SINOPSE – Consumidores amam seus smartphones, tablets e laptops. Uma miríade de novos dispositivos inunda o mercado prometendo ainda mais comunicação, entretenimento 24h por dia e informação instantânea. Mas essa revolução tem seu lado sombrio. De funestas condições de trabalho na China a famílias intoxicadas em NY e aos corredores ultra-tecnológicos do Vale do Silício, o filme revela como até o menor aparelho eletrônico carrega custos fatais para o meio-ambiente e para nossa saúde.
CRÍTICA – Por Eduardo Carli de Moraes
Em 2020, o “Dilema das Redes” viralizou no Netflix (saiba mais), mas este “Death By Design – O Custo do Vício Digital” é um filme tão importante quanto. Uma das perguntas mais pertinentes levantadas pelo docudrama de Jeff Orlovsky é: “Does Silicon Valley have a conscience?“, uma frase que eu tenderia a traduzir com uma certa ênfase no aspecto ético, algo como “O Vale do Silício é capaz de ativar sua consciência ética?”
Reformulando a pergunta, para evitar os equívocos de compreensão vinculados a esta bizarra atribuição de qualidades humanas a um ente geográfico (um vale na Califórnia…), o que queremos saber é se os manda-chuvas e os funcionários das megacorporações capitalistas de Silicon Valley estão dispostas a assumir responsabilidade por tudo aquilo que estão fazendo às escondidas, enquanto as multidões cheiram o pó dos memes, dos likes e dos coraçõezinhos de Instagram.
“Death By Design” também fala de nosso vício, nossa fissura digital, nossa tecnofilia quase toxicômana, mas frisa sobretudo nossa mania de descartar celulares e notebooks. Gente demais troca de celular com uma frequência obscena, caso tenha o poder aquisitivo, sem se importar com o processo produtivo e o que ele pode conter de atrocidade (sejam as crianças congolesas trabalhando em condições análogas à escravidão para a extração dos minérios, sejam os infoproletários precarizados nas sweatshops que estão por trás do lucro da Big Tech…).
O filme coloca ênfase em algo que transcende a vontade individual: o “descarte” de aparelhos eletrônicos não é a mera irresponsabilidade de Fulano ou Sicrano, as bugigangas hi-tech foram de fato feitas para morrer. Assim como as redes sociais são viciantes por design.
Proponho que a gente comece a substituir o termo “obsolescência programada”, que chega a travar muitas línguas, por algo mais fácil de falar: o bagulho é feito pra quebrar. As megacorporações fabricantes de IPhones e PCs querem que o consumidor dê um “upgrade” no seu aparato a cada dois ou três anos: o produto já sai da fábrica com um design de não-durabilidade (que reluto a chamar de “inteligente”, considerando a extensão da estupidez que o capitalismo dissemina com estes seus “designs”).
O documentário dirigido por Sue Phillips (EUA, 2016) não obteve o mesmo buzz que “O Dilema das Redes”, com certeza por não contar com a caixa de ressonância formidável que é hoje uma distribuição padrão Netflix, mas suspeito que também por ser muito mais inquietante e assustador: os crimes corporativos da Big Tech ainda são temas tabu. E a Netflix não tem interesse em revelar isto a um público mais amplo.
“Death by Design” não pega leve na denúncia da devastação ecológica e dos desoladores impactos na saúde pública que estão por trás dos gadgets eletrônicos que hoje nos deliciam e fissuram. A descartabilidade que é essencial ao design dos gadgets nos condena a uma mega poluição de lixo eletrônico. A produção enlouquecida de sempre novos celus e laptops acarreta uma hecatombe ecológica que assola a China e a Califórnia e todos os outros polos de produção. Sem que a imensa maioria de consumidores saiba de fato as condições concretas dos trabalhadores que estiveram diretamente envolvidos naquilo que nos chega marcado com um aparentemente inocente “Made in China”.
Sem querer menosprezar a pandemia de covid 19 e o milhão de vidas humanas que ela já custou, é preciso perguntar ao cidadão da Aldeia Global se ele sabe quantas vidas a mais são ceifadas anualmente não por ação do novo coronavírus, mas por efeito da sanha ecocida do capitalismo globalizado. A poluição atmosférica vomitada para o ar que respiramos desde o advento do industrialismo, no princípio da era geológica do Antropoceno, mata muito mais em um ano do que a covid19 matará em toda a sua carreira. A contaminação do solo e dos cursos d’água com heavy metals é outra faceta desoladora do atual cis-tema necro-capitalista. O patriarcado capitalista hi-tech tenta nos vender a ideia de que Google e o Facebook são simplesmente indispensáveis, que pensar um mundo transformado a ponto de colocar em comum o que eles querem dominado pela Corporação, é uma loucura insana de utopistas, e não uma necessidade histórica inadiável.
Não há futuro vivível neste planeta se permitirmos que 2 ou 3 ou 4 bilhões de seres humanos mergulhem de cabeça no consumo digital mediado por aparatos descartáveis, feitos-pra-morrer, gadgets que em seu processo produtivo e descartativo promovem um exacerbamento da crise ecológica planetária. Como revelado pela matéria do Le Monde Diplomatique, a indústria digital ainda é movida a carvão, a petróleo, a suor infantil derramado nas minas do Congo e a sangue indígena derramado na Bolívia (para que a Big Tech possa se apossar de um oceano de lítio, com a conivência de uma ditadura-títere dos interesses corporativos).
O golpe de Estado contra Evo Morales não se compreende desvinculado da sanha da Big Tech por acesso irrestrito às riquezas minerais essenciais ao futuro dos lucros estratosféricos de quem fabrica o que hoje nos fissura. Para o necrocapitalismo, não há pudores em tratar a Natureza como um lixão, despejando nela os subprodutos tóxicos da produção industrial do aparato digital.
Slavoj Zizek gosta de fazer aquela piada – na verdade, uma parábola ecológica-escatológica – sobre o sujeito que vai ao banheiro cagar e que depois de apertar a descarga passa a crer que sua merda subitamente sumiu do mundo. O delírio do sujeito consiste numa espécie de crença na privada como um aparato nadificador da merda.
Pergunto-me se não tem muito CEO e alto executivo da Big Tech que sofre do mesmo problema, com o agravante que não se trata de merda humana (uma substância aliás bastante útil para fertilização do solo, caso aprendéssemos como civilização a parar de cagar em massa na água). Uma megacorporação caga substâncias tóxicas, como metais pesados, sobre uma Natureza considerada como “fora”, como alheia, como um “away”…
A tese da “externalidade” é o que faz da Corporação um psicopata. Só que o away do sujeito que caga na privada, assim como o away da empresa que pratica dumping, não é de fato o nada, o não-lugar, pois não inventou-se ainda um aparato de nadificação dos nossos resíduos. De modo que o dumping away da corporação, o “alhures” do empresário, é sempre similar a uma mega-diarréia de um super-alguém que acaba cagando sempre na cabeça do aqui de um outro alguém. A merda não vai ao nada mas ao alhures. Um alhures onde sempre há alguém, mesmo que você jure por Deus que não quis cagar no lar de ninguém.
Pior: o idiota corporativo é o tipo de sujeito que senta-se na privada empresarial para se livrar da sujeira que é o subproduto de sua atividade, crente de que fazer desaparecer de sua vista é também expulsar totalmente do mundo (a expressão “out of sight, out of mind” é aqui precisa e oportuna). O ecologista ou o ativista ambiental aparece ao idiota corporativo apenas na figura de uma ameaça a ser silenciada, e não de alguém que poderia auxiliá-lo a dar um salto de percepção prefigurativo de uma revolucionária mudança de conduta. Não, o ecologista é o “ecochato”, e as corporations tornam o mundo melhor com a profusão de opções de sua high tech fun…
Neste processo de idiotia, de analfabetismo ecológico, talvez haja lguns casos de criminalidade sócio-ambiental deliberada (e depois mascaradas com perfumarias e lobbystas… algo do tipo, grita o CEO: “chamem o departamento de marketing, acabamos de cometer mais um ecocídio!”). O agente corporativo não só caga seu lixo nas cabeças de alguém, humanos e não-humanos; ele suja as águas e os ares, bens comuns aos quais as futuras gerações deveriam ter o direito.
Estamos negando a elas, pessoas do futuro, crianças do porvir, este direito a um mundo vivível. Com a descartabilidade widespread, as leis capitalistas de obscolescência programada, a indústria digital delira sua húbris de onipotência, sem nem suspeitar que a “intrusão de Gaia” (Stengers) nesta História que tratou a Natureza como externalidade já está em pleno curso. E que a Big Tech será também tumultuada e posta em crise pelas catástrofes climáticas de que nosso futuro está grávido.
