Nascido em 1945, em Belfast (na Irlanda do Norte), Van Morrison deixou uma marca indelével na história da música com seu álbum Astral Weeks em 1968 – antes, ainda adolescente, havia cantando na banda de rhythm’n’blues Them, responsável por alguns singles de sucesso como “Gloria”. Conhecido das massas sobretudo por seu hit radiofônico “Brown-Eye Girl”, o cantor-compositor pariu com Semanas Astrais um disco “generally considered one of the best albums in pop music history” (AMG).
“…ele [Astral Weeks] assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia ainda algo a ser expressado artisticamente além de niilismo e destruição. (…) Parecia que o sujeito que compôs Astral Weeks sofria de uma dor terrível, uma dor que os discos anteriores de Van Morrison haviam apenas sugerido; mas, como os últimos álbuns do Velvet Underground, havia um elemento redentor na escuridão reinante, uma compaixão suprema pelo sofrimento dos outros e um raio de pura beleza e estupefação mística envolvendo o coração da obra.” (BANGS, Lester. Reações Psicóticas, pg. 22)
Outro excelente crítico musical, o inglês Simon Reynolds, comenta que “o álbum é uma visão, tanto exultante quanto atormentada, do paraíso perdido e talvez, só talvez, reencontrado”:
“De todos os artistas a emergir da era psicodélica e de seu legado, Van Morrison e o Pink Floyd são os mais fixados na nostalgia do Éden. (…) Suas canções reiteram de maneira obsessiva imagens árcades: ‘a criança virgem descalça’; vagar por jardins opalescenetes de chuva nevoenta; saciar uma alma sedenta com água pura da nascente; estar envolto na ‘tranquilidade do silêncio’… E, assim como a poesia de Morrison exalta iridescência e fluidez, sua voz e música personificam tais qualidades. Seu vocal scat-soul é um riacho de fala ininteligível; a música é uma corrente borbulhante, repleta de curvas folk, jazz, blues e soul, cheia de espirais e redemoinhos, cintilizações e manchas solares sob os cílios.” (REYNOLDS, S. Beijar o Céu.)
Essa “saudade do Éden” fica clara no ambiente emocional que besunta todo Astral Weeks (“o reconhecimento da inalterável falta de um lar e a luta contra isso” é a essência do melhor trabalho de Van Morrison, diz M. Mark). Poucos momentos são mais emblemáticos disto do que quando Van canta na faixa-título: “i’m nothing but a stranger in this world / i’ve got a home on high…”.
A mistura da melancolia por não ser nada nesse mundo a não ser um estranho, e a esperança radiosa do reencontro futuro de um Lar, é o que torna essa canção – e o álbum em geral… – um originalíssimo e estranho mélange de tristeza e luz, de angústia e radiação, algo que nos sentiríamos tentados a chamar, usando a expressão de Victor Hugo, de melancolia feliz…
Simon Reynolds, grande intérprete da obra, nota, por exemplo, que “em ‘Beside You’ Morrison deseja ansiosamente a proximidade absoluta, o êxtase sem estranhamento da intimidade pura, que talvez só seja experimentado mesmo no peito materno ou na suspensão envolvente do útero. Ele anseia ‘nunca, nunca se perguntar por quê’ e voltar ao reino de onde dúvida e medo foram banidos”.
Astral Weeks é uma das obras mais profundamente “espirituais” já a dar o ar de suas graças no reino vastíssimo disso que chamamos de “música pop”. Dentre os álbuns clássicos dos anos 60, este é o que se encontra mais distante do espírito da cultura de massas e da reprodutibilidade técnica espantosa que é marca da indústria fonográfica na época. Apesar de ser possível, como tentou fazer o Lester Bangs, sugerir que Astral Weeks é também o produto de uma era (a ressaca que chega batendo forte depois da orgia prolongada dos anos 60), o disco é frequente e insistentemente descrito com o adjetivo, extremamente adequado, de atemporal.
As “preocupações espirituais” de Van Morrison sempre estiveram em primeiríssimo plano em sua carreira, relegando todo o resto a um status secundário: fama, grana e groupies nunca pareceram dizer muita coisa para ele. Valia muito mais a pena “esquadrinhar o trabalho de místicos, videntes e poetas em busca de pistas” que apontassem para o tal do Éden perdido – como nota muito bem Simon Reynolds. Em suas músicas o ouvimos sailing into the mystic e “procurando por algum tipo de fé que lhe permita sentir-se em paz onde estiver”.
Essas temáticas ditas “místicas” não estão presentes somente neste álbum, mas impregnam e atravessam toda a discografia do cantor no anos 70, como comenta Simon Reynolds: “Seus álbuns de meados dos anos 70 são atormentados por um sonho com a Caledônia, ‘uma terra antiga, que soa como um lar para ele, uma terra onde seus ancestrais começaram tudo de novo e onde gaitas de fole deram à luz o blues’, nas palavras de M. Mark. A Caledônia tem a mesma função mística na cosmologia de Morrison que Sião ou a Áfria tem para os rastafáris ou a ‘velha terra dourada’ tem para a Incredible String Band: é um reino afortunado, onde a inimizade foi abolida e todos os homens são irmãos.”
O sucesso comercial não veio, até porque Astral Weeks era um disco excessivamente contemplativo, intenso e original para que pudesse ser tocado para vastas multidões (com exceção de canções mais palatáveis e radiáveis como “Sweet Thing” e “The Way Young Lovers Do”). Mas a gravadora Warner sempre considerou Van Morrison como um artista de longo prazo, que teria uma longa carreira ao invés de um compositor de singles explosivos. Era apenas o começo de uma brilhante, longa e prolífica carreira com um disco impressionista, fascinante, hipnótico, mesmerizing…
Mais que um disco, Astral Weeks é quase um documento de uma viagem mística, de uma jornada astral em domínios bem acima da terra… O som que faz uma alma em peregrinação por vários estágios do espírito, buscando a salvação, penando e gemendo por ela… O que faz com que Astral Weeks seja um álbum tão especial, tão peculiar e tão atemporal na história da música é essa espécie de halo de luz que parece circundá-lo, tornando-o, como disse Bangs, “um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas”. Acendamos sempre de novo esta música-luz que atravessa o tempo sem esmorecer.
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.
Link permanente: https://acasadevidro.com/astralweeks/
Com “Astral Weeks” (1968), seu álbum de estréia, Van Morrison marcou a história da música dos anos 1960. Faça o download do álbum na versão remasterizada e expandida (12 faixas). Saiba mais em @acasadevidro, por Eduardo Carli de Moraes: https://t.co/zYTncTF4Yy pic.twitter.com/zEtVgYpMsJ
— A Casa de Vidro (@acasadevidro) January 26, 2022
“Será este um caso de jovem genial que virou um velho vil?” – esta questão pipocou na minha mente ao descobrir, após esta publicação que fiz na comuna da Bizz e os comentários que ela suscitou, que Van Morrison e Eric Clapton andam causando um fuzuê in the UK com canções e posturas de ataque ao lockdown. Um certo Jamy Katarro apontou, após ler este artigo tão elogioso ao Astral Weeks de 1968: “todo esse passado bonito pra chegar hoje e fazer coro com o Eric Clapton no negacionismo antivax.”
O caso tem sido noticiado pelos principais órgãos da imprensa cultural global como NME e Rolling Stone: a notícia é que o irlandês, supostamente dedicado à missão de “salvar a música ao vivo” (save live music), anda disparando torpedos contra as autoridades britânicas por conta de medidas para contenção da pandemia de coronavírus.
Van compôs 4 canções no período pandêmico que hoje propulsionam uma campanha entitulada Lockdown Financial Hardship Fund: as três primeiras são “Born To Be Free,” “As I Walked Out” e “No More Lockdown”. Para a quarta single, pôde contar com Clapton, que aderiu à empreitada de Van e topou gravar “Stand and Deliver”:
Neste início de 2022, o quiproquó deve chegar aos tribunais: em Outubro de 2021, a Rolling Stone Brasil, na matéria Van Morrison é processado por discurso anti-isolamento, de teor bastante crítico, disparou:
“Mesmo com o cenário caótico da pandemia de covid-19 e milhões de mortos ao redor do mundo, Van Morrison lançou canções de protesto anti-quarentena, fez posicionamentos antivacina e criticou o Ministro da Saúde da Irlanda do Norte, Robin Swann, pelas medidas de isolamento social. Agora, Swann está processando o músico devido às falas dele contra o cenário sugerido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para contenção do vírus, via Blitz.
(…) Sobre as músicas anti-isolamento, o músico declarou: “Não estou dizendo às pessoas o que fazer ou pensar, o governo já está fazendo um ótimo trabalho nisso. É uma questão de liberdade de escolha, acredito que as pessoas devem ter o direito de pensar por si mesmas.”
Mais cedo neste ano, com a volta gradual das apresentações, Van Morrison criticou os novos formatos de shows com pessoas socialmente distantes. Ainda, convidou outros artistas a se juntarem a ele na reivindicação de um retorno ao “público em plena capacidade.” [ROLLING STONE]
Um elemento que julguei digno de reflexão neste caso todo é uma certa indistinção que alguns têm feito entre ser antivax e ser antilockdown, a confusão entre ambos me parece estar fazendo Van tomar pedrada por supostamente combater as vacinas, quando o que ele combate de fato é o “trancamento” econômico acarretada por medida de lockdown – que inclui um “estrangulamento” do mercado cultural e sobretudo dos estabelecimentos de música ao vivo. É mais ou menos por aí que vai a matéria da Billboard:
“Morrison has been campaigning for a re-opening of performance venues at full capacity, with the statement noting that he “feels strongly” that the ongoing lockdown presents an existential threat to the future of live music venues.“
Ainda não localizei nenhuma evidência de falas de Van Morrison contrárias à vacinação em si, mas sim algumas furiosas e rabugentas rajadas de tiros verbais que ele tem soltado contra o distanciamento social imposto a shows. Além de Clapton, outras celebridades do rock britânico estão surfando na mesma onda, como é o caso do ex-cantor do Oasis, que anda falando por aí que se negará a vestir máscaras:
Former Oasis guitarist/songwriter Noel Gallagher told podcast host Matt Morgan last week that he would not wear a mask while out shopping or riding public transit, saying, “There’s too many f–king liberties being taken away from us now.”
Seguiremos acompanhando o caso e traremos em breve notícias frescar sobre cultura no Planeta-Pandemia-Pandemônio,
Publicado em: 26/01/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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