O quarteto goiano de música instrumental Vida Seca, na ativa desde 2005, lança em 2021 seu terceiro álbum de estúdio, “Upan” (selo Cena Cerrado) e busca “ecoar os sons do mundo”, como escreve Anna F. Monteiro:
“Referenciando pan, palavra que ilustra o conceito do todo, da completude do mundo, Vida Seca cria o personagem Upan para a representação estética da narrativa sonora que elaboraram.
No universo da obra, Upan é um ser que simbolizaria uma cultura musical universal, ecoando da raíz de vários cantos. Para toda obra, a figura de um herói. A capa apresenta o personagem num arranjo visual psicodélico do artista Danilo Itty.”
Em matéria para Jornalistas Livres, Clara Luiza Domingos pontua que “Upan captou o hibridismo dos novos tempos pela fusão de variadas musicalidades do mundo e a originalidade dos instrumentos construídos a partir de matéria-prima descartada.
Além de apresentar um projeto musical único e sustentável, Vida Seca compartilhou todo o potencial transformador e criativo de objetos aparentemente inutilizáveis em oficinas musicais e ambientais em diferentes espaços, como comunidades e escolas.
O trabalho do grupo Vida Seca vem sendo apresentado América Latina afora, com espaço cativo em Goiás. Atuando como construtores, compositores, performers e educadores, os integrantes do Vida Seca participaram dos grandes festivais do centro-oeste, mas também passaram pelos tradicionais e populares encontros da região do cerrado; caminharam por todo o sudeste, região do Rio da Plata, no Uruguai e Argetina, ainda foram além-mar, chegando até a terra do Fado, para apresentar aos amigos portugueses toda a riqueza cultural que é o Brasil.”
Neste Sábado, 20 de Março, aprecie a live de lançamento produzida e transmitida em parceria por Jornalistas Livres (Núcleo Goiás) e A Casa de Vidro Ponto de Cultura.
No panorama da música instrumental brasileira, em que se destacam grupos sensacionais como a Orkestra Rumpilezz (do maestro Leitieres Leite), o Uakti, a Nômade Orquestra, o Bixiga 70, dentre outros, a Vida Seca carrega várias peculiaridades que singularizam a banda neste cenário.
A começar pela inventividade no trato com instrumentos musicais: eles fogem dos cânones e preferem, na tradição vanguardística de Tom Zé e Hermeto Pascoal, inventar instrumentos que o crítico, desnorteado, sente-se instigado a batizar com nomes meio bizarros: um xilofone de garrafas de vidro e uma conga feita com barril de plástico, por exemplo.
Não se trata só de tirar som de fontes excêntricas, que o senso comum não costuma crer que possam gerar música, mas de mostra que é possível fazer música interessante, vanguardística mas também capaz de despertar fascínio popular, através de materiais que se encontram no ferro velho ou no depósito de sucata. Há uma poesia à la Manoel de Barros nas atitudes destes ritmistas que dão valor ao que sociedade descarta.
Banda de percussionistas muito bem sincronizados, o Vida Seca participa também de um cenário local, o dos batuqueiros do cerrado, que também inclui o Coró de Pau (e o Coró Mulher), o Caboclo Roxo, os Passarinhos do Cerrado, dentre outros. O álbum “No Cerne da Madeira”, lançado pelo Coró em 2006 e recentemente lançado na rede por A Casa de Vidro, é um excelente retrato deste pouco conhecido mas efervescente cenário:
Vida Seca não é só música. Se o nome nasce de um livro – o clássico de Graciliano Ramos, adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos -, o ato performático da banda sobre o palco transcende a arte dos sons. Há toda uma teatralidade, um cuidado com os gestos, com a indumentária rasgada, com uma estética meio beggars banquet, com evocações do Banquete dos Mendigos organizado por Jars Macalé. Eles também se interessam por expressão corporal, dança estranha, com boas doses de humor que chegam a evocar o genial grupo de ritmistas STOMP.
O terceiro álbum do Vida Seca traz 10 composições inéditas, que se estendem por quase 40 minutos e trazem títulos sugestivos, evocadores da África, como “Banzo” e “Afrobeatcoin”. A sonoridade caribenha também é alvo do grupo em “Cubana”. E o contexto pandêmico marca presença não só no título Upan, que remetendo a pan evoca também a pandemia, mas também na faixa de encerramento, “Isola”.
Na acachapante capa desenhada por Itty, o desavisado se depara com o cromatismo exuberante que marcava a estética visual de bandas de Goiânia Rock City como Black Drawing Chalks e Hellbenders. Mas que não se espere pedradas stoner nem peso roqueiro na música do Vida Seca, ainda que haja no trabalho deles muita subversão.
Subversão das expectativas sociais: nada mercadológico, o som deles está aí pra causar estranhamento mesmo. Para mostrar que música não é privilégio de quem pode comprar instrumentos caros: a democratização do fazer-musical para quem não tem recursos de sobra parece estar na raiz do ethos dos caras, o que os aproxima da lógica do movimento punk, faça você mesmo – ainda que a sonoridade não tenha muito a ver com punkice.
Um alerta, porém: a experiência estética com Vida Seca, por tudo que ficou exposto, é maior quando se pode vê-los ao vivo ou através de vídeos filmados – esta é uma banda que, reduzida a somente áudio, torna mais limitada a estesia de quem ouve, pois ao áudio falta tudo aquilo que a visualidade comunica: a atitude, as personas de “vagabundos iluminados”, a expressão corporal, as dancinhas, mas sobretudo a percepção das fontes do som, da materialidade daquilo que está produzindo música. Por isso, não se contentem com ouvi-los, tente vê-los – sobretudo prefira presenciá-los.
Publicado em: 20/03/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia