Ela quis cantar até o fim – e assim o fez, com uma voz que jamais poderemos esquecer. Mas o fim enfim chegou: aos 91 anos de idade, no mesmo dia 20 de Janeiro em que Garrincha faleceu (39 anos antes), aquela voz ímpar se calou para sempre.
A lenda da cultura brasileira, nascida no Planeta Fome e auto-entitulada “mulher do fim do mundo”, Elza Soares (1930-2022) deixou a companhia dos vivos e nos legou uma obra imorredoura que totaliza cerca de 35 álbuns. Ela “deu voz a um Brasil sincopado, país de riquezas artísticas e naturais, mas carcomido pela miséria humana”, escreveu Mauro Ferreira.
O caminho que ela percorreu em seus últimos anos, como uma mulher de mais de 80 anos de idade, é digno de ser frisado: a velhice de Elza nada teve de apego nostálgico ao tradicionalismo, de repetição de velhas fórmulas. Ela foi uma idosa aventureira, corajosa, politizada, erguendo sua voz de libertação na companhia de alguns dos talentos artísticos mais expressivos das novas gerações.
Seus últimos três álbuns representam um fenômeno de acachapante originalidade não apenas no cenário da MPB, destacando-se no cenário global pelas sonoridades contemporâneas, experimentais e avant-garde em que ela ousou transitar em A Mulher do Fim do Mundo (Circus, 2015), Deus É Mulher (Deckdisc, 2018) e Planeta Fome (Deckdisc, 2019, leia a matéria d’A Casa de Vidro).
https://www.youtube.com/watch?v=6SWIwW9mg8shttps://www.youtube.com/watch?v=-m393EagdSk
Magnífica a capa que a Piauí dedica ela em sua edição #185 – Fev. 2022: a ilustração chama-se “Voz do Milênio”, realizada por Vito Quintans, e no black power de Elza estão 50 personalidades negras brasileiras que foram selecionadas em curadoria de Nei Lopes e Cléa Maria Ferreira.
“A consagração definitiva de Elza Soares veio com o apocalíptico álbum A mulher do fim do mundo, lançado em setembro de 2015. A mulher do fim do mundo fez jorrar lágrima sobre o choro da cuíca, ouvido entre guitarras distorcidas. A lágrima escorreu no esquema do samba noise que conectou a cantora a artistas paulistanos como Kiko Dinucci e Rodrigo Campos.
Produzido por Guilherme Kastrup sob a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim, o álbum A mulher do fim do mundo revitalizou a bossa negra de Elza, mulher da pele preta, entidade que reeditou o vigor e contundência do disco de 2015 no álbum seguinte, Deus é mulher (2018), feito com a mesma turma paulistana.
Em 2019, o álbum Planeta fome repôs a cantora em órbita carioca, roçando a contundência dos dois discos anteriores com canto dessa voz do samba e do morro que transcendeu estilos e latitudes com a bossa negra de alcance universal.” – MAURO FERREIRA (op cit)
Sua vida quase completa foi narrada pelo jornalista Zeca Camargo em biografia publicada pela Ed. LeYa em 2018 (você pode acessar o e-book completo em PDF clicando aqui).
No livro estão expostos em minúcias os episódios marcantes de uma existência conturbada, que incluiu um casamento forçado ainda na pré-adolescência (aos 12 anos, tornou-se esposa e aos 13 já era mãe), uma viuvez prematura, filhos que morreram de fome; anos depois, com a carreira consolidando-se a partir de 1961, acaba casando-se com o craque Garrincha, mas são notórios os lamentáveis episódios de violência doméstica que o jogador perpetrou contra a esposa; com o golpe de 1964, a artista entra em conflitos com a ditadura militar que obrigaram Elza e Garrincha ao exílio na Itália em 1970 – e por aí vai. A obra encontra-se disponível na Livraria A Casa de Vidro por $50 (semi-novo).
A morte de Elza neste início de 2022 repercute mundo afora: no The Guardian (Inglaterra), por exemplo, artigo de Tom Phillips celebra “one of the greatest Brazilian singers of all time” descrevendo-a como “national treasure” e “global star”. A BBC também honrou Elza, “rainha invencível do samba”, através do podcast Invincible Queen of Samba (26 min, site).
No cinema, a trajetória de Elza já rendeu o filme My Name Is Now (2014), dirigido por Elizabete Martins Campos e disponível para download no MakingOff. Sinopse: “Um filme com a cantora Elza Soares, ícone da música brasileira, numa saga que ultrapassa o tempo, espaço, perdas e sucessos. Elza e seu espelho, cara a cara, nua e crua, ao mesmo tempo frágil e forte, real e sobrenatural, uma fênix, que com a força da natureza transcende e canta gloriosamente.”
11. Elza, Miltinho e samba – vol. 2 (Odeon, 1968) – com Miltinho
12. Elza, carnaval & samba (Odeon, 1969)
13. Elza, Miltinho e samba – vol. 3 (Odeon, 1969) – com Miltinho
14. Samba & mais sambas (Odeon, 1970)
15. Elza pede passagem (Odeon, 1972)
16. Sangue, suor e raça (Odeon, 1972) –com Roberto Ribeiro
17. Elza Soares (Odeon, 1973)
18. Elza Soares (Tapecar, 1974)
19. Nos braços do samba (Tapecar, 1975)
20. Lição de vida (Tapecar, 1976)
21. Pilão + Raça = Elza (Tapecar, 1977)
22. Senhora da terra (CBS, 1979)
23. Elza negra, negra Elza (CBS, 1980)
24.Somos todos iguais (Som Livre, 1985)
25. Voltei (RGE, 1988)
26. Trajetória (Universal Music, 1997)
27. Carioca da gema – Ao vivo (Edição independente, 1999)
28. Do cóccix até o pescoço (Maianga, 2002)
29. Vivo feliz (Reco-Head / Tratore, 2003)
30. Beba-me – Ao vivo (Biscoito Fino, 2007)
31. A mulher do fim do mundo (Circus, 2015)
32. Elza canta e chora Lupi (Coqueiro Verde Records, 2016)
33. Deus é mulher (Deck, 2018)
34. Planeta fome (Deck, 2019)
35. Elza Soares & João de Aquino (Deck, 2021)
Publicado em: 21/01/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia