O ano de 2021 d.C. começou com mais de 2 milhões de vidas humanas já ceifadas pela covid19 e quase 100 milhões de infecções registradas (Fonte: Johns Hopkins).
A pior crise de saúde coletiva que já atravessamos no século 21 está longe de ter fim com o início dos processos de vacinação mundo afora: a depressão econômica que vem em sua esteira já suscita comparações com o contexto da Grande Depressão (1929 – 1939) que foi a antessala do morticínio generalizado da II Guerra Mundial.
Para além disso, não há – nem nunca haverá – nenhuma vacina contra o aquecimento global. Novas pandemias decerto irão se disseminar caso a atual tendência de devastação ambiental, causa suprema da disseminação das zoonoses viróticas que tanto tem nos desgraçado, prossiga sem freios como ocorre no Brasil desgovernado pelo Bolsonarismo ecocida e genocida.
Como argumentou Sonia Shah, autora de Pandemic, em matéria para Le Monde Diplomatique, contra pandemias o que precisamos é de ecologia! Desgraçadamente, os analfabetos ecológicos, ou seja, aqueles que ligam o “foda-se!” pros acordos internacionais de controle de emissões de gases de efeito estufa, que financiam o agrobiz carnista, que fomentam práticas agrícolas latifundiárias e agrotóxicas, estão empoderados e impunes de seus recorrentes crimes.
Em um contexto em que juristas e movimentos sociais fazem tímidas tentativas de tipificar o ecocídio como “crime contra a humanidade” (algo que avançou no fim de 2016 no Tribunal Penal Internacional de Haia), o governo ilegítimo e fraudulento de Bolsonaro aparece planetariamente como o emblema macabro de um necroliberalismo sinistro. No Brasil atual, revela-se a face mais mortífera e Tanatocêntrica do capitalismo contemporâneo.
O Bolsonarismo é uma aliança de serial killers que inclui milicos brucutus, pastores neopentecostais e fazendeiros dispostos a “Dias do Fogo” (como aquele incendiário 10 de Agosto de 2019). Todos empoderando uma rede de infratores ambientais que avança sobre territórios indígenas e áreas de conservação com o despudor dos Cavaleiros do Apocalipse. Esta tóxica ideologia não é só uma desgraça para o Brasil – é uma catástrofe para toda a biosfera.
Trata-se de um projeto político que consegue unir o ecocídio mais suicida às práticas genocidas conexas ao negacionismo da ciência, ao obscurantismo teocrático e seu “terraplanismo sanitário” (como o apelidou Leonardo Sakamoto). Os mais de 400.000 cidadãos brasileiros mortos são vítimas deste processo: são “mortes que, em grande parte, poderiam ser evitadas se a administração Jair Bolsonaro não tivesse adotado o terraplanismo sanitário como política de Estado e a incompetência como modelo de gestão” (Sakamoto em seu blog no UOL).
O show de horrores a que estamos sendo submetidos diariamente no Brasil é tamanho que quase acabamos por banalizar, como se fosse um horror menor em meio à overdose de atrocidades, aquele tenebroso “vamos aproveitar a pandemia pra ir passando a boiada!” do Ministro Salles. Frase dita em reunião ministerial que mais parecia uma sitcom de gangsters querendo estrelar um filme-catástrofe pós-apocalíptico. Uma mistura de Sopranos com Mad Max, com pitadas de Psicose…
É um emblema do desgoverno ecocida de Bolsonaro: um condenado por crime ambiental, que nunca deveria sequer ter sido empossado num cargo de Ministro do Meio Ambiente, não apenas ecoa os brutais “e daí?” de seu patrão, como também prega: aproveitemos a “oportunidade” trazida pela pandemia para devastar ainda mais a legislação de proteção à biosfera! Pra avançar no processo de transformar a Amazônia num grande Pasto! Em O Globo, mostrou-se: ‘Boiada’ de Salles incluiu demissão de fiscais, anistia a desmatadores e submissão do Ibama a militares na Amazônia.
O ecocídio patrocinado pelo desgoverno Bolsonaro – inclusive todas as mamatas para os “Reis do Agronegócio” (Chico César/Carlos Rennó) – vem crescentemente sendo considerado por juristas como um crime contra a humanidade e pode levar seus perpetradores a julgamento no Tribunal Penal Internacional de Haia na Holanda.
Mesclando jornalismo com especulação distópica sci-fi, Matheus Pichonelli foi bem incisivo em seu artigo ao criticar o projeto político que prioriza armas-de-fogo para o cidadão-de-bem e o “destrutivismo” sem freios dos biomas em nosso território:
Após o Golpe de 2016, aquela vexaminosa “parlamentada” que encerrou de maneira fraudulenta o mandato legítimo da presidenta Dilma Rousseff, os ruralistas se sentiram mais em casa no Brasil pós-democrático. Lançado em 2018, ano em que findou o governo Temer e começou o Pesadelo Bozonazista, o documentário Sob a Pata do Boi (Diretor: Marcio Isensee e Sá) é crucial para a nossa compreensão dos processos através dos quais a Amazônia vira pasto.
Em sua conclusão, afirma-se: “o desmatamento e o agronegócio são responsáveis por 74% das emissões que causam o Efeito Estufa.” Mas, como diria Seu Jair diante de uma montanha de 250.000 cadáveres que sua irresponsabilidade criminosa ajudou a perpetrar, “e daí?”
A certo ponto do doc, um executivo da JBS que responde pelo setor de Sustentabilidade afirma que o sabor da carne é o mesmo, seja ela proveniente de uma atividade pecuária “legal”, seja ela proveniente de área ilegalmente desmatada; o bifão que você mordisca no Burger King não é menos gostoso só porque tem trabalho escravo misturado a seu processo de produção ou só porque aquele boi foi criado em uma área indígena ou de proteção ambiental que foi invadida, ao arrepio da Lei, por infratores ambientais…
O cidadão dito normal, saindo do cinemão Multiplex do xópis, onde assistiu com muito gosto A Guerra Infinita dos Vingadores, não pensará em nada disso enquanto passa seu cartão – “débito ou crédito, Sr?” – no caixa do McDonald’s. A conspiração do silêncio agirá para que seu consumo seja sem culpa, sem neura, sem grilo. Goze com seu hambúrguer, cidadão de bem. Goze com sua cegueira.
Enquanto isso, a “boiada vai passando” (como quer o Mr. Salles, criminoso ambiental que nunca poderia ter assumido este cargo para o qual é tão adequado quanto a fabulosa raposa a cuidar do galinheiro) e rumamos, com a devastação da Amazônia, para o Apocalipse Climático numa Mad Max tropicaliente, onde não faltam as figuras do Genocida de Pandemia, do Ministro Banqueiro que idolatra Pinochet e do Ministro do Meio Ambiente que é amicíssimo dos piores infratores ambientais…
Que novo Renato Russo atualizará nossa indignação com uma nova, revigorada, transfigurada versão da galáxia de questões envolvidas naquele grito punk que ainda ressoa: “Que País É Esse?”….
“Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão…”
Uma excelente leitura para aprofundar temas tratados pelo documentário é “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza”, de Ricardo Abramovay (Elefante, 2019, disponível em ebook gratuito).
Segundo seu autor, “este texto oferece argumentos e dados empíricos para contestar a visão tão frequente de que o crescimento econômico na Amazônia supõe a substituição de áreas florestais (em geral ocupadas por populações indígenas e ribeirinhas) por atividades agropecuárias tradicionais como a soja e a pecuária.
Mostra também que a destruição florestal, além de privar o Brasil e o mundo de serviços ecossistêmicos indispensáveis à própria vida, apoia-se em atividades ilegais e, com muita frequência, no banditismo. As consequências do avanço do desmatamento são desastrosas para a economia da Amazônia e para a própria democracia brasileira. No lugar dos laços de confiança que poderiam emergir como resultado da exploração sustentável da floresta em pé, o atual modelo de ocupação da Amazônia fortalece a criminalidade e dissemina a insegurança por toda a região.”
Abramovay destaca a relevância planetária da Amazônia no contexto do combate às mudanças climáticas: “Em 2016, o Brasil foi o sétimo emissor mundial de gases de efeito estufa (2278 bilhões de toneladas). Deste total, nada menos que 51% foram causados por desmatamento, como mostram as informações do Grupo de Trabalho pelo Desmatamento Zero. Outros 22% de nossas emissões originam-se na agropecuária, pelo consumo de fertilizantes e metano do rebanho, segundo dados do Observatório do Clima.
Se, no caso da agropecuária, há desafios tecnológicos notáveis para reduzir as emissões, isso não pode ser afirmado com relação ao desmatamento, que resulta da tolerância institucionalizada com práticas ilegais, cuja utilidade social e econômica é praticamente nula e que compromete o futuro do Brasil não só enquanto potência ambiental, mas como território onde povos tradicionais, permanentemente agredidos pela ameaça a suas terras, guardam e valorizam um patrimônio cultural extraordinário.” (ABRAMOVAY, 2019, pg. 32)
*Apesar dos inumeráveis méritos tanto do filme Sob a Pata do Boi quanto do livro de Abramovay, ambos pecam por omissão ao não debaterem, em nenhum momento, uma questão visceralmente conexa à problemática em questão: o domínio do animal humano sobre outras espécies animais que é justificada e amparada por uma pervasiva e perniciosa ideologia que faz com que sujeitos e instituições normalizem nosso atual consumo de carne.
Um visitante alienígena de uma imaginária civilização mais avançada do que a nossa acharia estranhíssima a presunção dos animais humanos e a tendência destes a um trato com os outros animais baseado em um explícito mecanismo de “dois pesos, duas medidas”. Humanos, por um lado, amam cachorros e gatos (e amam também postar selfies com seus pets pra faturar coraçõezinhos de Instagram). Por outro lado adoram também vestir jaquetas de couro e devorar loucamente a carne de porcos, bois, peixes, perus etc.
A maioria das pessoas ditas “normais” vomitaria de nojo caso recebesse a notícia que o bife que acabou de comer, e que achou super saboroso, não provêm de um boi mas de um poodle. Porém, não se vê nada de anormal em “comer nosso bife enquanto fazemos carinho no cachorro” (JOY, p. 118)
O sistema de crenças que preside a esta diferenciação entre animais de estimação e animais comestíveis é conhecida como especismo (Peter Singer) ou carnismo (Melanie Joy) – e segue sendo um tabu, pouco discutido publicamente. Assim seguimos fingindo que a transformação da Amazônia num imenso Pasto nada tem a ver com as crendices especistas e carnistas, muito ligados a um certo excepcionalismo humano: a crença de que o homo sapiens é o mais fodão de todos os bichos, uma exceção “racional” em meio às bestas irracionais e desalmadas que estão por aí sem conseguir construir armas-de-fogo, escrever Bíblias e organizar a morte-em-massa frigorífica…
Sigamos um exemplo concreto no Brasil contemporâneo: a pecuária do agrobiz no estado do Pará. Tanto os fazendeiros, quantos os lobbystas de empresas como a JBS, assim como políticos eleitos que compõem a chamada Bancada Ruralista, cantam louvores à “produção de carne” no Pará. Esta é elogiada pelos locutores de rodeio e pelos animadores de leilão como a salvação na Terra: faz o PIB do Brasil cresceu, aumenta nossa exportação de commodities, engorda os contas dos latifundiários enquanto gera empregos (ainda que precários, mau-pagos, às vezes similares ao regime de escravidão) pra “raça” dos peões…
Assim, esta tirania ruralista implica a concentração de renda e terras nas mãos de poucos big farmers, conexa à produção social da subcidadania (Jessé Souza) de certos grupos humanos. Os “peões”, como no jogo de xadrez em que são a peça mais pobre, mais numerosa e mais dispensável, são tratados como sub-humanos. No tabuleiro do mundo, são os que podem ser comidos, não tem grande problema. Devorá-los também é um requinte de crueldade normal da máquina pecuarista.
Os peões – only pawns in their game, cantava Dylan – podem receber salários de miséria, podem ser presos em galpões vigiados por guardas armados, podem ser enforcados por dívidas impagáveis e coerções brutais por parte dos patrões. Podem até mesmo ser abatidos a tiros pelos capangas do patrão, à la Bacurau, caso tenham a má ideia de denunciar algum crime ambiental ou violação de lei destinada à preservação da floresta.
Esta desumanização que os animais humanos impõem a outros animais humanos torna-se ainda mais explícita no caso das práticas conexas ao especismo/carnismo. Os animais humanos, que costumam se descrever como o ápice da criação, vão tratando os bois e vacas (que se tornaram, aliás, muito mais numerosos do que os humanos!), não como seres viventes dignos de respeito, que co-evoluíram conosco no seio da Pachamama que a todos abriga, mas como máquinas produtoras de carne. “Senciência” é palavra que pecuarista ou ruralista ninguém conhece, nem quer conhecer – eles estão cagando e andando, “passando a boiada” em meio ao caos, com pandemia e tudo, como proposto pelo Ministro da Hecatombe Sócio-Ambiental, Mr. Salles, um dos muitos criminosos que auxiliam Seu Jair a perpetrar seus crimes de genocídio e suas agressões à Natureza e aos povos humanos nela existentes, de tão vasta escala.
