Que futuro pode ter uma nação amnésica? A questão é pertinente diante da Cinemateca em Chamas, do expurgo de livros na Fundação Palmares ou da transformação em cinzas do Museu Nacional (RJ). Já vamos nos acostumando à expressão “tragédia anunciada” diante de um cortejo infindável de desastres para o nosso direito à memória e à verdade. Como construiríamos um porvir melhor com a matéria-prima de legados incendiados? Como sairíamos do pântano de obscurantismo em que o bolsofascismo nos chafurdou sem o “salto de tigre no passado” de que falava Walter Benjamin?
É este “salto de tigre” que planejamos realizar ao promover o evento do Kinosophia (Grupo de Estudos em Cinema e Filosofia): 40 Anos Sem Glauber Rocha, um mosaico de discussão e prosa. A live vai ao ar no canal d’A Casa de Vidro no Domingo, 22 de Agosto, aniversário de falecimento deste gigante da cultura brasileira.
https://www.youtube.com/watch?v=85s4G_7cYYw
Glauber morreu aos 42, nos estertores da ditadura, em 1981, pouco depois do lançamento daquele que seria seu filme derradeiro, o controverso A Idade da Terra. Sobre a idade de seu ocaso ele costumava dizer, segundo relato do cineasta Mário Carneiro:
– Você sabe que eu vou morrer com 42 anos, porque eu sou uma reencarnação do Castro Alves, que morreu com 24, e eu vou morrer com 42 anos… (In: TENDLER, Silvio. Quatro Baianos Porretas. Garamond/PUC-Rio, p. 105)
Os baianos Glauber e Castro Alves nasceram ambos num dia 14 de Março – o primeiro, em 1939, o segundo em 1847. Mas as coincidências entre seus destinos são muitas além desta, como pontuou Nivaldo Lemos:
“Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.” (Leia mais em Overmundo)
https://youtu.be/aKjAovc7YC4
Por ocasião do sepultamento de Glauber, Darcy Ribeiro prestou suas últimas homenagens lembrando um Glauber de “breve vida, sem pele, com a carne exposta, capaz de gozos… mas mais capaz de dor, da nossa dor”:
“Uma vez, não vou esquecer nunca, Glauber passou uma manhã abraçado comigo e chorando, chorando… chorando convulsivamente… Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava esse país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura! Ele não suportava! (…) Os filmes do Glauber são isso: é um lamento, um grito, um berro! Esta é a herança que fica de Glauber: a herança de sua indignação. Ele foi o mais indignado de nós, indignado com o mundo tal qual é; indignado porque, mais do que nós, Glauber podia ver o mundo que podia ser… Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo louco.” (RIBEIRO, Darcy. In: TENDLER, Labirinto do Brasil, pg. 109 de 4 Baianos Porretas)
Glauber está morto há 40 anos, mas precisamos mais do que nunca haurir indignação em sua obra – e não faltam razões para tal, como provam os eventos de 2021, como a Cinemateca em Chamas: como relatado por matéria do G1: Filha de Glauber Rocha relata luta com secretaria de Cultura para salvar acervo do pai mesmo antes do incêndio na Cinemateca: ‘Até que pegou fogo’. (…) Ao menos 100 caixas estavam no prédio que pegou fogo.”
Neste país desgovernado pelo Bolsofascismo, podemos haurir forças críticas na obra e na vida de Glauber – ele que, em Terra em Transe, providenciou um emblema do tirano, uma figura que prenuncia Jair Bolsonaro: “Porfirio Diaz é o ditador fascista, é o místico embebido de patriotismo, de religião e de má-fé, que baseia toda a sua política na manutenção da tríade Deus – Pátria – Família e não hesita em estreitar aliança com os agentes do imperialismo para satisfazer sua ânsia de poder. Típico representante da oligarquia financeira dos grandes centros urbanos e dotado de astuta eloquência, simboliza o aspecto conservador do poder.” (VALENTINETTI, Claudio M. Glauber – Um Olhar Europeu. Ed. Instituto Lina Bo Bardi, Prefeitura do Rio. Pg. 86)
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Publicado em: 19/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia