Livraria A Casa de Vidro apresenta:
Poemas, de Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975) – Ed. Cosac Naify, 2016 capa dura, 320 pgs
Intelectual controvertido e ousado, além de artista de alto impacto público, Pier Paolo Pasolini ficou conhecido sobretudo como cineasta, autor de filmes como “Teorema”, “O Evangelho Segundo Mateus”, “Gaviões e Passarinhos”, “Accattone – Desajuste Social” (confira sua filmografia), “Trilogia da Vida” (Decameron, Canterbury Tales, 1001 Noites), dentre outros. Pasolini foi também um dos mais notáveis poetas italianos do século XX, celebrado por seu camarada Alberto Moravia, cultuado e defenestrado em altos graus por admiradores e detratores, como pede uma obra que não se esquivou de polêmicas. Eue carrega a marca de uma expressão idiossincrática e singularíssima, nascida de um eu lírico que pulsa intensamente no entrecruzamento entre vida pessoal e História.
Este livro revela pela primeira vez ao público brasileiro a dimensão do poeta Pasolini através de uma coletânea de seus escritos poéticos, em edição bilíngue, organizada por Alfonso Bernardinelli e Maurício Santana Dias, com posfácio de Maria Betânia Amoroso. Nestes versos de denso lirismo e dotados de doses de gentileza e de fúria, de rebeldia e de doçura, Pasolini revela a si mesmo e à sua época. Debate com o pensamento filosófico e político de Antonio Gramsci (um de seus livros de versos mais célebres, “As Cinzas de Gramsci”, é um diálogo de cemitério com o fantasma do líder comunista e pensador marxista, encerrado no cárcere pelo regime fascista de Mussolini). Tematiza a luta anti-fascista e anti-burguesa. Lida com o conflito de gerações, ponderando sobre os laços e oposições entre pais e filhos. Põe em questão a sexualidade (inclusive a transviada), a religião instituída (causticamente endereçando poemas ao papa Pio XII), os dilemas do PCI (Partido Comunista Italiano), dentre muitos outros temas.
Assassinado em 1975, com pouco mais de 50 anos, Pasolini legou-nos uma rica obra artística e intelectual, provocativa e perturbadora, que esta publicação de poemas, pela finada Cosac e Naify, permite aos brasileiros sondar mais a fundo. A obra cinematográfica de Pasolini – que tanto impacto gerou sobre o cinema autoral brasileiro, em especial inspirando Glauber Rocha, Paulo César Sarraceni, Gustavo Dahl e Rogério Sganzerla – também ganha a oportunidade de ser vista e revista pelo viés, tão fecundo, da poética pasoliniana.
A UM PAPA
Poucos dias antes que você morresse, a morte
pusera os olhos em um outro de sua idade:
aos vinte, você era estudante, ele, trabalhador braçal,
você, nobre e rico, ele, um rapazote miserável e plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre suas cabeças
a velha Roma que tanto se renovava.
Vi seus despojos, pobre Zucchetto.
Zanzava à noite embriagado, em torno dos Mercados,
quando um bonde que vinha de San Paolo o atropelou
e arrastou um bom tanto pelos trilhos entre os plátanos:
por algumas horas ficou ali, debaixo das rodas:
pouca gente se aglomerou ao redor para vê-lo,
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem para que você exista,
um velho policial desbocado e troglodita,
berrava a quem se encostava demais: “Fora, cambada!”.
Depois veio o automóvel de um hospital para levá-lo:
o povo foi embora, aqui e ali ficaram uns farrapos,
e a dona de um bar noturno pouco adiante,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto fora arrastado por um bonde, se acabara.
Poucos dias depois você acabava: Zucchetto fazia parte
de seu grande rebanho romano e humano,
um pobre bebum, sem família e sem teto,
que vagava pela noite, vivendo quem sabe como.
Você não sabia nada sobre ele: e não sabia nada
sobre outros milhares de cristos como ele.
Talvez eu seja cruel ao me perguntar por que razão
gente como Zucchetto fosse indigna de seu amor.
Há lugares infames onde mães e crianças
vivem numa poeira antiga, numa lama de outras eras.
Não muito longe de onde você viveu,
com vista para a bela cúpula de São Pedro,
há um desses lugares, o Gelsomino…
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e embaixo,
entre um canal e uma fila de prédios novos,
um amontoado de construções miseráveis, não casas, mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto seu, uma palavra,
para que esses seus filhos tivessem uma casa:
você não fez um gesto, não disse uma palavra.
Não se pedia a você que perdoasse Marx! Uma onda
imensa que se refrange há milênios de vida
o separava dele, da religião dele:
mas em sua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o seu pontificado,
diante de seus olhos, viveram em currais e pocilgas.
Você sabia de tudo: pecar não significa fazer o mal;
não fazer o bem, isto é que é pecar.
Quanto bem você podia ter feito! E não fez:
nunca houve um pecador maior que você.
Pochi giorni prima che tu morissi, la morte
aveva messo gli occhi su un tuo coetaneo:
a vent’anni, tu eri studente, lui manovale,
tu nobile, ricco, lui un ragazzaccio plebeo:
ma gli stessi giorni hanno dorato su voi
la vecchia Roma che stava tornando così nuova.
Ho veduto le sue spoglie, povero Zucchetto.
Girava di notte ubriaco intorno ai Mercati,
e un tram che veniva da San Paolo, l’ha travolto
e trascinato un pezzo pei binari tra i platani:
per qualche ora restò lì, sotto le ruote:
un po’ di gente si radunò intorno a guardarlo,
in silenzio: era tardi, c’erano pochi passanti.
Uno degli uomini che esistono perché esisti tu,
un vecchio poliziotto sbracato come un guappo,
a chi s’accostava troppo gridava: “Fuori dai coglioni!”.
Poi venne l’automobile d’un ospedale a caricarlo:
la gente se ne andò, restò qualche brandello qua e là,
e la padrona di un bar notturno, più avanti,
che lo conosceva, disse a un nuovo venuto
che Zucchetto era andato sotto un tram, era finito.
Pochi giorni dopo finivi tu: Zucchetto era uno
della tua grande greggia romana ed umana,
un povero ubriacone, senza famiglia e senza letto,
che girava di notte, vivendo chissà come.
Tu non ne sapevi niente: come non sapevi niente
di altri mille e mille cristi come lui.
Forse io sono feroce a chiedermi per che ragione
la gente come Zucchetto fosse indegna del tuo amore.
Ci sono posti infami, dove madri e bambini
vivono in una polvere antica, in un fango d’altre epoche.
Proprio non lontano da dove tu sei vissuto,
in vista della bella cupola di San Pietro,
c’è uno di questi posti, il Gelsomino…
Un monte tagliato a metà da una cava, e sotto,
tra una marana e una fila di nuovi palazzi,
un mucchio di misere costruzioni, non case ma porcili.
Bastava soltanto un tuo gesto, una tua parola,
perché quei tuoi figli avessero una casa:
tu non hai fatto un gesto, non hai detto una parola.
Non ti si chiedeva di perdonare Marx! Un’onda
immensa che si rifrange da millenni di vita
ti separava da lui, dalla sua religione:
ma nella tua religione non si parla di pietà?
Migliaia di uomini sotto il tuo pontificato,
davanti ai tuoi occhi, son vissuti in stabbi e porcili.
Lo sapevi, peccare non significa fare il male:
non fare il bene, questo significa peccare.
Quanto bene tu potevi fare! E non l’hai fatto:
non c’è stato un peccatore più grande di te.
(Pier Paolo Pasolini, La religione del mio tempo.)
* * * * *
Sexo, consolo da miséria!
A prostituta é rainha, seu trono
é uma ruína, sua terra, um pedaço
de campo emporcalhado, seu cetro,
uma bolsinha brilhosa e vermelha;
e late na noite, imunda e feroz,
como uma mãe antiga; e defende
suas posses e sua existência.
Os gigolôs, em torno, aos bandos,
inchados e abatidos, de bigodes
brindisinos ou eslavos, são
chefetes, comandantes: combinam
no escuro seus negócios de cem liras,
acenando em silêncio, trocando
palavras de ordem: o mundo, excluído, cala
em torno deles, que dele se excluíram,
silenciosas carniças de rapina.
Mas nos refugos do mundo nasce
um novo mundo: nascem novas leis
onde não há mais lei, nas uma nova
honra onde a honra é só desonra…
Nascem potências e nobrezas,
ferozes, nos montes de cortiços,
nos locais mais remotos onde pensas
que a cidade termina, mas no entanto
recomeça, inimiga, recomeça
milhares de vezes, com suas pontes
e labirintos, canteiros e aterros,
por trás de borrascas de arranha-céus
que cobrem horizontes infindáveis.
Na facilidade do amor
o miserável se sente homem:
funda sua confiança na vida, até
desprezar quem leva outra vida.
Os filhos se arremessam na aventura
seguros de pertencerem a um mundo
que deles, de seu sexo, tem horror.
Sua piedade é serem impiedosos,
sua força está toda na leveza,
sua esperança, em não ter esperança.
(Pg. 127 – 128, de “A Religião do meu Tempo”)
* * * * *
Leia também as matérias de Davi Pessoa n’O Globo e Lúcio Carvalho no Amálgama.
Publicado em: 24/06/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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