Que futuro pode ter uma nação amnésica? A questão é pertinente diante da Cinemateca em Chamas, do expurgo de livros na Fundação Palmares ou da transformação em cinzas do Museu Nacional (RJ). Já vamos nos acostumando à expressão “tragédia anunciada” diante de um cortejo infindável de desastres para o nosso direito à memória e à verdade. Como construiríamos um porvir melhor com a matéria-prima de legados incendiados? Como sairíamos do pântano de obscurantismo em que o bolsofascismo nos chafurdou sem o “salto de tigre no passado” de que falava Walter Benjamin?
É este “salto de tigre” que planejamos realizar ao promover o evento do Kinosophia (Grupo de Estudos em Cinema e Filosofia): 40 Anos Sem Glauber Rocha, um mosaico de discussão e prosa. A live vai ao ar no canal d’A Casa de Vidro no Domingo, 22 de Agosto, aniversário de falecimento deste gigante da cultura brasileira.
Glauber morreu aos 42, nos estertores da ditadura, em 1981, pouco depois do lançamento daquele que seria seu filme derradeiro, o controverso A Idade da Terra. Sobre a idade de seu ocaso ele costumava dizer, segundo relato do cineasta Mário Carneiro:
– Você sabe que eu vou morrer com 42 anos, porque eu sou uma reencarnação do Castro Alves, que morreu com 24, e eu vou morrer com 42 anos… (In: TENDLER, Silvio. Quatro Baianos Porretas. Garamond/PUC-Rio, p. 105)
Os baianos Glauber e Castro Alves nasceram ambos num dia 14 de Março – o primeiro, em 1939, o segundo em 1847. Mas as coincidências entre seus destinos são muitas além desta, como pontuou Nivaldo Lemos:
“Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.” (Leia mais em Overmundo)
Por ocasião do sepultamento de Glauber, Darcy Ribeiro prestou suas últimas homenagens lembrando um Glauber de “breve vida, sem pele, com a carne exposta, capaz de gozos… mas mais capaz de dor, da nossa dor”:
“Uma vez, não vou esquecer nunca, Glauber passou uma manhã abraçado comigo e chorando, chorando… chorando convulsivamente… Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava esse país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura! Ele não suportava! (…) Os filmes do Glauber são isso: é um lamento, um grito, um berro! Esta é a herança que fica de Glauber: a herança de sua indignação. Ele foi o mais indignado de nós, indignado com o mundo tal qual é; indignado porque, mais do que nós, Glauber podia ver o mundo que podia ser… Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo louco.” (RIBEIRO, Darcy. In: TENDLER, Labirinto do Brasil, pg. 109 de 4 Baianos Porretas)
Glauber está morto há 40 anos, mas precisamos mais do que nunca haurir indignação em sua obra – e não faltam razões para tal, como provam os eventos de 2021, como a Cinemateca em Chamas: como relatado por matéria do G1: Filha de Glauber Rocha relata luta com secretaria de Cultura para salvar acervo do pai mesmo antes do incêndio na Cinemateca: ‘Até que pegou fogo’. (…) Ao menos 100 caixas estavam no prédio que pegou fogo.”
Neste país desgovernado pelo Bolsofascismo, podemos haurir forças críticas na obra e na vida de Glauber – ele que, em Terra em Transe, providenciou um emblema do tirano, uma figura que prenuncia Jair Bolsonaro: “Porfirio Diaz é o ditador fascista, é o místico embebido de patriotismo, de religião e de má-fé, que baseia toda a sua política na manutenção da tríade Deus – Pátria – Família e não hesita em estreitar aliança com os agentes do imperialismo para satisfazer sua ânsia de poder. Típico representante da oligarquia financeira dos grandes centros urbanos e dotado de astuta eloquência, simboliza o aspecto conservador do poder.” (VALENTINETTI, Claudio M. Glauber – Um Olhar Europeu. Ed. Instituto Lina Bo Bardi, Prefeitura do Rio. Pg. 86)
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Publicado em: 19/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia