Um elemento fascinante na trajetória de Bong Joon-Ho é o quanto de sucesso ele tem conseguido através de filmes que tocam temáticas que não são exatamente crowd pleasers.
Lidando com temas que muitas vezes são fobia para as massas — aquecimento global conduzindo a cenário apocalíptico em Snowpiecer, carnismo e especismo em contexto de engenharia genética em Okja, luta de classes e precarização laboral em Parasita… – o cineasta sul-coreano uma proeza que conectados a poucos: como os Beatles, ele tem conseguido somar a consagração da crítica (que tem quase consenso em celebrar sua obra) a uma consagração de massas (ele não é apenas um queridinho de cinéfilos, mas um verdadeiro fenômeno social).
A ponto de ter se tornado, por exemplo, vencedor do Oscar de Melhor Diretor, Melhor Roteirista (original screenplay) e Melhor Filme, em um feito inédito para uma obra não falada em língua inglesa. Como se fosse proeza pouca, em 2021 foi escolhido para presidir o júri do Festival de Cannes, onde já havia se consagrado com a Palma de Ouro concedida a Parasita.
Em 2006, Bong realmente apareceu no radar com o megahit que cravou nas bilheterias a maior vendagem de ingressos da história da Coréia do Sul: O Hospedeiro, à época, teve 16 milhões de tickets vendidos equivalem a um terço da população total do país. Tudo isto torna um retorno a seu primeiro longa-metragem um exercício fascinante também pelo interesse de descobrir o que existia ali em estado de semente, e que depois terminou de desabrochar na obra subsequente.
Sabendo de sua estatura artística imponente na atualidade, em que Bong Joon-Ho goza de imenso prestígio internacional e já consolidou-se como um dos gênios da 7ª Arte no séc. 21, vale a pena retroceder no tempo para apreciar seus primeiros passos no mundo do cinema, sobretudo seu longa de estréia, o instigante Cães Que Ladram Não Mordem (Barking Dogs Never Bite) [fazer download do torrent em PirateBay], de 2000. É um filme que já revela toda a maestria cinemática de um diretor que domina a arte narrativa audiovisual com muita segurança, mas que no fundo está interessado em utilizar-se de gêneros típicos do “cinema de entretenimento” para colocar-nos em um labirinto moral e solicitar nosso juízo reflexivo diante de situações problemáticas.
É muito interessante retroceder na filmografia de Bong, de Parasita para trás, para perceber que seu debut já prenunciava muito do que estava porvir: o interesse pelo retrato dos oprimidos, mas sem desenhar sobre eles nenhuma auréola de santidade, pois a opressão sobre a terra é multiforme e não faltam casos de oprimidos oprimindo outros oprimidos, ao invés de se enxergarem como classe que deve se fazer solidária para lutar em concerto contra os opressores da elite. Seu primeiro filme retrata, por exemplo, uma espécie de mendigo que é tão pobre que não lhe resta muita opção senão comer carne de cachorro.
O filme prenuncia muitos dos temas de Okja, que terá como co-protagonistas alguns ativistas do Animal Liberation Front, ao colocar no centro do foco a relação entre os animais humanos e os outros animais. No caso de Okja, no centro do foco está a amizade da criança com o superporco criado a partir da engenharia genética induzida por mega-corporações carnistas. O amor da criança e do superporco é um vínculo tão forte que leva a protagonista mirim numa jornada de maturação que a aproximará do movimento ambientalista que se diz anti-especista e luta em prol da Libertação Animal (uma causa sobre a qual o filósofo australiano Peter Singer escreveu uma boa obra-síntese).
Não se costuma ver no cinema enredos que tematizem a ética inter-específica, ou seja, a conduta humana diante de outras espécies – e é justamente esta interspecies ethics sobre a qual Cynthia Willet escreve magistralmente que está no âmago do filme: Bong cria um drama centrado em cães, faz seus protagonistas terem seus confrontos e alianças tendo os quadrúpedes como presença recorrente, colocando os afetos do espectador numa trilha muito interessante: ele quer que questionemos se é certo ou errado aquilo que humanos estão fazendo com cães, mas como um passo para uma reflexão mais ampla sobre o abismo artificial, culturalmente construído, que sustenta o especismo e o carnismo enquanto duas formas de opressão umbilicalmente conectadas.
Em uma cena-chave, muito memorável, vemos a personagem que encarna os ímpetos Animal Liberation Frontianos do filme (ainda que ela seja oficialmente uma ativista do mesmo) em um topo de prédio, a observar através de um binóculo algo que não podemos evitar sentir como um crime, ainda que a vítima não seja humana mas sim um cão.
Com maestria Hitchkokiana, o Bong nos mostra o olhar dessa garota através do binóculo através de trepidações que nos fazem sentir o quão trêmula ela está diante daquilo que de repente se percebe testemunhando. É como Janela Indiscreta numa vibe de empatia voyeurística que transcende o cercadinho do humano para abarcar o âmbito da animalidade enquanto passível de direitos – os bichos, afinal, também tem seus interesses e direitos a serem defendidos contra a hýbris especista dos humanos.
Esta câmera subjetiva cheia de tremeliques precede o plano em que o binóculo cai no abismo ao mesmo tempo que o cão é largado pelo “assassino” para também cair no abismo, puxado pela força da gravidade que o destroçará contra o solo, matando-o. A personagem sofre então uma transformação súbita, irrompe de dentro dela uma guerreira: ela corre, possuída pela indignação, para buscar um confronto contra o criminoso. Ela sente que aquilo que foi feito contra o cão é um crime.
Percebo que Bong, assim como Kieslowski, Wim Wenders, Lars Von Trier, tem um pendor pela obra que instiga uma reflexão ética. Em Barking Dogs Never Bite, há este elemento fortemente presente, sobretudo quando começamos a pensar no “destino” daquele personagem protagonista que se mostra, no filme, como um “assassino de cãezinhos”. Na cena em que ele é confrontado pela garota que o testemunhou a soltar um cachorro do topo de um prédio para a morte certa, Bong faz explodir na tela uma cena de ação das mais agitadas, com uma trilha sonora de free jazz explosiva, e concede a este “assassino” uma vantagem desleal que aparece subitamente na figura de uma porta que se abre na cara da moçoila indignada que tenta confrontá-lo e que o perseguia numa correria meio polícia-e-bandido. A porta em sua cara é também o filme batendo a porta na cara do espectador sedento por happy end e pelo triunfo dos bons.
Esta cena é absolutamente brilhante na sua manipulação dos afetos do público: constrói uma heróina edificante, só para lançar ao chão nossas altas expectativas quando ela quebra o nariz e perde a batalha. Irônico ao extremo, o filme mostra a vida como um grande balde de frustrações das expectativas de heroísmo e consagração que a mocinha nutre. Em outra cena chave, ela encontra um cachorrinho que está prestes a ser devorado pelo mendigo faminto. Ela, é claro, lança-se à ação, como costuma fazer, sendo uma pessoa dada à intervenção concreta no real e não a apenas colar cartazes de CÃO DESAPARECIDO por aí.
Transfigurando o realismo em outra cena extraordinária, Bong transforma este seu filme, que se passa em contrastes entre os topos de prédio e os subterrâneos, em palco espetacular para questionar o heroísmo da protagonista que tinha quebrado o nariz contra a porta ao tentar confrontar o assassino de animais. Bong projeta a mentalidade fantasista da moça na tela e povoa os topos de prédio ao redor com uma platéa de cheerleaders que está torcendo por ela. Em um momento anterior do filme, a mesma personagem havia se fascinado, numa reportagem de TV, pela atitude de uma moça que havia reagido a um assaltante e que depois havia sido congratulada pelo prefeito.
Nesta breve mas intensa cena de seu primeiro filme já está sintetizada a genialidade de Bong, já plenamente desabrochada, anunciando o que estaria por vir em sua filmografia. A cena é altamente imaginativa, plasmando na tela algo surreal, mostrando uma moça em pleno delírio de “glória”, agindo no mundo motivada pelo sonho de um dia estar na TV sendo celebrada como heroína. O procedimento fílmico deste plano evoca o que Lars Von Trier fez em Dançando no Escuro, quando filmou o mundo subjetivo da Selma encarnada por Björk.
Também a personagem de Bong pode ser lida como dotada de muitas afinidades com aquelas mulheres de Coração de Ouro da trilogia de Trier (completada por Ondas do Destino e Os Idiotas). A heroína imaginária de Bong será mostrada, no filme, como um coração de ouro que só se fode neste mundo. Ela é a manifestação de uma força moral que é tripudiada e permanece anônima em nossa sociedade gerida por poderes patriarcais, antropo e androcêntricos, culpados de um especismo e de um holocausto animal banalizados. Está tudo normal – pelo menos é o que diz a ideologia que traveste o sistema carnista em algo “natural e salutar”, quando não passa de um artifício mortífero, fruto de uma cultura moribunda.
O dilema moral que se coloca para a moça se desenha com maior nitidez numa cena em que Bong constrói uma espécie de “espelho” daquela corrida-de-confronto ao som de free jazz a que me referi há poucos parágrafos. De novo, os dois estão correndo, ela correndo atrás dele. Mas neste ínterim, ela – Coração de Ouro demasiado fantasioso, amiguinha número um dos bichos – acabou caindo numa ilusão. Ela não sabe que aquele cara horrendo, matador de cachorros, que ela testemunhou pelo binóculo e tentou confrontar, e aquele outro cara bacana, que cola cartazes pelo bairro com o semblante entristecido pois seu pet está desaparecido, são na verdade o mesmo cara. Um cara que odeia cachorros, e que já matou alguns.
Este matador de cães se tornará um professor de psicologia, especializado em behaviorismo, mas o rumo para seu sucesso acadêmico é perpassado por vias bastante escusas: o filme põe em foco o suborno que ele realiza, em conluio com a esposa, do reitor da universidade. Eis um cara que, sob o risco de ficar preso nas garras do precariado, com o pavor de virar um mendigo tão pobre que teria que comer a carne de cães roubados da vizinhança ou caçados na rua, prefere “subir na vida” através de fins nada elogiáveis. O suborno é seu tíquete para a ascensão social, e sua esposa vai lhe arranjar a grana, mas desde que ele se torne menos rabugento e menos violento com os pets.
O cara que tem a ascensão social é justamente o “criminoso inter-específico”, que mata cães e suborna reitores. E o filme nos mostra aquela empatia dourada da moça – encarnação do que chamo aqui de ética inter-específica que dá base a motivação afetiva para ações de caráter “Libertação Animal” (quando um animal humano luta pela libertação de outros animais que estão sendo oprimidos por humanos infectados pelas ideologias especistas-carnistas) – que não recebe sua devida recompensa. O Coração Dourado que se ferra e permanece estancado no anonimado, desprovido de glória, quando não lançado ao martírio, evoca este vínculo que estou sugerindo entre Bong em sua estréia e a trilogia Trieriana.
A “heroína” do filme – eis sua ironia no âmago – não é reconhecida como heroína por ninguém, não aparece na TV, não ganha nenhuma glória, não tem ascensão social alguma. Na verdade ganha uma cicatriz no nariz, um trauma por ter testemunhado um “assassinato de cachorro”, e fica “enriquecida”, para falar metaforicamente, apenas de uma série de ilusões perdidas sobre os outros animais humanos, que se mostram tão capazes de crueldade, dissimulação e presunções de importância que oprimem a outros seres vivos como se a isto estivessem autorizados por decreto de um Criador que os tivesse feito à sua imagem e semelhança (sim, os especistas imaginam deus como um homem, uma espécie de pintudo dos Céus, gerente da falocracia do Olimpo, do alto de seu domínio recomendando aos humanos que dominem o “resto” da Natureza).
Nisto, Bong e Von Trier aproximam-se: na cáustica ironia que derramam sobre a má sorte dos “corações de ouro” e sobre a dúbia e ambígua “boa” sorte dos canalhas que sobem na vida, gozando de prestígio e luxo apesar de não passarem de parasitas sociais, frequentemente viciosos , que estão “no topo” não por virtudes ou merecimentos autênticos, mas justamente pois tripudiaram e pisotearam a justiça. Vencedores e perdedores, assim, revelam-se como posições que não podemos nem devemos observar sem uma boa dose de ironia – ou mesmo de sarcasmo cáustico. É como se Bong dissesse: às vezes é melhor estar entre os derrotados, entre os anônimos que conservaram sua empatia, do que ser um vencedor que está “com a moral toda enterrada na lama” por ter se reduzido a ser cúmplice dos métodos daqueles lucradores abjetos, que se aproveitam da máquina mortífera do capitalismo patriarcal-racista-especista, tendo em vista uma ascensão social em que pisam sobre crânios de cães e concidadãos.
“Por isso não adianta estar
No mais alto degrau da fama
Com a moral toda enterrada na lama…”
“Lama”, canção de Mauro Duarte,
célebre na voz de Clara Nunes
KINOSOPHIA apresenta debate sobre os filmes “O Hospedeiro” e “Parasita” de Bong Joon-Ho. Data: 04/Junho – 15h às 17h. Expositores: Eduardo Carli e Namie Yoshika. Mediadora: Profa. Carla Milani Damião. Saiba mais: www.acasadevidro.com/kinosophia
Transmissão ao vivo no Canal do YouTube: A Casa de Vidro Ponto de Cultura Participe de nosso grupo público no Facebook: https://www.facebook.com/groups/kinosophia
Publicado em: 04/06/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia