Uma criança acaba de morrer em uma UTI. Diante das lágrimas da mãe, fluindo a partir de uma tristeza que ficamos tentados a chamar de inconsolável, um desconhecido no saguão de hospital lhe diz: “Tente enxergar a beleza colateral desta situação.” Como avaliar este tipo de consolo? É possível diagnosticar nisto um sintoma daquilo que vem sendo chamado de positividade tóxica e que tanto impacta negativamente nossa saúde mental?
No filme dirigido por David Frankel, Collateral Beauty – Beleza Oculta (2016, 1h37min), o protagonista Howard – interpretado por Will Smith – está enfrentando a fossa de um luto prolongado após a morte da filha. Sem ânimo para seguir seus afazeres cotidianos, Howard perde seu tempo construindo intrincadas edificações com dominós, só para depois fazer tudo colapsar com um mísero toque de seu dedo. O famoso efeito dominó serve aqui como tradução visual de uma tese filosófica sobre as pequenas causas capazes de gerar imensos efeitos.
A morte da filha atua como uma dedada-do-destino que faz colapsar o castelo de cartas que Howard havia construído. Ele havia sido outrora um publicitário rico e de sucesso, paparicado por seus subalternos. Um ricaço supostamente muito visionário em sua concepção sobre “as três abstrações que conectam todas as pessoas sobre a face da Terra: o Amor, o Tempo e a Morte”.
Na primeira cena o vemos radiante, no período prévio à sua tragédia pessoal, descrevendo o seu ramo de atuação profissional. Desprovido de qualquer conteúdo crítico que apontasse a criação artificial de falsas necessidades de consumo, conduzindo pessoas ao irracionalismo feroz das Black Fridays, Howard pinta um retrato kitsch da publicidade comercial. O marketing, para ele, serve ao valor da “conexão” humana: trata-se de “iluminar como nossos produtos e serviços podem aprimorar as vidas das pessoas.”
Seu credo de marqueteiro consiste na redução dos comportamentos humanos a três móbiles – o medo da morte, a ânsia de amor e a vontade de possuir mais tempo.
Esta radiância feliz da primeira cena do filme contrasta com a longa bad trip que vem a seguir: Howard desmotivado, pedalando sua bicicleta pela noite de Nova York em estado de desalento, incapaz de achar qualquer graça em seguir vivendo.
Sua filhinha lhe foi tirada, e esta peça a menos em sua vida fez com que toda o castelo de peças de dominó entrasse em colapso. “Way Down We Go”, de fato, como cantará a banda islandesa Kaleo na canção-tema do filme.
Howard, em busca de algum bálsamo, começa a escrever cartas para as entidades universais que tanto o decepcionaram – xinga a Morte por não ter aceito um deal que ele propôs, acusa o Tempo de ser um Cronos impiedoso e devorador, e por fim diz ao Amor um lacônico goodbye.
O roteiro escrito por Allan Loeb (o mesmo de Coisas Que Perdemos Pelo Caminho, de 2007, e O Espaço Entre Nós, de 2017), é engenhoso na invenção de um estratagema para a “salvação” de Howard que consiste numa espécie de “teatro invisível”, para falar na linguagem de Augusto Boal.
O criador do Teatro do Oprimido chamava assim às encenações destinadas a ocorrer em espaço público sem que as pessoas soubessem que estavam diante de um artefato teatral. Ou seja, “teatro invisível” é quando os cidadãos acreditam estar vendo uma cena real, mas na verdade estão diante do trabalho de atores, que por sua vez podem estar sendo guiados de maneira invisível pelo dramaturgo-maestro.
Os colegas de trabalho de Howard (incluindo os personagens encarnados por Kate Winslet e Edward Norton) resolvem pagar uma grana para 3 artistas teatrais para que encarnem a Morte, o Tempo e o Amor, entrando numa interlocução direta com o enlutado. Assim, os atores estarão dialogando com os conteúdos das cartas que Howard dirigiu às “abstrações que conectam todos os humanos”. Até aí, o filme vai muito bem, com um texto instigante e a proposta interessante de uma arte-terapia que rompa com o paradigma reinante na psicanálise, o do monólogo no divã.
O filme irá tematizar uma terapêutica pelo teatro através dos encontros de Howard com as personificações do Tempo (encarnado por um rapaz negro que lhe joga na cara: “eu sou um presente, sou abundante, e você fica me desperdiçando!”), da Morte (na figura de uma velhinha de cabelos brancos interpretada por Helen Mirren) e do Amor (na deslumbrante forma feminina de uma Keira Knightley destinada a ser uma aparição sexy que faça Howard aceitar amar outra vez).
O filme inteiro constrói-se com base numa miríade de expressões do discurso motivacional que circula por aí nos best-sellers da dita “literatura de auto-ajuda”. Apesar de vender-se como ferramenta para que o leitor possa se auto-transformar através de uma self-help, este ramo do mercado editorial fornece uma grande ajuda às polpudas contas bancárias dos cada vez mais ricos autores da área, repleta de muito bem-pagos papagaios dos dogmas da positividade tóxica. Beleza Oculta talvez seja uma das mais emblemáticas expressões da cultura do coaching aplicada ao cinema comercial.
O filme revela a jornada do enlutado Howard na tentativa de se reconciliar com o mundo e indica caminhos para além da teatralidade terapêutica. Ele tenta frequentar um grupo de auxílio onde as pessoas, sentadas em círculo, ouvem-se umas às outras sobre seus dramas, traumas e perdas. Porém não há nem sinal aqui daquele sarcasmo que Clube da Luta, de David Fincher, despejava sobre os personagens de Edward Norton e de Helena Boham Carter, ambos frequentadores assíduos de tais grupos (quando Marla Singer começa a aparecer na reunião dos caras que tem câncer-no-testículo, o personagem de Norton revolta-se contra a turista dos infortúnios alheios que ela manifesta ser).
No caso de Howard, ele ali encontrará a figura que o filme destina a ser sua anja-da-guarda: Madeline (interpretada por Naomie Harris), a mulher compreensiva, impecável escutadeira, paciente companheira, que estará lá para terminar a cura iniciada pela trupe de atores.
É Madeline o veículo para o conceito de beleza colateral (que em português tornou-se oculta), e que estamos tentando problematizar nestas mal traçadas linhas. Madeline tenta convencer Howard que o acontecimento de sua criança ter morrido de câncer não impede que haja nisto e em tudo alguma reconhecível beleza, ainda que o centro do quadro pareça estar tomado por uma feiúra horrorosa digna de uma pintura sobre a guerra como o impressionante Triunfo da Morte de Bruegel.
Este discurso motivacional que convoca a sempre enxergar o lado bonito da feiúra, o lado bom do horror, produz no filme certos eventos milagrosos que o conduzem a cair nos clichês dos crowd pleasers, dissolvendo num happy end o que poderia ter sido um desfecho mais problematizador.
Em primeiro lugar, critico no roteiro o abandono de toda verossimilhança no trato com os personagens de Howard e Madeline: quando o filme nos apresenta a eles, trata-se de desconhecidos; ela pergunta a ele “qual seu nome?”, pede que fale o nome da filha que perdeu etc.
Depois o filme revelará que Howard e Madeline na verdade são pai-e-mãe da criança cuja perda transtornou tão profundamente a vida do publicitário. Eis um plot twist altamente inverossímil pois presume uma amnésia completa que teria acometido Howard diante de sua ex-esposa.
Não acredito que haja qualquer realismo psicológico nesta descrição de uma pessoa que teria entrado num luto tão profundo por sua filha que teria esquecido completamente tudo o que viveu com a mãe da filha perdida, inclusive a própria aparência física da mulher.
Aqui, Hollywood está sacrificando qualquer verossimilhança para construir uma manipulação dos afetos dos espectadores que conduza ao final satisfatório. Em prol do happy end obrigatório, um dogma tão pregnante em Hollywood, sacrifica-se todo realismo, com a pretensão de que o desfecho consolador fará as pessoas saírem do cinema felizes e contentes, recomendando no Twitter que todos corram a comprar os seus ingressos.
O desfecho também parece-me péssimo por outra razão: ao invés de manter a construção anterior daquilo que eu chamei de teatro invisível, que permite tematizar a arte terapia, o roteiro prefere o pior tipo de mistificação possível para um happy end apelativo. Ou seja, ao dissolver as figuras carnais dos atores da trupe em figuras fantasmáticas, angelicais, que teriam agido como interventores de deus para a salvação de um pobre alma desgarrada, o filme chafurda na superstição.
Colapsa a concretude que o filme havia criado, o seu flerte com o Teatro Invisível a Boal – não estamos mais diante de atores utilizando a dramaturgia para efeitos práticos, mas sim diante de anjos interventores que surgiram para restabelecer o equilíbrio rompido pela morte da criança.
O filme foi bastante defenestrado pelos críticos e tem um índice baixíssimo no Tomatômetro (13% a partir de 184 resenhas) e uma nota vermelha no Metacritic (23 pontos em 100), o que acho um tanto exagerado. Assisti a Beleza Colateral com gosto, considerando-o bem escrito e envolvente, com referências interessantes a poemas de Dylan Thomas e Whitman na excelente cena do metrô. Nesta, uma vibe contrária à positividade tóxica manifesta-se com potência no personagem de Howard.
Mas este é um daqueles casos onde, para me expressar de maneira bem rude, o happy end ferrou com o rolê. O fim feliz que nos é imposto de maneira artificiosa conduz ao apaziguamento, a uma solucionática artificial e mistificadora, à dissolução do potencial crítico que o filme construía.
No intuito de conquistar as platéias, o filme encerra-se de maneira apelativa e ingênua – o que não o impedirá, é claro, de arrancar muitos baldes de lágrimas daqueles que não frequentam o cinema ou a Netflix com qualquer intenção de criticidade e que não se importam em ter seus sentimentos manipulados. De todo modo, fica a sensação de que este crowd pleaser tornou-se um critic’s nightmare. E que o conceito interessante de beleza colateral chafurdou na sloganização típica de cheerleaders da positividade tóxica.
O filme acaba sendo um artefato ideológico digno de crítica: trata o mundo da publicidade de maneira kitsch, sem uma gota de questionamento acerca do consumismo e do descartismo, males conexos e ambos catalisados pelo marketing. Exagera no melodrama familiar ao supor um processo de luto tão desastroso que faria Howard perder toda e qualquer memória da sua ex-esposa e mãe de sua filha morta Madeline. E torna-se um prodígio de manipulação de massas ao resolver a contradição central do protagonista, incapaz de continuar com sua vida “normalmente” após o trauma, reconduzindo-o aos braços de um amor salvífico, que está em tudo e é o único porquê.
O filme de Frankel acaba tornando-se ele mesmo uma mercadoria de um sistema que prega: “sorria! sorria!”, propondo a panacéia da beleza colateral através de um pacote artístico que é até suntuoso, mas que por fim tem um nefasto efeito enganador. É como slogan publicitário que a tal da beleza colateral acaba vendendo falsas respostas para uma situação-limite que não comporta soluções simples.
Entre o happy end suspeito de caça-níquel, e a desesperadora cena do metrô em que Howard conversa com a morte na figura de uma velhinha de cabelos brancos que tenta dissuadi-lo de sua depressão, fico com esta última cena, a melhor do filme. É nela que o filme se alça, na minha opinião, ao seu auge artístico ao revelar o abismo entre as “baboseiras intelectuais” – aí incluídas as enxurradas de best sellers de auto-ajuda – e a realidade bem mais selvagem de nossas paixões muitas vezes indomáveis.
Não afirmo aqui que não possa haver uma elaboração do luto bem-sucedida e que reconduza o sujeito, após a depressão e o desânimo, a uma renovada capacidade de amar. Não nego que é possível curar-se da perda e re-aprender a aproveitar o seu tempo de maneira mais produtiva do que destruindo catedrais de dominós que se havia gasto horas construindo.
Mas o filme mente sobre as soluções difíceis para este processo, acabando por se tornar uma defesa careta e kitsch do amor familiar que sobrevive a todas as barreiras, apesar dos pesares, além do mau-gosto de supor milagreiras intervenções angélicas. A tragicidade se perde e ficamos apenas com a sensação que tinha o Joker (o Coringa) de um sorriso forçado, coagido, imposto de fora, assim como o riso enlatado das sitcoms pode servir ao confinamento de nossas vidas nos estreitos limites de uma positividade compulsória que, transformada em dogma, é das coisas mais tóxicas para nossas psiquês e relações.
Prefiro o slogan “do luto à luta” do que esta adocicada e edulcorada apologia da colateralidade de uma beleza que somos convocados a enxergar em tudo, o que nos impede de utilizar um sagrado descontentamento indignado como combustível para a mudança concreta de um real muitas vezes composto de ingredientes feios, sórdidos e injustos que não devem ser recalcados com a ótica ilusionista da beleza colateral. Em suma, quem prega que enxerguemos a beleza em tudo caminha perigosamente próximo dos domínios devastadores da positividade tóxica que, apesar das aparências, mais no afasta da autêntica felicidade do que nos auxilia a abraçá-la.
Publicado em: 26/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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