GUERRA DE ALGODÃO (2018, 83 min, disponível na Netflix, baixar o torrent via Makingoff), dirigido com primor por Marilia Hughes e Cláudio Marques, traz como protagonista a atriz e cantora Dora Goritzki, nascida em 2002 e responsável por uma versão magistral de “Mistério do Planeta” dos Novos Baianos em uma das melhores cenas do filme.
Criada na Alemanha por sua mãe, Dora chega em Salvador para um período de turbulenta convivência com sua avó (interpretada por Taia Perez). Sentindo-se como uma alienígena no contexto baiano, Dora só pensa em voltar para terras germânicas – o que se agrava pelo fato prosaico de que a moça não suporta a mesma insossa sopa-de-vó como janta de todas as noites.
Encontrando-se com uma editora de livros sobre a história das mulheres notáveis do teatro e do cinema no Brasil, Dora embarca num projeto de biografia daquela mulher quase-estranha com quem está tentando conviver. E o filme vai desvelando os mistérios da avó que no passado confrontou tabus enquanto atriz de filmes que estavam à frente de sua época, ao mesmo tempo que faz a crônica da difícil tentativa de adaptação da adolescente a um novo contexto cultural.
Frequentando rodas de capoeira, em que é zoada pela sua brancura ariana e chamada de “gringa”, a moça acaba se revelando uma exímia violonista e cantora que honra a tradição que vincula João Gilberto aos Novos Baianos. Mas não escapa de vivenciar os dissabores de ser abordada de maneira abusiva pelo garoto que tenta roubar-lhe um beijo e, dada a recusa de Dora, empurra-a na lagoa. Ela depois dirá: “Ele deveria estar preso”, ao que a garota negra lhe responde: “Se fosse assim, não ia sobrar quase nenhum homem solto nesta cidade.”
Como bem destacou Bruno Tavares, a avó é descrita como alguém que no passado anterior ao nascimento de Dora “foi um verdadeiro ícone feminista, que causou uma revolução na sociedade soteropolitana de sua época ao pregar a liberdade do corpo da mulher.” A trajetória de Dora em busca de decifrar o passado das mulheres de sua família, inclusive o tenso vínculo entre sua mãe e sua avó, serve também como jornada de empoderamento feminino simultâneo a uma descoberta da brasilidade que é inseparável de uma “descolonização cultural”:
“A produção também trabalha com delicadeza a questão racial. Ao longo do filme senti um estranhamento por ver uma maioria de personagens brancos em uma história que se passa em Salvador. Contudo, existe uma explicação. Enquanto vive em um mundo de privilégios brancos, Dora deseja apenas voltar para casa. Seu sentimento muda quando ela passa alguns dias na casa de sua amiga, onde é acolhida pela cultura afro e participa de encontros musicais e religiosos. Esse é o ponto de virada decisivo na história de Dora, pois é a partir disso que ela muda sua visão sobre o país.” (TAVARES, Bruno)
Alguns críticos têm realizado paralelos entre “Guerra de Algodão” e o “Deslembro” de Flávia Castro: na opinião de Carmelo e Carbone, “Guerra de Algodão” pecaria por uma certa despolitização da protagonista (considerada individualista, sem empatia, um tanto “rasa”), quanto “Deslembro” teria méritos artísticos maiores por seu mergulho nos porões da ditadura militar e os traumas familiares que gerou:
“Enquanto o longa de Flávia Castro usava o passado não apenas para apontar o presente, como para solucioná-lo, o filme de Marília e Claudio é um bicho originário do egoísmo do hoje, que precisa ser compreendido de fora para dentro para gerar a autoanálise tão em falta atualmente. A neta demora a perceber o que o espectador absorve rápido: ela é descendente de Maria, está impresso em seu DNA.” (CARBONE, F.)
“A mãe, em ambos os casos, está fisicamente ausente. Uma diferença essencial separa os dois, no entanto: enquanto Joana (Jeanne Boudier) travava contato com a ditadura militar, Dora (Dora Goritzki) descobre apenas a si mesma. Sua revolta contra o novo lar faz parte de uma rebeldia juvenil sem conotação política ou representação social mais ampla. (…) [Ainda assim] O projeto ‘Guerra de Algodão’ é muito bem-intencionado ao incluir debates sobre questões raciais e de classe social, além de abordar o complexo de vira-lata dos segmentos privilegiados em relação à cultura nacional.” (CARMELO)
Ainda que eu concorde com o juízo de que “Deslembro” é um melhor filme que “Guerra de Algodão”, este último merece ser assistido e debatido pela representação realista de um abismo inter-geracional, pela crônica de um traslado cultural difícil e insólito (da Alemanha a Salvador), mas também por ter plasmado algo de muito autêntico sobre a adolescência: a capacidade de auto-transformação, mais intacta nesta fase da vida do que se tornará depois quando o caráter se encouraça e as mudanças se tornam mais difíceis.
Dora está numa jornada para devir-brasileira e para deixar-se modificar por um feminismo de outra época que ela descobrirá ser necessário também para a sua própria época, onde assediadores, discursos de violência e episódios infindáveis de incompreensão tornam a “guerra entre os sexos” algo bem menos algodoado do que seria de se desejar.
Disponível na Netflix, a obra “venceu o prêmio de Melhor Filme no Santiago Indie Film Awards e circulou por festivais importantes mundo afora, como 18º Montreal World Film Festival (Montreal, 2018), LA Film Festival (Los Angeles, 2018), 43º Atlanta Film Festival (Atlanta, 2019) e 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (São Paulo, 2019), entre outros. ‘Guerra de Algodão’ é uma produção da Coisa de Cinema com distribuição da Vitrine Filmes.” (Fonte)
Em A Casa de Vidro, já analisamos e criticamos de maneira pormenorizada a obra dos mesmos cineastas “Depois da Chuva”: no Brasil de 1984, filme retrata o ativismo juvenil, a produção cultural subversiva e o amargor das ilusões perdidas.
Publicado em: 11/07/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia