-escuta.
São duas heroínas da ideologia meritocrática: a condição da eficácia desses bem-sucedidos jailbreaks que elas realizam é o mérito delas, o talento ou dom de que dispõem. Vende-se assim a ideia de que na Terra das Oportunidades que é o U.S.A., portais se abrirão para acolher com holofotes e scholarships as pessoas meritórias, as novas Mariah Careys e as novas Sally Rooneys.
O que se recalca é que a ex-empregada doméstica (maid), no happy end da série, está entrando no pesadelo da dividocracia e que gastará anos para pagar os credores que possibilitaram sua entrada na universidade; assim como Ruby, em Coda, ao decidir estudar música em Berklee, provavelmente lançará sua família de surdos-mudos em um estado de precariedade, ou mesmo de miséria, que o final feliz do filme recalca.
Mas já que estamos falando de méritos, é inegável que Coda os possui em altas doses. Infelizmente, os tradutores do título do filme para o português carregam nas tintas do comercialismo com este insosso No Ritmo Do Coração, aniquilando a ambiguidade interessante que carrega o nome de batismo do filme dirigido pela Sian Heder (este é seu segundo longa-metragem, tendo estreado em 2016 com Tallulah).
Coda é evidentemente um acrônimo para Child of Dead Adults, ou Filho de Adultos Surdos, mas é também um termo da linguagem musical que simboliza o fim de uma peça, vindo após um ciclo de compassos, distinguindo-se assim do da capo que solicita do musicista a repetição de um certo trecho da música. Nome de uma coletânea lançada pelo Led Zeppelin, por exemplo, o termo Coda insere o filme no âmbito da musicalidade, domínio onde a obra rebrilha de boas ideias e performances memoráveis.
A resenha do portal Pop Matters destacou com competência o quanto o frescor de originalidade que sopra de Coda tem a ver com o uso inteligente da Linguagem de Sinais Americana (ASL) – o equivalente nos EUA das Libras no Brasil. A protagonista Ruby, interpretada por Emilia Jones, transita entre dois mundos comunicacionais: a língua inglesa falada e cantada, na qual ela é fluente, e a língua gesticulada com a qual se comunica com pai, mãe e irmão, todos surdos.
“One of the film’s great challenges is to establish dynamic comedic timing in ASL that works on screen and showcase that ASL is equally as expressive, improvisational, and creative as any language. It largely succeeds on that score—though the humor itself, ranging from fart jokes to invented signs for “twat-waffle” and “shitface”—falters when it strains to be relatable. Ultimately, CODA—an acronym for “child of deaf adults”—yearns for its audience to understand that deafness, with all its challenges, is no impediment to a healthy, functioning, happy life.” – POP MATTERS
O filme é educativo ao descrever os dramas da surdez (e do mutismo dela decorrente) em algumas cenas memoráveis. A mescla bem balanceada de drama e comédia, que faz com que alguns críticos chamem Coda convocando o neologismo dramedy, manifesta-se no fato de que os pais de Ruby nunca a ouviram cantar, e não saberiam dizer se ela é afinada e tem um timbre bonito, ou se é péssima no canto e só vai oferecer munição para bullying ao alimentar ambições de cantora.
O momento “epifânico” se dá, para os pais, no teatro da escola em que, mesmo imersos no silêncio, eles testemunham o efeito da música que Ruby está cantando com seu namoradinho sobre os presentes que os escutam. O filme faz recurso ao mute no momento de culminância da canção romântica, comunicando de maneira comovedora os dramas do pai, mãe e irmão de Ruby por estarem trancados para fora do vasto reino da experiência auditiva.
Estar privado de acesso ao abrangente e diversificado domínio dos sons equivale a ter uma experiência humana empobrecida não só pela ausência da Música humanamente produzida e dos sons da Natureza (de pios de pássaros aos rugidos de cataratas). Ausente está também tudo o que se comunica pela Voz investida de afetos e que cada um carrega como unicidade, tipo uma impressão digital. O surdo não tem tíquete de entrada no fascinante domínio das Vozes Plurais – Filosofia da Expressão Vocal de que trata Adriana Cavarero em livro magistral (ed. UFMG) [saiba mais].
A cena no teatro a que aludimos comove e produz compaixão no espectador ao mostrar o estado de alienação em que se encontra a família surda, privados da beleza sônica à qual não possuem acesso. Ponte entre o mundo dos que escutam e o mundo da família surda, Ruby é uma tradutora (às vezes traidora…), que busca ser inclusiva: sempre que pode, serve de intérprete para a família quando esta busca ser empreendedora e criar sua própria micro-empresa de pesca e comércio de peixes.
Já na prova que Ruby realiza para tentar entrar na faculdade de música Berklee em Boston, ao notar a presença da família, ela faz uso de recursos extra-musicais, ou seja, a linguagem “mímica” de signos corporalizados) ao realizar sua performance de “Both Sides Now” da Joni Mitchell. Ela não quer que o trio de parentes surdos-mudos estejam trancados para fora de qualquer compreensão do sentido da canção. Ela traduz a letra com os gestos de seu corpo e assim expande a expressividade da obra a ponto de conquistar a banca examinadora.
A comunicação é uma necessidade humana tão visceral e imprescindível que quando ela tem impedidas as vidas normais de expressão acaba por se manifestar de outras maneiras, pelos gestos, pela dança, pelas notas musicais etc. O livro e o filme O Escafandro e a Borboleta é uma pungente expressão disto: a ânsia por dizer a respeito de sua condição leva o protagonista a escrever uma obra em estado de quase completa imobilidade, apenas piscando os olhos.
Em Coda, um dos momentos mais tocantes ocorre novamente no silêncio das bocas: Ruby e seu mestre Villalobos estão sozinhos na sala de música; ele pediu pra que ela lhe dissesse o significado que possui para ela o cantar e, na falta de palavras, ela gesticula. Esta poética silenciosa que o corpo de Ruby forja deixa-nos sentindo que ela diz mais assim do que diria com mil palavras.
Outra cena comovedora é aquela em que o professor, após testemunhar a “fuga” de Ruby na aula inaugural do coral, quando ela não teve coragem para entoar um happy birthday a capella, ensina-lhe algo sobre expressão musical fazendo recurso “ao que disse Bowie sobre Dylan”: a voice like sand and glue. É verdade que Emilia Jones não está nem perto de ter uma voz que soe como areia e cola, mas de todo modo Coda comunica assim a noção de que o mundo está repleto de gente com vozes bonitinhas e que não tem nada a dizer. Para muitos ouvidos, Bob Dylan tem uma voz feia, anasalada, de timbre irritante, mas isto não o impediu de tornar-se um dos maiores ícones na história da música folk e o vencedor de um Nobel de Literatura inédito para um songwriter.
Outro dos méritos inegáveis do filme é a crônica da vida laboral da família no barco de pesca e na zona portuária, em que um realismo à la Ken Loach pontua os perrengues que enfrentam. Adensa-se o dilema da protagonista, perpassada pela sua ambição de seguir carreira na música e a dependência em que sua família se encontra dela que é a única membra que escuta.
Esta discrepância traz todo um peso dramático a algumas das melhores cenas de Coda, quando se revela um pouco da psicologia da relação mãe-filha, separadas por um abismo constituído pelo surdez de uma e pela “normalidade” da outra. A mãe confessa a certo momento que ficou triste ao descobrir que a filha escutava, prevendo que um abismo de incompreensão se abriria entre elas: Ruby jamais compreenderia a vivência de sua mãe surda. Em outra cena, tragicômica, Ruby revela à mãe que deseja ser cantora, e a mãe reage dizendo: “se eu fosse cega, você ia escolher tornar-se pintora?”
O filme utiliza sua narrativa para enganchar o espectador, conduzindo-o a acompanhar com interesse as difíceis escolhas de Ruby no labirinto de sua vida cheia de eventos transformadores. A fórmula perfeita do “filme de Oscar” é aplicada com maestria pela diretora, que carrega nas tintas da superação das adversidades, da união familiar apesar de todos os reveses e do mérito individual que faz a heroína alçar-se rumo aos holofotes da fama.
Não há dúvida que milhões vão se empanturrar com o leite condensado desta adorável Ideologia que Coda, auxiliado pela magistral trilha sonora diegética que honra Bowie, The Clash, The Shaggs e Marvin Gaye (dentre outros), nos entrega com singular irrestibilidade. Seria interessante, no entando, que uma sequência do filme trouxesse, em uma espécie de Coda II – No Ritmo do Precariado, um pouco dos tremendos perrengues vivenciados pela família de Ruby ao perderem-na enquanto esteio, arrimo-de-família, tradutora-sustentáculo. O happy end ideológico recalca que, no dia seguinte à entrada dela na prestigiosa Berklee, a vida dos familiares seria provavelmente uma dificultosa jornada pelos labirintos daquela austeridade econômica e opressão laboral que, no ano anterior, Nomadland retratou com tintas melancólicas.
Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, 05/04/2022
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A comovente saga de uma heroína da meritocracia em “Coda – No Ritmo do Coração”. Leia o artigo multimídia e hipertextual em @acasadevidro, por E. Carli #Coda #Cinema #Crítica #Filmes #Oscar2022 #Música #Canto #Surdez #ACasaDeVidro #Cultura #Arte #Vídeos https://t.co/ABaVcRJpyg
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Publicado em: 05/04/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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