A vida e obra camaleônicas do ícone David Bowie (1947-2016) suscitam ainda hoje uma avalanche de comentários, documentários e análises justamente por se tratar de um multi-artista que encarna uma esfinge. Ainda bem que não seremos devorados se não conseguimos decifrá-la! O esforço do crítico e do admirador no sentido desta decifração não é sem efeito para uma apreciação mais aprofundada desta trajetória artística que nos deixou, após os 69 anos que ele esteve entre os vivos, um legado que parece inesgotável. Aqui, focaremos no Bowie que emerge no início dos anos 1970 com a obra-prima Hunky Dory e tentaremos compreender, na esteira do que foi sugerido por Assante, como o artista lidou com o tema da “crise de identidade” de maneira ímpar, ou seja, colocando em fluxo, em regime de perpétua motricidade, o próprio conceito falsamente estático de identidade:
“Se Bowie teve uma virtude no final dos anos 60, foi que ele reagiu à crise de identidade que afetou o rock como cultura e como geração de músicos, após a onda de Woodstock e a perda de uma série de luzes orientadoras que foram ceifadas pelo abuso de heroína, quando os anos sessenta deslizaram para os anos setenta. (…) Bowie estava indeciso entre o Velvet Underground e a decadência encharcada de heroína ao estilo dos Stones (pós-Brian Jones), ou as viagens psicodélicas do Pink Floyd em direção a um futuro eletrônico-místico, realçado pelas cores do LSD. Então, no final, ele meio que encontrou um meio-termo, se livrou de seu equipamento Mod e, com autoridade crescente, se transformou em um músico que sabia que estava entre um mundo desaparecendo e o alvorecer de um novo mundo. Os anos sessenta estavam de saída (eles não desapareceram completamente até 73 ou 74), mas naquela época os anos setenta pareciam uma imitação horrível, vulgar e empobrecida. Bowie se tornou o símbolo dessa indecisão, dessa ambiguidade, dessa perda de direção.” Ernesto Assante
É fácil cair de amores por Ziggy Stardust, com tudo que este álbum e esta persona possuem de bombástico e artificioso. Mais difícil é perceber os curiosos caminhos que servem como precedentes para a eclosão daquela obra que tanto impactou a cultura popular de sua época: um pouco antes, no começo dos anos 1970, o Camaleão-da-Música também apostava em charmes mais estranhos do que o apelo às entidades alienígenas e as aranhas de Marte, concentrando-se nas vidas terrenas destes queer earthlings que somos.
Hunky Dory (1971), o álbum bowiano que ouvi com mais voracidade e fascinação, serviu sobretudo para consolidar em mim uma incompreensão instigante sobre o artista. Uma sedutora atmosfera queer parecia recobrir os caminhos deste disco onde o glam rock e o folk dylanesco pareciam abraçar uma noção muito avant-garde de liberdade artística. Eu me apaixonei por este álbum pois ele parecia me atrair feito um ímã a repetidas escutas, já que boa parte de suas letras e mensagens pareciam criptografadas e enigmáticas. Foi assim que Bowie, há cerca de 15 anos atrás, tornou-se uma fascinante incógnita, um complexo enigma, que convoca o ouvinte à exploração psiconáutica nas ondas de seus sons e seus versos tão mesmerizantes.
Hunky Dory foi descrita pelo crítico Stephen Thomas Erlewine, da Allmusic, como uma obra de “arranjo caleidoscópico de estilos pop, unidos somente pelo senso de visão de Bowie: uma vasta mistura cinemática de artes altas e baixas, sexualidade ambígua, cafonice e classe”. «Hunky Dory – David Bowie | Songs, Reviews, Credits | AllMusic».
Hunky Dory permanece sendo o disco artisticamente mais completo e admirável do músico mais influente da década de 70 e, se me perguntarem, é simplesmente um dos grandes álbuns da história do rock. Um crítico disse uma vez que, neste álbum, Bowie adotou uma atitude de “posso ser Dylan, Lou Reed e Syd Barrett de uma vez só!” – e foi bem isso mesmo: assumindo cada vez mais uma persona andrógina e brincando cada vez mais com a ambiguidade sexual, Bowie aparecia na capa parecendo uma moçoila loira frígida de uma fotografia antiga. Conta-se que ele chegou à sessão de fotografias louco para parecer com Marlene Dietrich – e a foto vintage que estampa a capa de Hunky Dory “tem um carisma próximo ao de uma rainha do cinema em decadência” (BM).
Hunky Dory contêm uma filosofia difícil de descrever, mas que soa como uma mescla de Nieztsche, Crowley, Darwin, Warhol, Dylan e anfetaminas. Bowie, feito um Zaratustra do Pop, faz referência à chegada de uma certa era em que a humanidade ficaria obsoleta e fora-de-moda, uma raça tornada quase inútil (“homo sapiens have outgrown their use”, canta ele), tendo que ser substituída por uma outra leva de super-homens que a juventude teria como missão inventar.
Sem os processos criativos de Hunky Dory, Bowie não poderia ter amadurecido aquilo que seria um dos discos mais seminais do glam rock:m Ziggy Stardust, no ano seguinte (1972), traria o artista correndo o risco de assumir o personagem um tanto andrógino e esquisitão de um extraterrestre que descia à Terra trazendo o rock de outras galáxias, nós, pasmos terráqueos, ficamos para sempre contagidos com o som que fazia aquela criatura sexualmente ambígua, acompanhada por uma banda de aranhas marcianas soltando chispas de eletricidade. Assumindo o papel do messiânico e amaldiçoado rock star Ziggy Poeira Estelar, Bowie caiu fundo na brincadeira de ser uma estrela pop, vestindo roupas futuristas, maquiagem pesada e cabelos laranja resplandencentes.
Seu sucessor, o também brilhante Alladin Sane, “continuava na mesma plataforma genial de Ziggy e oferecia um relato brutal de um artista em ascensão.” Na sequência veio o álbum conceitual Diamond Dogs, baseado na distopia política seminal de George Orwell, 1984. Numa fase posterior, depois do fim de seu casamento com Angie e problemas de dependência à cocaína e álcool, conta-se que Bowie ficou “cada vez mais paranóico e obcecado com ovnis, ocultismo e Adolf Hitler” (CSh).
Influenciado pelo novo rock vanguardista alemão de Can, Neu! e Kraftwerk, Bowie se meteu a fazer um disco que é sua versão do soul (Station to Station, de 1976) e depois compõs a famosa Trilogia de Berlim – cujo ponto alto é Low (de 1977), com a contribuição de Brian Eno.
Bowie nos 70’s também faria importantes trabalhos como produtor de discos que se tornariam clássicos, como o Transformer de Lou Reed e o Raw Power de Iggy Pop com os Stooges. Sem falar que ajudou a parir o hino do glitter que o Mott the Hoople imortalizou, “All The Young Dudes”. Iniciou também uma carreira cinematográfica paralela, atuando no The Man Who Fell To Earth de Nicolas Roeg, contracenando com Kim Novak em Just a Gigolo e vivendo Pôncio Pilatos no A Última Tentação de Cristo de Martin Scorcese, entre outros papéis menos notáveis.
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Para explicar em mais detalhes o charme e o impacto de Hunky Dory, passo a palavra para Pedro Só (extraído do Discografia Básica da Bizz, Abril de 2001):
O LADO MALUCO-BELEZA DA REVOLUÇÃO GLAM
Enquanto exaltava a nova raça andrógina e mutante, Hunky Dory também trazia recados de David Bowie para a garotada viciada em TV e sexualmente confusa diante das portas abertas pelos anos 60
– por Pedro Só –
Não era exatamente como divindade pop que aquele suburbano magrelo, ex-mímico, ex-mod, com três álbuns incoerentes no currículo, era tratado em Londres. Aos 24 anos, David Bowie já ensaiara passos como cantor-compositor hippie e tentara ser o que os ingleses chamam de “music hall entertainer” (uma coisa meio Ivon Curi).
No começo daquele 1971, havia lançado um disco de rock pesado, The Man Who Sold The World, aparecendo na capa metido num vestidinho. De escassa repercussão, o trabalho despertou a atenção de um empresário canalha americano, Tony DeFries. Embarcado para os EUA, Bowie trocou figurinhas com Lou Reed e Andy Warhol. Começava o plano marqueteiro que o estouraria em 1972, impulsionado pelo rock’n’roll energético de Ziggy Stardust. A incipiente revolução glam já estava em curso, mas o futuro astro demorou um disco para cair dentro musicalmente.
Esse disco foi Hunky Dory. A partir dele, Bowie deixou de ser uma nebulosa promessa. Logo na abertura, “Changes” (“Mudanças”), inspirada pela gravidez da então esposa Angie, assumia sua natureza mutante e avisava: “Essas crianças em quem você cospe / Enquanto tentam mudar seus mundos / São imunes aos seus consolos / Eles sabem muito bem o processo pelo qual estão passando”. O arranjo, porém, era típico de café-teatro, baseado no piano de Rick Wakeman (do Yes) e com mudanças de direção na estrutura harmônica a perseguir aquele truque Cole Porter de traduzir a letra em música.
Em seguida, mais uma adorável frescura pianística, “Oh! You Pretty Things!”, saudava a chegada do filho Zowie misturando conceitos maluco-beleza nietzschianos (“abram alas para o Homo Superior”). Terminava com mais um alerta: “Todos os estranhos chegaram hoje / E parece que estão aqui para ficar”.
Muito além da simples exaltação da nova raça andrógina e extravagante – mencionada em “Kooks”, outro vaudeville coruja em homenagem ao pequeno Zowie -, as mensagens pegavam em cheio a garotada que crescia viciada em TV e sexualmente confusa diante de tantas portas abertas pelos anos 60. Meninos e meninas capazes de entender o zapping da balada “Life on Mars?”. Nessa obra-prima bastarda (“inspirada por Frankie”, informa a contracapa – no caso, “Frankie” Sinatra e sua versão de “My Way”), papai, mamãe, Mickey Mouse, Lennon “à venda de novo”, a “Amerika”, a decadente Inglaterra, sonhos de celulóide… tudo é triturado no coração de uma adolescente. E transformado em beleza pelas cordas arranjadas por Mick Ronson (1946-1993), guitarrista que passsaria à eternidade como o adorável presepeiro a escudar Ziggy.
Na categoria “grandes imitações”, Bowie incluiu três recados para lá de ambíguos. “Andy Warhol”, um pseudoflamenco, mais sacaneia do que homenageia (“Andy tira uma soneca”, “Andy pensa em tinta e cola, mas que coisa legal mais chata!”). “Song For Bob Dylan” dirige-se ao bardo como se ele fosse um super-herói (“Dê-nos de volta nossa unidade / Não nos deixe com a sanidade deles”), não sem certa ironia. “Queen Bitch”, talvez o único rock’n’roll do álbum, é paródia assumida do Velvet Underground, com vocais falados à Lou Reed e letra sobre uma bicha má que rouba o “amigo” do narrador.
Para fechar, uma pitada de originalidade, “The Bewlay Brothers”. Por trás da letra críptica, impenetrável, repleta de referências à convivência com Terry (o irmão esquizofrênico de Bowie que se matou), o pathos da grande arte. Como algumas das melhores coisas da vida, você não entende, mas sente. Em Hunky Dory, se fez farejar pelo mundo o genial diluidor que há três décadas dá as cartas na música pop. A partir de idéias alheias, sim, mas e daí?
DOWNLOAD DO DISCO
https://www.mediafire.com/file/mk897spyzbdv0b4/DAVID+BOWIE+-+1971+-+Hunky+Dory+(MP3+-+Full+Album+-+www.acasadevidro.com).zip/file
Penso que a importância existencial-filosófica de Bowie está na encarnação num destino singular e irrepetível do tudo flui heraclitiano. Ele abraçou a metamorfose como poucos artistas, aceitando a vida como fluxo de changes, como se afirmasse que a única constante no universo é a mudança, inclusive a de si. Ser humano é fluir como um rio muito mais do que ser uma montanha imóvel, uma rocha estática. Por isto, o filósofo australiano e sábio contemporâneo Roman Krznaric cita Bowie em seu maravilhoso livro Carpe Diem como exemplo da sabedoria que há em acolher a impermanência de nós e de tudo:
“Vejo outra abordagem à impermanência nas muitas vidas de David Bowie. Ao longo de toda a sua carreira ele foi conhecido pela capacidade de se reinventar, em especial por meio da criação de novos personagens públicos. Estes tiveram origens complexas, inclusive em seu estudo do teatro Kabuki e na influência de seu primeiro professor de dança, Lindsay Kemp.
Após começar como roqueiro acústico hétero nos anos 1960, ele explodiu no palco em 1972 com seu alter ego Ziggy Stardust, uma estrela do rock bissexual alienígena. Reinventou-se de novo com personas como Aladin Sane e Thin White Duke, depois emergiu nos anos 1980 como ídolo pop oxigenado que fez álbuns como Let’s Dance. Ao mesmo tempo, Bowie se transformou em ator, assumindo papéis importantes em filmes como O Homem Que Caiu na Terra e produções teatrais como O Homem Elefante.
A natureza enigmática de suas metamorfoses foi comentada pelo próprio Bowie em 1976, numa declaração classicamente elíptica: “Bowie nunca foi destinado a existir. Ele é como uma caixa de Lego. Estou convencido de que não gostaria dele, porque é oco e indisciplinado demais. Não há um David Bowie definitivo.” Quer sejam feitas ou não a partir de uma caixa de Lego, as muitas vidas públicas de Bowie podem ser vistas como uma série de pequenas mortes, em que novos Bowies nasciam regularmente à medida que velhos Bowies morriam. Como artista, ele estava sempre num estado de transitoriedade, personificando a ideia de impermanência – tema refletido em sua canção “Changes” (de Hunky Dory).
No fim ele abandonou de fato o fluxo de impermanência morrendo de câncer no fígado, mas não antes de aproveitar o dia e fazer um último álbum, Blackstar, em que chega a cantar sobre sua própria morte. Muitas pessoas tiveram suas vidas mudadas por David Bowie, mas acho que um de seus legados é oferecer inspiração àqueles que podem sentir muitos eus se agitando dentro de seu ser, à espera de irromper – do adolescente que sonha em assumir em público sua sexualidade ao contador frustrado que quer viver uma vida mais criativa e aventureira. A filosofia de pequenas mortes pode nos galvanizar para aproveitar o momento, deixar um velho papel para trás e nos inventarmos de novo.”
ROMAN KRZNARIC em Carpe Diem
RJ: Editora Zahar, 2018, pg. 43
Artigo publicado por: Eduardo Carli de Moraes, 30/01/22.
Link Permanente: https://acasadevidro.com/bowie-hunky-dory/
Publicado em: 30/01/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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