A beatlemania representou a emergência massiva de um novo culto. Dispensando a transcendência, este culto tinha por objeto os músicos mais célebres da cultura dos sixties: as massas idólatras, adorando aos Fabulosos Quatro de Liverpool, transformaram uma banda numa lenda viva devido à intensidade da devoção coletiva que mobilizaram. John, Paul, George e Ringo despertaram fanatismos extremados, ganharam apóstolos entusiásticos, foram elevados à condição de deuses terrenos.
No entanto, longe de ser as estrelas clichê do showbiz, os Beatles souberam ser iconoclastas diante da própria fama, apontando tudo o que há nela de enganador, de ilusório, de excessivo – neste artigo, avançamos a hipótese de que o Johnisíaco e o Georgesátva são duas vias alternativas para aqueles que desejam recusar os véus de Maya da celebridade efêmera e encontrar vias mais adequadas para a construção de sentidos para a existência humana.
Tantos holofotes, capas-de-revista, jornalistas em perseguição, exposição em filmes e sobre palcos, decerto trouxe o tema da fama para o epicentro da problemática Beatle em meados dos anos 1960 – quando a revolução cultural propulsionada pela psicodelia faz sua entrada triunfal na arte da banda. Rubber Soul, Revolver e Sgt. Peppers não são exatamente a recusa da fama mas expressam o desejo de aventura, de experimentação de caminhos novos (e bem lisérgicos), longe da estrada já batida dos hits em repeat.
A fama era tamanha, os fãs tão estrondosos, a mania pelos Beatles tão estratosférica, que tudo isso chegou a subir à cabeça de Lennon, o mais rebelde dos Beatles, que provocou a fúria dos fanáticos ao sugerir que a banda era mais popular que Jesus Cristo. Uma tese que não foi muito bem-vista por aqueles que insistem em depreciar as devoções terrestres, tão perdidos que estão em celestes idolatrias… As iluminações e as devoções profanas, que propõem uma reconversão do sagrado (antes no Céu transcendente, agora encarnado em pessoas terrenas), cheiram a heresia e heterodoxia. “Fogo nos incréus!” – pregam os fanáticos, acendendo suas tochas…
“O Cristianismo vai acabar. Vai desaparecer e encolher. (…) Somos mais populares do que Jesus agora; não sei o que vai primeiro – rock’n’roll ou Cristianismo. Jesus estava bem, mas os discípulos dele eram grossos e ordinários. São eles distorcendo isso [o cristianismo] o que estragou tudo para mim. ” JOHN LENNON em entrevista de 1965 à repórter londrina Maureen Cleave, do Evening Standard
Os hippies insurgiam-se, com altas doses de hedonismo pagão e psicodelia mística, contra uma religião ascética e repressora que aparecia então, para multidões de jovens – fossem existencialistas, beatniks, reichianos, budistas… – como caduca e obsoleta.
Timothy Leary, Krishnamurti, Herman Hesse, Osho, Hendrix: eis os novos gurus de um movimento nascente e efervescente. Não se vêem muitos crucifixos decorando o pescoço daqueles que estiveram em Woodstock ou que atravessaram a América em busões coloridos, celebrando a viagem da vida nas estradas do ácido à maneira dos Merry Pranksters de Ken Kesey…
O excelente documentário de Martin Scorcese revela m George Harrison que descobriu muito cedo na vida aquelas supostas maravilhas com que sonha todo garoto que quer ser um rock’n’roll star. Ainda com vinte e poucos anos, George e o resto dos Fab Four já tinham rios de dinheiro, multidões de fãs ensandencidos, carrões luxuosos em mansões aristocráticas, destaque constante na mídia, paparicação sem fim. O que descobrem, no entanto, é uma sensaboria ou um amargor por trás dessa riqueza material e excesso de exposição midiática. Possuir uma montanha de ouro e ter aparecido na capa de mais de 100 revistas não impede ninguém de morrer. E desse mundo nada se leva.
Numa espécie de re-encenação sessentista do drama 2.500 anos mais antigo do príncipe Gautama (exposto, por ex., no magistral romance Sidarta, do Herman Hesse), que abandona seu palácio de conforto e luxo, começando a vagar pelo mundo em busca da Iluminação, aprendendo com ermitões, maltrapilhos e bodhisattvas, George Harrison também descobre a “insubstancialidade” das posses materiais (“all things must pass…“) e procura abrir uma nova senda espiritual para si mesmo – utilizando como aliados, é claro, o Hare Krishna, a meditação, os mantras, a música, o LSD…
George Harrison dá outra resposta a seu “dilema” religioso, à sua necessidade de encontrar uma alternativa ao cristianismo-que-virou-ruína: George volta-se para a Índia, amiga-se com Ravi Shankar (o tocador de cítara e mestre de meditação…), e busca um ensimesmamento numa trip contemplativa. Adere aos mantras do Hare Krishna, à contemplação espantada e risonha das belezas naturais, ao cultivo de seu jardim florido… Hippie-búdico-makulelê em busca de paz-de-espírito.
“Ele era uma pessoa muito SENSUAL”, conta às câmeras de Martin Scorcese sua esposa-por-30-anos, Olivia, explicando na sequência que por “sensualidade” quer dizer: um anseio para que tudo que a língua toque tenha um sabor marcado, um desejo de que as flores tenham aromas e sejam coloridas e vistosas, uma capacidade de “êxtase” diante de experiências aparentemente tão triviais quanto sentir a brisa que nos roça a pele do rosto…
A arte de “viver no mundo material” – Living in the Material World, aliás, foi um título muito feliz que Scorcese encontrou para sua biografia filmada de George… – equivale a uma gangorra entre deleites e frustrações: o êxtase das trips, sejam musicais ou lisérgicas, caceteado pela chatice aporrinhante do Taxman que vem colher impostos…
Se o mantra “all things must pass” é tão ambíguo, tão trágico, é pois afirma que vão passar as aporrinhantes peçonhas da nossa existência, mas vão passar também todas as maravilhas às quais somos amorosamente apegados. Nisto que estou chamando de Johnnisíaco e de Georgesatva, forças que se manifestam a partir de Lennon e Harrisson mas das quais eles não são donos, vai sendo rasgado o véu de Maya da fama e da religião instituída, na afirmação jubilosa mas também angustiada da transitoridade dos conteúdos da existência – e da existência individual ela mesma.
George compôs algumas das mais belas canções dos Beatles (“Here Comes The Sun”, “While My Guitar Gently Weeps”, “Love You To”, “Within You Without You”), inserindo na estética beatle os pendores orientalistas e mântricos que ajudaram a banda transcender tão profundamente o entretenimento de massas e consumarem obras-de-arte tão imorredouras quanto Revolver, Sgt. Peppers, Abbey Road…
Deu à luz àquela que Frank Sinatra considerava uma das canções de amor mais bonitas já compostas: “Something” (dedicada a Pattie Boyd, sua primeira esposa, que depois casaria com Eric Clapton). Foi um dos primeiros artistas do primeiro escalão a engajar-se politicamente, seja nos protestos contra a matança yankee no Vietnã, seja como fez durante a Guerra Índia-Paquistão, em 1971, organizando o histórico show beneficiente Concert For Bangladesh.
Seu All Things Must Pass, que considero não somente um dos melhores álbuns-solo já gravados por um ex-Beatle, mas um dos ápices da música popular britânica em todos os tempos, merece um artigo à parte, que tentasse a tarefa impossível de pôr em palavras tanto de inefável que ali se manifesta.
Para não me alongar demais nesta “trip”, adiciono somente que George Harrison, o mais contemplativo e meditativo dos Beatles, parece-me ser aquele que buscou no Oriente um caminho mais sábio e mais doce em relação às manias ocidentais do individualismo, da ganância, da vaidade, do show-bizz espetaculoso e alienante. De maneira análoga a Gilberto Gil no Brasil, Georgesatva ensinou pra galera: “oriente-se!”
Para muita gente que não via mais graça nem verdade em missa, hóstia e papagueações sobre Pecado Original e Culpa, forneceu um outro modelo de espiritualidade, bem mais próxima do hinduísmo, do budismo e do taoísmo do que dos monoteísmos ocidentais.
John e George se foram, o Johnisíaco e o Georgesatva vivem! A passagem pelo mundo material deles foi decerto luminosa e marcante. Deixaram muitos humanos profundamente saudosos, multidões de encantados com sua música. Em suas jornadas estético-existenciais, buscaram encontrar o êxtase na contemplação das belezas efêmeras de todas estas coisas que necessariamente vão passar. Estas obras, estas mensagens, estas vidas apagadas, são mantidas vivas e acesar por nós que os admiramos, que seguimos dando play em suas artísticas proezas, estas que ainda não passaram – e oxalá não passarão – enquanto houver ouvidos humanos que saibam reconhecer o benefício da abertura às sabedorias musicais.
Publicado em: 10/10/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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