Em “Um Apartamento em Urano”, Paul Beatriz Preciado escreve: “Pelo menos desde a Revolução Industrial, nossa subespécie, o Homo sapiens sapies, converteu-se na maior força de transformação do ecossistema terrestre. O Antropoceno não se define apenas pelo nosso protagonismo, mas também pela extensão à totalidade do planeta das tecnologias necropolíticas que nossa espécie inventou: as práticas capitalistas e coloniais, as culturas do carvão e do petróleo, a transformação do ecossistema em recurso explorável, que provocaram uma onda de extinção animal e vegetal e o progressivo aquecimento planetário. Para transformar nossa relação com o planeta Terra numa relação de soberania, de dominação e de morte foi preciso iniciar um processo de ruptura, de externalização, de desafeição. Erotizar nossa relação com o poder e deserotizar nossa relação com o planeta. Convencermo-nos de que estávamos fora, de que éramos outro.” (PRECIADO, p. 116)
Meu temor é que este delírio antropocêntrico do cis-tema necrocapitalista do feito-pra-morrer dure ainda por tempo demais; e que a crença de estarmos fora da Natureza, pois acima dela, possa se converter na húbris suicidária que arrasta o Homo sapiens no rumo da extinção. Nossa agonia pode durar séculos. Podemos demorar um milênio para cairmos dos mais de 7 bilhões para uma população de 10% disso… Poderemos seguir sendo tantos se não acordarmos para o delírio perigoso da crença numa economia do infinito que está imbricada num planeta finito?
Se a Big Tech não for movida por uma ética biocêntrica e por uma responsabilidade pelo futuro da vida neste planeta, estará sendo parte não da solução mas do problema. E nós, usuários, estaremos sendo cúmplices da hecatombe ao invés de agentes da transformação biocêntrica, animalista, pós-antropocêntrica, de que urgentemente necessitamos (nós, os vivos, e também e sobretudo os não-humanos, que são a maioria e constituem o resultado supremo da Evolução… não nós, mas todos eles, fauna e flora e águas e ares reunidos.)
Como consumidores do que a Big Tech fabrica, necessitamos também com urgência acordar para tudo que está implicado em nosso consumo (às vezes descerebrado) de celulares, PCs, tablets, ipods, feeds, mídias sociais, videogrames, entretenimentos Candy Crúshicos, dentre outras coisas “tão Black Mirror”.
Pois a História pregressa sugere, ao menos àqueles atentos à Benjaminiana perspectiva dos vencidos, que somente uma pressão de baixo pode trazer abaixo o castelo sombrio dos CEOs ecocidas mancomunados com necrocapitalistas para sacrificar a Natureza e a Vida no altar sinistro dos lucros sem fim.
Digo ainda, para finalizar: ainda que muitos queiram hoje decretar a morte de Marx, o marxismo prossegue quintessencial e indispensável enquanto método de compreensão do sistema material de produção de mercadorias.
Estaríamos de fato condenados à derrota caso não fôssemos capazes de compreender o que está por trás de nossa adicção digital, ou seja, um sistema produtivo capitalista com linhas-de-montagem repletas de robôs em que os infoproletários são condenados a um trampo de Sísifo e eventualmente podem ser reduzidos a pedaços por uma explosão ou ceifados precocemente por um câncer corporativamente induzido.
Os que decretam a morte de Marx são na verdade a nova encarnação dos que cagam de medo do marxismo, dos que não dormem direito à noite com a assombração do comunismo. O comunismo que em suas próximas encarnações virá também ultra-tecnizado, mas recolocando no commons o que o necroliberalismo corporativo cercou.
Não conheço exemplo melhor de uma boa utilização das ferramentas do materialismo histórico-dialético à conjuntura do Big Tech do que o Dossiê do Instituto Tricontinental – “o IPhone e a taxa de exploração”: o documento, disponível gratuitamente em PDF, “analisa o processo de produção contemporâneo do iPhone da Apple. Vamos de uma visão da produção do aparelho ao funcionamento interno do lucro e da exploração. Nos interessamos não apenas pela Apple e pelo iPhone, mas particularmente na análise marxista da taxa de exploração em jogo na produção de aparelhos tão sofisticados. É necessário, acreditamos, aprender a calcular a taxa de exploração para que possamos saber precisamente quanto os trabalhadores e trabalhadoras contribuem com a geração de riqueza social total a cada ano.”
Publicado em: 26/09/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Discussão extremamente importante, que temos que fazer chegar à população como um todo, obrigatória leitura para uma alfabetização ecológica.
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José Maria G, Ferraz
Comentou em 29/11/20