A idealização do “amor de mãe” é uma força cultural poderosa, uma construção por quase todos tida como sagrada. Colocar em questão o ideal do amor materno como algo angelical e perfeito significa convocar a furibunda crítica do esquadrão de defesa da família tradicional e suas maravilhas infindas. Ainda que sua força tenha sido chaqualhada pelo vendaval crítico trazido pela obra de Sigmund Freud (com sua proposta do Complexo de Édipo e de uma infância poliformamente perversa), de D. H. Lawrence (sobretudo Sons and Lovers) ou de Elisabeth Badinter, para citar apenas três autores que ousaram confrontar tabus e realizar questionamentos penetrantes, persevera uma visão de que o instinto materno é infalível e que o amor de mãe nunca poderia estar errado.
O amor de mãe ainda vale como emblema do amor no seu apogeu insuperável, conectando mãe e filho com aquela visceralidade que houve entre os dois organismos conectados in utero pelo cordão umbilical. Ainda que este seja rompido após o parto, invisíveis cordões parecem manter atadas as criaturas que estiveram por 9 meses em tão íntima simbiose. Transposto para o plano psíquico, este laço visceral intra-uterino é frequentemente descrito como algo que segue vigente na vida extra-uterina como vínculo de amor inextirpável. Até mesmo os anarquistas gostam de brincar: “somos contra toda autoridade, exceto a de minha mamãe.”
Mas é o avesso deste ideal o que interessa ao cineasta Bong Joon-Ho no impressionante filme que escreveu e dirigiu em 2009 (conseguindo a proeza de dar sequência com maestria a sua filmografia depois do espetacular sucesso de O Hospedeiro). À primeira vista, Mãe pode parecer apenas mais um thriller de mistério em que a protagonista busca desvendar um assassinato. Feito uma Miss Marple da Coréia, esta mãe (interpretada pela Kim Hye-ja), uma atriz icônica da maternidade na Coréia do Sul) se faz a detetive incansável de um murder mystery. Boa parte da película mostra a mãe tentando revelar que seu querido filho Do-Jun, que claramente têm dificuldades cognitivas (para não dizer “deficiências mentais”), e que na crença materna jamais poderia ter sido o autor do homicídio perpetrado contra uma jovem estudante.
Por isto o subtítulo da obra em português se chama A Busca Pela Verdade – a mãe está convicta de que o filho está sendo caluniado, que é mentira que ele seja um assassino. Porém, o título em português é misleading, considerando que esta mãe não deseja a verdade, mas sim que a sociedade reconheça a inocência de seu rebento.
O roteiro de Bong, tão habilmente construído, vai revelando uma mãe que toma como pressuposto, quase como dogma, que seu filho seria incapaz de ter cometido um assassinato. Quando o filho cai nas garras da justiça e é preso, a mãe se moverá no mundo com a obsessão de alguém cuja motivação vital principal tornou-se consertar o erro dos policiais. Ela presume, por boa parte do filme, que há um erro grotesco, que seu filho jamais deveria ter sido algemado, enfiado numa viatura e levado para a cadeia. Ainda que o enredo seja pródigo em exemplos do quanto este filho não é nada angelical e pode sim tornar-se extremamente violento, em especial quando alguém o ofende de retardado…
A mãe chega a ir ao enterro da vítima do assassinato para garantir que o filho é inocente (e acaba levando uns sopapos das mulheres enlutadas). Durante o episódio em que a polícia obriga o acusado a re-encenar o crime diante de uma platéia comunitária, num estranho espetáculo de re-enactment, a mãe está lá distribuindo panfletos para tentar convencer a opinião pública de que seu filho está sendo injustiçado.
O filme explora uma complexa dinâmica psicológica e emocional em que mãe e filho vão se enredando numa cumplicidade cada vez mais sinistra – e que chega a certos paroxismos em que o artista Bong Joon-Ho aproxima-se da tragédia grega, em especial da Medéia de Eurípides. Nesta obra, para vingar-se de seu marido traidor Jasão, Medéia decide assassinar os filhos que teve com o esposo, num enredo que se tornou um emblema do que seria uma perversão da natural bem-querença que a mãe nutre por sua cria (no cinema, a peça foi plasmada com potência por Lars Von Trier em 1988).
Em uma cena na prisão, a mãe descobre horrorizada que o filho lembrou-se de algo no passado distante de ambos: o dia em que a mãe tentou envenená-lo com inseticida. Ela confessa ao filho que seu plano era, depois de matá-lo, suicidar-se. Esta cena, de alta carga emocional, é um dos índices da atitude dessacralizadora de Bong Joon-Ho, que não está tentando desenhar auréolas de santidade sobre as cabeças de mãe e filho. A cena sugere ainda que o atraso mental, as travas cognitivas, o “retardo” do rebento possam não se dever a um problema de nascença, de natureza genética, mas podem ser efeito deste trauma. Sobre isto, o filme deixa pairar um denso mistério que recobre os segredos familiares mais inconfessáveis…
Conforme a narrativa progride, a mãe – que atua como acupunturista clandestina – vai tentando servir como uma espécie de terapeuta da memória avariada de sua cria. Ela recomenda ao filho que aplique com os dedos certas pressões sobre seu crânio, o que faria com que ele vencesse as muitas amnésias de que é vítima. Com esta técnica de “acupressão”, lembranças recalcadas vão vindo à tona, num retorno do reprimido que vai abrindo cada vez mais o abismo, na mente da mãe, entre o filho suposto (idealizado) e o filho real (detrás das grades).
Um interessante subplot aproxima o filme das temáticas tratadas pelo seriado Black Mirror: em suas investigações, a mãe-detetiva acaba buscando saber mais sobre a vítima do assassinato. Mas esta Miss Marple não vive na época de Agatha Christie, mas sim num mundo repleto de celulares e fotografias digitais compartilhadas em redes sociais. A mãe descobre que a garota assassinada, que levava vida promíscua e era constantemente acossada por jovens tarados querendo uma transa eventual, tinha em seu celular as fotos de todos os garotos com quem já trepara e que o número deles “ultrapassava uns dois times de futebol”.
O filme não é nada lisonjeiro com os machos, mostrando muitos dos rapazes adolescentes como semelhantes a cães no cio que correm loucamente atrás de um rabo-de-saia e são capazes de várias violências para satisfazer seu Eros primal. A mãe, que manteve o filho Do-Jun sob suas asas superprotetoras, de inúmeras maneiras impediu um pleno desabrochar sexual dele, que permanece preso a uma relação edipiana mesmo beirando 0s 30 anos de idade, sem concretizar uma realização sexual-afetiva com outra mulher apesar de seus desajeitados xavecos lançados a garotas que dele se esquivam pelos restaurantes e bares.
Esta não é uma família tradicional – o pai é figura completamente ausente, a ponto de não sabermos se esta mãe é divorciada ou viúva. O filho não pôde, também por razões obscuras, amadurecer na direção da autonomia e da independência, permanecendo um “crianção” que ainda dorme na mesma cama que a mamãe mesmo já tendo 27 anos de idade. A própria mãe revela-se como alguém que age de maneiras impulsivas, irracionais, motivada muito mais pelo chamado “instinto materno” do que por considerações de caráter ético-racional sobre valores como a justiça e a verdade.
No final das contas, o filme acaba suscitando uma reflexão sobre o crime e o castigo que é bem o avesso do que se depreende do enredo Dostoiévskiano. Há algo que une as duas obras: tanto o escritor russo quanto o cineasta sul-coreano não deixam dúvidas de que Raskolnikov e Do-Jun de fato cometeram os assassinatos de que são acusados e pelos quais são presos. Mas Raskolnikov não consegue conviver com a culpa, com todo o tormento psíquico de lembrar do crime cometido contra a senhora, e acaba por denunciar-se à justiça devido à irrupção desta culpa expelida de seu mundo exterior e que se transforma em algo punível pela justiça criminal. Já Do-Jun, devido às próprias limitações mentais em que está confinado, parece não sentir o mesmo fardo de culpa.
Quando o filme nos revela o que de fato ocorreu na noite fatídica, vemos um jovem ainda virgem, apesar de estar beirando os 30 anos de idade, que segue uma garota atraente e que depois têm um encontro traumático com ela. A moça, irritada por estar sendo seguida, imaginando que aquele possa ser um provável estuprador, lança uma pedra contra ele, seguida por um discurso cujo teor é de um certo “ódio pelo macho” (e que pode trazer à lembrança certas personagens do cinema queer-punk de Virginie Despentes).
Quando ela o “xinga” de retardado, Do-Jun fica irritado, como de praxe, e decide se vingar, lançando uma pedrada pesada na garota. É fato que o filme não descreve o ato como premeditado, nem afirma que Do-Jun tenha tido a intenção de matar. Notando que a garota está desacordada e sangrando, o agressor decide arrastar o corpo escada acima e depositar a moça em um local onde boa parte da vizinhança, ao raiar do dia, poderia vê-la naqueles apuros. Neste processo, Do-Jun deixa cair na cena do crime uma bola de golfe que pixara com sua letra – fator que será determinante para incriminá-lo aos olhos dos tiras quando o cadáver for descoberto.
Outro elemento determinante é o senhor mendigo, catador de restos, que na noite do crime havia se abrigado naquela casa vazia e abandonada. Ele acaba se tornando a testemunha ocular única do crime de Do-Jun. A mãe, que foi uma Miss Marple competente, ao descobrir a verdade acerca desta testemunha estará em uma encruzilhada ética difícil. Por um lado, abre-se o caminho de reconhecer a verdade e permitir ao senhor que conte à polícia o que sabe, o que confirmaria a culpa de Do-Jun e conduziria à sua condenação. Por outro lado, ela pode agir para calar esta testemunha que estilhaça a crença materna na inocência do filho.
Com o perdão do spoiler, este crítico precisa dizer, para uma apreciação justa da obra, que a escolha da mãe pelo assassinato do junk collector só aprofunda a tendência de cumplicidade tenebrosa com sua cria. Serve também para que Bong Joon-Ho realize comentários nada lisonjeiros sobre os vínculos familiares quando são levados a este ponto de obsessão e de irracionalismo, tripudiando sobre as leis sociais mais amplas em prol de um apego ao familismo mais estreito.
É a isso que eu referia quando falava, no começo deste texto, sobre a revelação do avesso do amor materno idealizado por representações caretas da sociedade que idolatra a família tradicional. Esta mãe é levada a assassinar um pobre homem espoliado e sem posses, e depois botar fogo em todos os parcos bens que este juntador de junk havia coletado, tudo para impedir a disseminação de uma verdade inglória sobre seu filho assassino.
Como toda ação tem sua consequência, ela é posta diante de outra encruzilhada quando a polícia lhe anuncia um outro suspeito do crime, um rapaz deficiente (como Do-Jun) e que esta mãe agora vê-se no dilema: devo aceitar usar este jovem como bode expiatório, sabendo perfeitamente que ele é inocente, ou devo libertá-lo através da revelação da verdade que agora possuo?
A mãe prefere sacrificar a verdade que descobriu enquanto detetive, ocultando o que sabe e o que fez, tudo para salvar o filho das garras da prisão e do opróbrio social conectado ao status de assassino. Mas, para isto, ela comete justamente a injustiça contra a qual se insurgia durante suas peripécias pregressas: ela estava revoltada com as autoridades pois elas estavam utilizando seu filho Do-Jun como bode expiatório para um crime que ele não cometera (ou assim ela acreditava…), e agora a mãe irá usar um rapaz deficiente como bode expiatório que pague por um crime que ela sabe que ele não cometeu.
O filme vem depois de O Hospedeiro (de 2006) e antes de Parasita (de 2016), mas compartilha com ambos alguns temas, em especial a capacidade de inserir o espectador num desnorteante labirinto moral. No caso de Mãe, a cumplicidade entre mãe e filho atinge níveis patológicos e sinistros, desconcertantes para a ideologia oficial que se manifesta nos cartões kitsch que celebram o Dia das Mães: responsáveis por dois homicídios, mãe e filho tornam-se cúmplices de um complô que engana a justiça e permite que permaneçam impunes. Uma moça sistematicamente violada, um mendigo sem eira nem beira, um deficiente mental livre de qualquer mácula no crime em questão, acabam sendo as três pessoas que pagam o pato e que servem como vítimas sacrificiais para que triunfem em liberdade os corpos umbilicalmente conectados de mãe e filho. Mais do que nunca, unidos pelo sangue.
Se em Parasita o diretor realizou várias proezas no retrato da luta de classes contemporânea, podemos ver que vários elementos já estavam prefigurados em Mãe – a começar pelo atropelamento seguido de fuga (hit and run) que ocorre no início da estória. Do-Jun é atropelado pela Mercedes Benz de ricaços que não tem a dignidade de pararem o carro para checar se o atropelado precisava de cuidados médicos pois estão demasiado apressados para chegarem ao campo de golfe. Do-Jun e seu amigo esquentado começam o filme indo em busca de vingança – mesmo que seja quebrando um retrovisor aos chutes e dando umas porradas nos ricaços.
Na caótica e cômica confusão do campo de golfe, com certos elementos anárquicos que remetem ao Zero de Conduta de Jean Vigo, os dois amigos vão parar na delegacia junto com os ilustres membros da elite que atropela e acelera. “Este homem aqui é importante demais para estar na cadeia”, diz-se sobre um dos figurões. Aqui já está pré-figurado o Bong Joon-Ho que anos depois venceria o Oscar de Melhor Roteiro Original e se consagraria como o autor do primeiro filme na história a vencer o Oscar de Melhor Filme sem ser falado em inglês.
Esta luta-de-classes, porém, não opõem somente ricos e pobres, proprietários e proletários. Bong mostra que os oprimidos podem oprimir outros oprimidos, que vítimas podem tornar-se algozes. Do-Jun é certamente uma vítima de preconceitos capacitistas vigentes na sociedade, e sofre um bocado com o bullying perpetrado contra ele por aqueles que querem humilhá-lo por conta de suas limitações cognitivas. Mas isto não impede que esta vítima seja também o autor de uma pedrada homicida e o partícipe de um complô de obstrução da justiça (ela mesma descrita por Bong Joon-Ho como bastante falha, incompetente e corruptível).
Quando o filho Do-Jun retira as agulhas de acupuntura que ficaram em meio cinzas do bangalô do mendigo assassinado pela mãe, sabendo que aquilo seria comprometedor para a genitora, ele sela a cumplicidade: mamãe o ajudou a livrar-se do cárcere ao assassinar a testemunha ocular do crime, e agora o filhão ajuda a mamãe a livrar-se de um enrosco na justiça enquanto assassina e incendiária.
Com sarcasmo flamejante, Bong inicia e encerra o filme com a mãe realizando uma queer-dança, numa excêntrica felicidade conectada a um instinto materno que fez triunfar a impunidade, ainda que agora dance sobre as cinzas da justiça e da verdade, valores que só valem quando transcendem o favoritismo e o particularismo dos vínculos familiares para se alçarem ao âmbito do universal-cívico.
Estas danças que iniciam e encerram o filme são um riso sarcástico despejado sobre os assuntos humanos, sobre o triunfo cotidiano das injustiças, sobre as cegueiras acidentais ou voluntárias do direito, sobre as obsessões familistas e as auréolas de santidade artificialmente desenhadas sobre aquilo que é, como tudo que é humano, ambíguo, mescla de maravilha e horror.
O cinema de Bong Joon-Ho derrama uma atmosfera tragicômica sobre nossa condição de mortais nem tão racionais e coloca em cheque os efeitos do famoso “instinto materno” que supostamente seria uma inconstestável força benigna no mundo. Espraia-se assim a meia-luz de um absurdo Camusiano sobre estes destinos bizarros que nos foi dado acompanhar por duas horas em que este filme nos meteu num labirinto moral do qual não conseguimos mais sair, mesmo dias, semanas, meses ou anos depois de termos visto os créditos finais.
por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Maio de 2021
www.acasadevidro.com/mother-bong
Publicado em: 31/05/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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