Aqui no ponto de cultura A Casa de Vidro, que tem por um de seus alvos “plugar consciências no amplificador”, com frequência estamos espalhando pelos ares a música magnética, sedutora e inventiva de Pietá e Juliana Linhares. Pois sempre gostamos, no desenrolar cotidiano das atividades, de botar pra rolar nos alto-falantes alguns sons que expandam os horizontes dos agentes culturais que frequentam o espaço, e há raros artistas tão bons na arte de “fazer delirar o verbo e esticar horizontes”, para emprestar as expressões de Manoel de Barros.
Certas canções proporcionam uma experiência estética que convida a pensar o dinamismo da cultura enquanto campo da ação humana que não é baseado apenas no apego às tradições consolidadas, mas também em rupturas subversivas e reinvenções dos cânones. Afinal, até as próprias tradições tiveram um dia que ser inventadas e, apesar das fantasias ingênuas dos conservadores, nunca cessaram de se transformar no fluxo da história.
Os que têm ouvidos atentos aos sons renovadores farão um benefício a si mesmos, e àqueles ao redor, conectando e criando laços de afeto com artistas como aquelas da banda Pietá e sua cantora-compositora Juliana Linhares – que estão entre as pepitas prediletas d’A Casa de Vidro e nos abrem visadas rumo a um Nordeste sem clichês, para além dos estereótipos regionais. A artista participa também do trio feminino Iara Ira, junto com Duda Brack e Julia Vargas, com um primoroso álbum de estréia já lançado.
Na atual conjuntura de cultura colonizada pelo comercialismo, ainda encontram-se bastiões de resistência entre agentes culturais que pensam além da música como mercadoria, que descolonizam-na em prol do que Larissa Luz vai chamar de território conquistado. Conquistado não pela colonização comercial de tudo que hoje o capitalismo moribundo tenta consumir, mas pelo “princípio da liberdade”, tão bem cantado e encarnado também por Juliana Linhares. Ela alçou vôo-solo no álbum Nordeste Ficção, seu debut desacompanhada dos camaradas de Pietá.
Nordeste Ficção talvez seja, para a a nossa música, o que foi Bacurau para o cinema. O disco da Ju é uma bombona de explodir estereótipos com pouca delicadeza e boa dose de fúria. Os historiadores do futuro, quando quiserem descobrir uma musicalidade insurgente, nos anos do desgoverno do Coiso, poderão encontrar no segundo álbum da banda, o ironicamente entitulado Santo Sossego, vários levantes de sons e versos, de músicas e poemas, salutares e desassossegados.
Nordeste Ficção mostra Ju assumindo este lado rebelde que já se manifestou fortemente no Santo Sossego tão pontiagudo que saiu em 2019. Em 2021, ela narra em uma obra que certamente está entre as mais ousadas da MPB no ano de seu lançamento (em competição acirrada com Juçara Marçal e seu premiadíssimo Delta Estácio Blues:
“Eu conheci uma pessoa nefasta
Venenosa até dizer basta
Cascavel de pele que não desgasta
Quem chega perto sente o cheiro e se afasta…”
Levantando a voz contra uma certa “pessoa nefasta”, Juliana Linhares realiza também uma obra emblemática da resistência ao bolsonarismo – “Frivião” sendo da mesma vibe que a “Bolsonada” do Francisco El Hombre. Como escreveu a Revista Continente, “como intérprete, Juliana evidencia a herança regional quando levanta fogo em faixas como “Frivião”, que lembra do calor provocado pelo aperto e pelo empurra-empurra da folia. O frevo em questão é um manifesto antibolsonarista e faz parte do time de canções que convidam o ouvinte a extravasar de uma forma que Juliana ainda não tinha explorado com a Pietá, que tem uma proposta mais acústica.”
Frivião – Juliana Linhares e Rafael Barbosa
Eu conheci uma pessoa nefasta
Venenosa até dizer basta
Cascavel de pele que não desgasta
Quem chega perto sente o cheiro e se afasta
O pensamento dessa pessoa nefasta
Como um gás laranja se alastra
Não faz sentido, cruel e feio, mas tá
Fazendo o tiro explodir pela culatra
Diz que é do povo, essa pessoa nefasta
E cheia de nojo mente mais a canastra
Nada de novo, em filme Disney madrasta
E se eu desaprovo, pedrada de entusiasta
Vem me atacar
Que quando eu canto milhões se juntam pra cantar
Vem se assumir
Que eu canto de peito aberto, que é certo, esse mal vai sumir
Vem me abraçar, vem se amar, sacudir, vem dançar
Vem falar, se esfregar, se perder, libertar
Em toda forma de amor há motivo pra gente lutar
O coração na canção grita que assim não dá não
Tradição, mutação, vida e evolução
O frivião que não deixa se aquietar
Os dois álbuns do Pietá e o disco-solo de Ju Linhares constituem juntos um território estético-político de riqueza inesgotável, atravessando os sinistros tempos que vivemos como aquele “cacto vivo, intacto” que ela canta em “Nordeste Ficção”, em diálogo com o livro de Durval, e que traz a alta carga poética que se expressa assim:
Resenha de álbum
Título: Nordeste ficção
Artista: Juliana Linhares
Edição: Edição independente da artista
Cotação: * * * * *
Autor – Mauro Ferreira / G1
♪ “Quem explode é bombinha / Eu quero é cantar pros meus / Deixa que eu mesmo decido / Que rainha sou eu”, avisa Juliana Linhares, marcando posição e território nos versos iniciais de Bombinha, música inédita de Carlos Posada, cantor e compositor sueco que, após período no Recife (PE), se alojou no Rio de Janeiro (RJ), cidade que desde 2010 abriga essa artista de origem potiguar revelada como vocalista da banda carioca Pietá.
Arranjada com guitarras e percussões incandescentes, Bombinha alicia o ouvinte e detona, logo na abertura do disco Nordeste ficção, a poética abrasiva de Juliana Linhares neste primeiro álbum solo, gravado sob direção artística de Marcus Preto – com afiada produção musical de Elísio Freitas – e lançado nesta sexta-feira, 26 de março.
Na capa do álbum, a arte de Ara Teles expõe trechos do livro A invenção do nordeste e outras artes (2009) – escrito por Durval Muniz, historiador paraibano residente em Natal (RN), para desconstruir estereótipos da nação nordestina – sobre foto de Juliana, clicada por Clarice Lissovsky.
O diálogo de Juliana com a prosa do escritor inspirou a construção da letra da música-titulo do disco, Nordeste ficção, parceria da cantora e compositora com Rafael Barbosa, irmão de Juliana. Com arranjo inebriante, a faixa Nordeste ficção propõe outra narrativa sobre a região e evolui em passo eventualmente agalopado, com alternâncias de climas evocativos das bandas de pífanos – sobretudo pelas flautas e pífanos tocados por Carlos Malta – e da aridez do sertão, tão castigado, mas tão resistente quando o cacto mencionado na letra.
Intérprete de canto intenso, de potência amplificada pelo enredo dramático de Meu amor afinal de contas, parceria da artista com Zeca Baleiro previamente apresentada em single editado em 5 de março, Juliana Linhares oferece fartura vocal e musical no banquete de signos servido pela cantora em Nordeste ficção com a assumida intenção (do diretor artístico Marcus Preto) de que o álbum remeta a discos de conterrâneas antecessoras como Amelinha, Cátia de França e Elba Ramalho.
De fato, há ecos da eletricidade de Elba no arretado passo político do frevo Frivião. E tal eco soa até irônico quando se sabe que, nesta outra parceria com o irmão Rafael Barbosa, Juliana faz chamado – incrementado pela agitação dos sopros arranjados por Elísio Freitas – para impedir a quietude popular no reino comandado pela pessoa nefasta de nome omitido na letra.
Por propagar em essência um sonoro “Fora Bolsonaro”, Frivião se afina com a convocação geral feita por Juliana – com a adesão vocal de Letrux – em Aburguesar.
Com letra inédita, Aburguesar é música antiga do baiano Tom Zé, provavelmente composta em 1972, encontrada em fita de rolo em 2014 – ano em que o autor reciclou a letra e lançou a composição no álbum Vira-lata na Via Láctea com o nome de Geração Y – e devidamente inserida na narrativa do álbum Nordeste ficção com a letra original, de impressionante atualidade.
Faixa produzida com toques de baião por Vovô Bebê, nome artístico do carioca Pedro Dias Carneiro, Aburguesar conclama o povo para dar grito nas ruas que possa abafar os gemidos da dor aguçada pela pequenez burguês que entorpece consciências.
Ainda dentro dessa esfera mais explicitamente política, Armadilha – parceria de Juliana com Caio Riscado, diretor de shows da banda Pietá e do projeto Iara ira – jamais cai nos clichês ao levantar a poeira do pensamento reflexivo sobre a falta de perspectiva de futuro. Com sonoridade moura, Armadilha é canção densa, eventualmente climática, conduzida pelo piano de Elísio Freitas.
No espesso encadeamento do álbum Nordeste ficção, Tareco e mariola soa como declaração do orgulho de ser nordestino e, ao mesmo tempo, como manifesto de resistência diante de tantos chavões propagados no sudeste por ideologia etnocentrista que mapeia a nação nordestina como território “regional” na dimensão continental do Brasil.
Composição do pernambucano Petrúcio Amorim que batizou álbum lançado em 1995 pelo cantor paraibano Flávio José, Tareco e mariola já tinha ganhado registros de vozes referenciais como a da cantora Marinês (1935 – 2007) antes de entrar nos roteiros de shows da banda Pietá, surpreendendo Juliana Linhares por soar como música inédita aos ouvidos cariocas.
Além de Tareco e mariola, Juliana regrava o menos conhecido Bolero de Isabel (Jessier Querino, 2004), lançado em disco em gravação de Xangai com Juraildes da Cruz. Na abordagem da composição, o canto quente de Juliana Linhares flui bem na sintaxe da canção nordestina em gravação conduzida pela guitarra de Elísio Freitas (em toque mais suave e minimalista) com a viola caipira de Rodrigo Garcia.
Como a nação nordestina também é governada pela alegria, Juliana Linhares faz a festa da carne e do amor entre mulheres na Lambada da lambida, marota parceria com Chico César, autor da melodia desta composição bafejada pelos sopros e pelo coro das vozes femininas de Angela Castro, Camila Pedrassoli, Juliana Furtado, Priscila Vilela Rafaela Brito e Tica Rodrigues.
Compositor paraibano de produção proficua, Chico César também pôs música na letra de Embrulho, primeira das duas parcerias com Juliana. Na gravação, Embrulho se abre na pisada de baião contemporâneo, mas sem os clichês que envolvem Balanceiro, xote composto pela artista com Khrystal, Moyseis Marques e Sami Tarik.
Com discurso que soa banalizado no confronto com a poética de outras músicas de pegada bem mais assertiva, Balanceiro desanuvia Nordeste ficção sem fazer a narrativa desandar na gravação incrementada com os toques da sanfona de Mestrinho e da zabumba de Júlia Vargas, colega de Juliana no trio Iara Ira. Mesmo que haja uma ou outra música de menor envergadura, o conjunto da obra solo de Juliana Linhares é grandioso.
“Do abraço forte / Do reconfortar / Rainha de tudo que quero / Rainha de tudo que há / E não quero ir para Marte / Quero ir para o Ceará / Não vim aqui me exibir / Eu vim aqui te buscar”, avisa a artista em outros versos da faixa inicial Bombinha.
Aceite o chamado, vá com a cantora e se delicie com a fartura do banquete de signos nordestinos enredados nas 11 músicas do primeiro álbum solo de Juliana Linhares.
Publicado em: 16/03/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia