Às vésperas celebração dos 50 anos da banda, fundada na primeira metade dos anos 1960, o monstro sagrado do rock The Rolling Stones lançou este pulsante documentário “Crossfire Hurricane” (2012, 110 min) dirigido por Brett Morgen (que depois faria “Kurt Cobain: Montage of Heck”, impressionante retrato íntimo do caleidoscópio anímico do líder do Nirvana).
O filme foi batizado em homenagem ao verso de abertura de “Jumpin’ Jack Flash” e é dotado de uma montagem tão veloz e repleta de cortes que produz um efeito alucinante. Anos antes, os Stones já haviam recebido um retrato cinematográfico robusto com o “Shine a Light” dirigido por Martin Scorcese (também responsável por filmes importantes sobre Bob Dylan [No Direction Home] e The Band [The Last Waltz], lançado em 2008. Juntos, os dois filmes servem para representar a grandeza desta Instituição cultural roqueira que atravessa 5 décadas.
O filme acompanha este colosso do rock sobretudo nos anos 1960 e 1970, com rico material de arquivo recuperado e entrelaçado com entrevistas realizados com os Stones às beiras do aniversário de 5 décadas do grupo. Há a crônica quente e frenética de vários episódios cruciais: a morte de Brian Jones e o mega-funeral em Hyde Park em 1969; a tragédia em Altamont vinculada aos Hell’s Angels na segurança, entrando em choque sangrento com a platéia (morte e confusão que já foram objeto do documentário “Gimme Shelter”, de Albert & David Maysles em 1970); os recorrentes conflitos de Keith Richards com as leis proibicionistas que o levaram a ser preso várias vezes por posse de entorpecentes; a rivalidade com os Beatles e a construção performática dos Stones como “bad boys” vestindo um “black hat”…
Clássicos dos Stones – como “Sympathy for the Devil” e “Midnight Rambler” são apresentadas através de vívidas imagens da banda ao vivo, que revelam quão bombásticas eram as performances de Jagger, Richards e companhia. Porém, o filme oferece poucos vislumbres, não muito reveladores, acerca do processo criativo da banda – nem mencionando álbuns clássicos como “Exile On Main Street”, “Let It Bleed” “Beggars Banquet” ou “Sticky Fingers” – a única coisa que ficamos sabendo é que os caras eram noctívagos e não gravavam nada antes do pôr-do-sol, avançando nos trabalhos madrugada adentro – e com uma ampla diversidade de drogas à disposição…
O foco do filme são os “furacões” sociais que as pedras-que-rolam de certo modo causaram, com sua música eletrizante e performances catárticas, com uma ênfase no “descontrole” de massas que está vinculado a manias de idolatria.
Tanto a Beatlemania quanto a onda de fanatismo pelos Stones manifestavam-se por fenômenos que desafiam a compreensão dos psicólogos sociais – como as massas de menininhas na puberdade, berrando como loucas e mijando rios em suas calcinhas, que tornavam os shows destas bandas, nos anos 1960, uma cacofonia das mais caóticas.
Chega a ser cômico, em certo momento do filme “Crossfire Hurricane”, que o hiper-ativo e dançarino frenético Jagger, assustado com o tamanho da platéia e toda a inquietude que ela manifestava, pedindo ao microfone que a multidão ficasse quieta: pedir “stillness” para a platéia dos Rolling Stones é uma bizarrice que indica toda a ambiguidade que deve ter tomado conta dos músicos em várias situações tensas em que aquela música, provocadora de movimentos corporais intensos, poderia servir quase como a faísca incitatória de um riot.
Neste sentido, “Crossfire Hurricane” é um dos melhores filmes para pensar os Stones na história do proto-punk, na incepção desde os anos 1960 e começo dos 70 – com MC5, Stooges, Sonics, New York Dolls etc. – daquilo que explodiria em 1976 e 1977 com os Pistols, o Clash, os Ramones, o Blondie etc. Os Stones, com suas performances eletrizantes, de fato prenunciam o movimento Punk com sua estética “de volta ao básico” mas também pela explicitação do quanto o Rock tornou-se uma música “perigosa”, perseguida pelas autoridades ciosas de manterem o status quo, a moral e os bons costumes, o estabelecido, pois instigava comportamentos impulsivos, descontrolados, desreprimidos, em cidadãos que a polícia era frequentemente convocada a domar.
Para além de prenúncio do punk, o filme debate a complicada relação dos Stones com a Geração Hippie e nos dá subsídios para questionar – como fez Hunter Thompson em seu livro-reportagem gonzo – a respeito dos Hell’s Angels e das atitudes deles em meio à tarefa hercúlea de “segurança” em shows dos Stones que terminam em sanguinolência e quebra-quebra.
Sobretudo, assistir a este filme é deixar-se levar para o olho de um furacão que nos arrasta para longe da racionalidade e do logocentrismo, desvelando o rock’n’roll como uma força social que transcende os controles impostos por autoridades e torna-se um elemento imprevisível da equação comunitária – nem somente caça-níqueis da indústria cultural, nem pura nitroglicerina contracultural, o rock segundo os Stones habita imerso a contradição tensa e tira daí a matéria-prima para uma música que eletriza gerações há mais de 50 anos. E que fez emergirem vários grupos excelentes, que podem até ser acusados de agir como “derivados” ou imitadores dos Stones, mas que possuem méritos próprios e trajetórias interessantes – penso sobretudo no caso do Black Crowes, do Blackberry Smoke ou do Rival Sons.
Como um dos trechos mais legais do doc destaco Jagger falando sobre o quanto estão ligados, em sua concepção, o processo criativo e o sentimento de insatisfação – segundo o músico, é quando estamos insatisfeitos que ficamos motivamos a criar algo novo, a modificar o mundo através de uma nova música que expresse esta própria insatisfação, como fizeram os Stones em mega-hits como “I Can’t Get No Satisfaction” e “You Can’t Always Get What You Want”, do qual emergem um ethos de resposta criativa às insatisfações da vida que não cessa de fazer sentido e parir obras maravilhosamente insatisfeitas com o desconcerto do mundo…
#CinephiliaCompulsiva2021
Por Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 03/02/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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