A Amazônia brasileira, com 25 milhões de cabeças humanas, tem mais de 85 milhões de cabeças-de-gado. Quem os enxerga quando mordisca uma salsicha? Quem vê a Amazônia e seus traumas, estando dela distante, mandando Big Macs goela abaixo dentro de um shopping center que por sua vez está dentro numa megalópole repleta de Wal Marts e Carrefours? Quem enxerga o sangue indígena derramado, a floresta desmatada, as onças queimadas, os pássaros calcinados, quando anda pelos açougues do capitalismo carnista?
Estes hipermercados e açougues não vendem não só a carne, mas o conforto: consumidor, permita-se não pensar! A gente mata pra você, mas pedimos que não se lembre, nem lembre a ninguém, que a morte em massa de seres sencientes faz parte de nosso business as usual. Seja feliz e não busque saber como aquilo ali, aquela suculenta almôndego congelada, aquele quibe prontinho pra fritar, como foi que aquilo ali morreu e como foi seu fim-de-vida antes de ir parar ali!
Eles têm uma conspiração do silêncio muito bem arquitetado e muitos consumidores estão felizes em participar desta. Outta sight, outta mind – o que está fora de vista, está fora da mente. Vamos ao churrasco com good vibes e camisetas verdeamarelas da CBF, mordiscando bife FriBoi todo cheio de crimes ambientais e trabalho escravo, e ainda bradaremos, com cadáveres semi-mordidos entre os dentes, que somos cidadãos-de-bem lutando contra a corrupção e honrando o Capitão Bolsonaro em sua Cruzada AntiComunista…
No hipermercado dos grandes centros, seja em Sampa ou no Rio, em BH ou em POA, em Manaus ou Goiânia, o consumidor não enxerga – e nisso vai uma boa dose de cegueira voluntária – todo o processo produtivo por trás daquela picanha sangrenta embalada num plástico. O sangue na picanha não remete à vida que ali esteve presente há poucas horas.
A mente do sujeito colonizado pela ideologia carnista não estabelece os nexos entre o sangue na carne e um organismo vivo, dotado de coração pulsante e circulação sanguínea, que acaba de ser morto em um frigorífico para ser cortado em pedaços, ensacado e enviado ao varejo. O alto astral do churrasco, as good vibes do rodízio de carnes, dependem do recalque sobre a origem daquilo que os dentes humanos mastigam.
O vínculo entre a ideologia especista-carnista, o sistema produtivo hegemônico do agrobiz e a emergência de novas zoonoses viróticas prossegue sub-representado e sub-pesquisado – com algumas notáveis e louváveis exceções, como o livro de Rob Wallace sobre Pandemia e Agronegócio (tradução para Big Farms Make Big Flus).
Não é por bom-mocismo riponga que levantamos a voz em prol do vegetarismo e dizemos, em coro com Jonathan Safran Foer, que “salvar o planeta começa no café da manhã”. Não é por uma postura sentimentalóide que poderia ganhar uma caricatura do tipo “esse pessoal good vibes que tem dó dos bichinhos” que levantamos bandeiras e canteiros para pedir agroecologia ou barbárie ou permacultura democrática já! Uma avaliação lúcida do real, que esteja atenta a esforços transdisciplinares em que confluem as ciências exatas e as humanas, é levada a concluir que a causa da catástrofe que atravessamos com a covid19 é certamente a devastação ecológica.
A continuidade desta devastação é uma rota suicida de uma parcela da humanidade que parece querer acelerar, com vendas nos rumos, rumo à coletiva autodestruição. A soberba humana, a húbris de um delírio excepcionalista, leva seres humanos a aderirem ao sistema de crenças que aqui estamos ocupados em denunciar e desconstruir: a crítica radical do carnismo não é “coisa de comunista”, é coisa que deveria interessar a todos que querem proteger a Teia da Vida diante da ameaça devastadora que hoje a esfacela no Antropoceno.
Esta crença falsa que dá base ao carnismo e suas práticas, ao consumo de carne massivo e às suas justificações e racionalizações, já foi desmontada até mesmo “por dentro” do próprio capitalismo: um dos mais renomados e importantes filósofos do pragmatismo liberal, Jeremy Bentham, argumentava que a atitude humana diante dos outros animais, e sobretudo sobre o sofrimento destes, deveria favorecer o conceito de senciência e não o de racionalidade: “A questão não é ‘eles podem raciocinar?’, nem ‘eles podem falar?’, mas sim ‘eles podem sofrer?”
Melanie Joy (pHd), diante disso, comenta: “Historicamente, tem se acreditado que membros de grupos vulneráveis tenham maior tolerância à dor, uma suposição frequentemente invocada para justificar o sofrimento. Por exemplo, cientistas do século XV pregavam cachorros em tábuas pelas patas para abrir seu corpo e fazer experiências com eles plenamente conscientes, ignorando o uivar dos cães como simples reação mecânica – pouco diferente do ruído de um relógio cujas molas tivessem sido atingidas…” (p. 57)
Algo similar ocorre no sistema de crenças daqueles que justificam a escravidão, o patriarcado ou a exploração de classe baseada em dominação estrutural – o outro é construído como aquele que pode sofrer e morrer por ser menos do que eu e do que os meus. É preciso uma ideologia historicamente construída para convencer os sujeitos, submetidos à construção coletiva no campo de obras de suas mentes de um arcabouço de crenças aqui referido como especismo-carnismo, para que se crie a distinção entre animais de estimação e animais para alimentação, e para que se justifique que os animais humanos possam construir imensos aparatos produtivos que transformam em infernos totais as vidas, do berço ao abate, daqueles que foram construídos como animais comestíveis.
O carnismo diz que “comer carne é normal, natural e necessário” – e os criadores deste mito conseguiram sua ampla disseminação e um alto grau de adesão, por mais falsa que seja esta tese. As pessoas que aderem ao carnismo são também vítimas da desinformação e da formação equívoca, e se há nelas um elemento de ignorância voluntária, há também uma vontade de saber que não está sendo alimentada pelo establishment e que precisamos alimentar a partir de uma espécie de contrabando do conhecimento. Como Eric Schlosser fez magistralmente em Fast Food Nation, mostrando para muitos cidadãos carnistas que eles estavam literalmente comendo merda…
O carnismo é indefensável do ponto de vista ético, econômico, ecológico e sanitário – os “efeitos colaterais” do carnismo incluem “as pessoas que moram ao redor das CAFOs poluidoras” e “os trabalhadores dos frigoríficos e laticínios” – que tem “tem sido envenenadas por despejos industriais (sulfitos e nitratos)” e que estão muito mais vulneráveis diante dos “surtos de doenças viróticas e bacterianas”. Mas não só eles – todos nós nos fodemos com um sistema carnista que fabrica pedaços de cadáveres de animais que viveram em confinamento e seus corpos mortos que chegam aos açougues costumeiramente estão “impregnados de hormônios sintéticos” e com “doses maciças de antibióticos, pesticidas, herbicidas e fungicidas tóxicos (substâncias reconhecidamente cancerígenas), de variedades potencialmente letais de bactérias e vírus, de petróleo, carcaças envenenadas por rato, terra, pêlo e fezes…” (JOY, p. 73)
É salutar para qualquer projeto de saúde coletiva questionar os impactos da prevalência do carnismo e as causalidades que conduzem o atual sistema de produção de carne à produção de desmatamento, mudanças climáticas antropogênicas e emergências de zoonoses viróticas como a covid19. Esta só transformou o mundo num imenso matadouro pois o mundo já havia sido antes transformado num mórbido e insano matadouro corporativo de bichos aos bilhões.
A falta de empatia manifestada por líderes neofascistas como Bolsonaro, Duterte, Trump ou Orbán foi construída historicamente também pelo colapso de qualquer empatia com as espécies construídas como comestíveis – e Adorno, na filosofia, e Isaac Bashevis Singer, na literatura, já haviam nos alertado, na Era dos Extremos que foi o séc. XXI, sobre onde Auschwitz começa: quando o sofrimento de outro vivente, num abatedouro, encontra nosso “e daí? ele não passa de um animal!” Singer chegou a propor seres humanos se tornam similares aos nazistas quando se mostram completamente indiferentes àquilo que os milhões de viventes presos nas engrenagens da indústria-de-carne sentem: o equivalente de “um eterno Treblinka”.
É preciso sair desta Matrix carnista, deste sistema de crenças “crivado de absurdos, incoerências e paradoxos”, que “é fortificado por uma complexa rede de defesas que fazem com que possamos acreditar sem questionar, conhecer sem refletir e agir sem ter sentimentos. É um sistema coercitivo que tem cultivado em nós uma elaborada rotina de ginástica mental que nos impede de ficarmos ancorados à nossa verdade… O sistema depende de nossa indiferença e está construído com base na fraude. O carnismo é um castelo de cartas, um sistema rachado e fragmentado que precisa de uma boa fortaleza para proteger-se de seus próprios patrocinadores – nós. E como a Matrix cinematográfica, a matriz do carnismo só pode aprisionar nosso coração e mente enquanto guardarmos nossas próprias celas, enquanto formos participantes voluntários.” (Melanie Joy, Cultrix, p. 128)
Considero o livro de Melanie Joy uma pérola (em prol dos porcos) mas que encontra frequentemente ouvidos moucos. Um dos mais belos capítulos, em que a autora revela uma força oratória e uma reflexão ética admiráveis, convida-nos (ou convoca-nos?) a testemunhar nossa resistência, apesar dos pesares, afrontando e enfrentando todos os sofrimentos que possam advir disto:
“Tomar consciência do sofrimento intenso de bilhões de animais e de nossa própria participação nesse sofrimento pode trazer à tona emoções dolorosas: dor e remorso pelos animais, raiva com relação à injustiça e a fraude do sistema, desespero ante a enormidade do problema, medo de que autoridades e instituições que parecem confiáveis sejam, de fato, indignas de confiança, e culpa por ter contribuído para o problema. Dar testemunho significa optar por sofrer. Na verdade, empatia é literalmente ‘sentir com’. Optar por sofrer é particularmente difícil numa cultura viciada no conforto – uma cultura que ensina que a dor deve ser evitada sempre que possível e que a ignorância é uma benção….
Testemunhar nos compele a vermos a nós mesmos como fios na teia da vida, não situados no vértice da chamada cadeia alimentar. Testemunhar desafia nosso senso de superioridade humana; obriga-nos a admitir nossa interconectividade que nossa espécie vem, há milhares de anos, se esforçando por negar. E, no entanto, testemunhar é em última instância libertar-se. Quando reconhecemos que não somos fragmentos isolados num mundo desconectado, mas parte de um vasto e vivo coletivo, conectamo-nos com um poder muito maior que nosso ego individual.” MELANIE JOY (p. 138)
Nesta conjuntura virótica que ora atravessamos, em 2021, é preciso testemunhar, com coragem, resistindo à necropolítica que tem no carnismo-especismo outra de seus sistemas-de-crença que alimentam a máquina-mortífera. É preciso sermos resolutos em não servir àqueles que desejam o nosso silêncio e a nossa cumplicidade: “A neutralidade ajuda o opressor, jamais a vítima; o silêncio encoraja o torturador, jamais o torturado”, escreveu o Nobel da Paz e Sobrevivente do Holocausto Elie Wiesel.
Diante do Bolsonarismo, que não é um problema brasileiro mas uma ameaça planetária, precisamos urgentemente arrumar a força coletiva para des-empoderar e desalojar do aparato Estatal-corporativo os produtores da morte em massa, os perpetradores de genocídios e ecocídios. Agora que se descortina com crescente nitidez, como afirma Joel Birman em seu livro transdisciplinar, que “não resta qualquer dúvida de que a problemática ecológica é fundamental não apenas para compreender, mas também para explicar devidamente o incremento significativo das pandemias no século XXI” (BIRMAN, 2020, pg. 31).
Aí se inclui o catastrófico incremento, sob o Bolsonarismo, da boiada passando e deixando um rastro de destruição de florestas, mamatas para o agronegócio ecocida e para milicos-da-gastança (e da Cloroquina superfaturada…) que não passam de “profissionais da violência”, tudo gerando este clima de churrasco macabro que a persistência da hegemonia carnista propicia e propaga. Queimemos fascistas, não florestas! Pois não há planeta B e neste planeta que há o Bolsonarismo é pior que a peste.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Janeiro de 2021
www.acasadevidro.com
Publicado em: 21/01/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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