Em meio à pandemia da Covid 19, no último dia 21 de junho, celebrou-se nos cinco continentes – mas especialmente na Índia – o Dia Internacional do Yoga. Dada sua enorme população e desigualdade, a Índia, berço dessa prática milenar, pode superar a Brasil e Estados Unidos em seis semanas (1) e se tornar o epicentro definitivo da pandemia do novo coronavírus. Segundo fontes médicas indianas o país do yoga pode ter, hoje, mais de oito milhões de pessoas infectadas pelo vírus (2), e chegar a 200 milhões, até setembro.
Os dados oficiais, entretanto, reportam, até aqui, apenas 265 mil casos ativos. Para propagandear um isolamento de fachada, tão intenso quanto curto e seletivo, as autoridades indianas adequaram a comemoração às medidas sanitárias e às atividades virtuais. Criada por iniciativa do primeiro ministro indiano de extrema direita Narendra Modi (partido hindu-nacionalista Bharatiya Janata), junto à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a data é reconhecida internacionalmente desde 2014 (3), e se generalizou como um marco festivo entre os simpatizantes e adeptos da prática em todo o mundo.
Para viabilizar o evento durante a pandemia, desta vez, o Dia Internacional do Yoga teve como tema “Yoga em casa e com a família” (4). Portanto, geralmente marcada por práticas coletivas ao ar livre, pôde ser celebrada, em mais de cem países, apenas de maneira remota. Ao que tudo indica, uma celebração pacífica e inatacável, organizada por mestres tradicionais e autoridades públicas bem-intencionadas. Homens de bem, caridosos, inspirados por uma prática de autocuidado milenar, cujos fundamentos estariam fora de qualquer suspeita.
Porém, se o respeito às restrições sanitárias durante o evento sinaliza que o governo indiano leva em consideração as diretrizes científicas e humanitárias de enfrentamento à COVID, o contexto indiano e os números da pandemia provam o contrário. No segundo país mais populoso do planeta, com 1,3 bilhão de habitantes, o número de infecções aumenta assustadoramente e as mortes daí decorrentes se avolumam em dezenas de milhares (5), com um nível de subnotificação de óbitos que pode chegar a 20 vezes mais que as 20 mil registradas em números oficiais. Causado por um nível de testagem muito baixa e a ausência de medidas básicas como o rastreamento epidemiológico (6), o quadro indiano se aproxima muito do salve-se quem puder imposto à população brasileira pelas medidas confusionistas e assassinas de Jair Bolsonaro.
“Quem pratica yoga tem menos chance de ser infectado com o coronavírus”
Narendra Modi – líder do poder executivo indiano – em suas comunicações oficiais, mostra um distanciamento palaciano que beira à indiferença. Note-se que ao promover o conceito de atmanirbhar (autossuficiência) (7), em um contexto de crise pública de saúde, o primeiro ministro indiano empurra enormes contingentes populacionais às ruas, em realidade, pelo auto sustento, e à própria sorte, conclamando que cada indivíduo enfrente o vírus como possa. Conceito muito útil à idealização em tempos de normalidade e fluxo regular, auto suficiência e sua apologia se tornam apenas significantes do cinismo e do descaso público em meio ao contágio viral generalizado.
Os argumentos, mais que os conceitos, revelam o que existe para além do véu de maya do nacionalismo conservador hindú. Modi e seus correligionários apelam às práticas ascéticas e meditativas, para estetizar a política das elites hindus em sua banalização e apagamento do luto pelos mortos por COVID na Índia. Amparadas pela ala dogmática do bramanismo sectário (8) – anti povo, supremacista e patriarcal, legitimador das castas hereditárias e do apartheid – estas elites racistas, e a classe política que a representa, buscam salvaguardar interesses junto ao capital monopolista ocidental. E expandir, assim, o domínio de classe sobre imensos contingentes de trabalhadores precarizados, que concorrem entre si, aos milhares, por uma única vaga de emprego.
Disfarçada de tradição, a opressão sobre os Shudras (intocáveis) e mulçumanos no país é, na prática, a demolição do pacto constitucional indiano (9), que completou 70 anos em 2020. Promovida e reeditada pela manutenção dos interesses neocoloniais, a segregação em castas e etnias precariza as relações de trabalho na Índia em nome da atratividade de investimento produtivo, o que facilitaria a inserção do país na divisão do trabalho na ordem imperialista internacional. Desta forma, essa estranha forma de nacionalismo entreguista – supremacista apenas em sua política doméstica – impõe cláusulas confessionais à cidadania em função do interesse de criar uma subcidadania que permita reduzir os custos do trabalho em todos os níveis, e assim, manter o país dependente do bloco ocidental.
Este mesmo nacionalismo não se constrange ao emular o ocidentalismo atlanticista e se encaixar perfeitamente à ideologia neoliberal, isolacionista, belicosa e descolada da realidade social subjacente – negacionista por sua incontornável “fé” individualista. Aspectos imperativos da ideologia hegemônica dominante, mediados por uma suposta interpretação identitária tradicionalista, que legitimaria o abandono e a negação da cidadania política e assistência médica à centenas de milhões de pessoas. (10).
Quanto ao Sistema Público de Saúde, a Índia, além do yoga, da ayurveda e outras práticas tradicionais integradas, tem também a privatização como solução mágica de auto suficiência para as unidades de atendimento, gradativamente estranguladas pelo avanço dos monopólios médicos sobre o patrimônio público indiano. (11) Além de curas tradicionais em seu rol de serviços de saúde, tantas coisas em comum entre Brasil e Índia!
Para além de sua aura humanista, o interesse de Modi pelo Yoga é uma operação de propaganda política doméstica e de geopolítica. A princípio inatacável, do ponto de vista dos inquestionáveis benefícios decorrentes de sua prática, ao ser instrumentalizado pela política xenófoba de Modi, o yoga está sendo usado para legitimar o genocídio e o apartheid islâmico, promovido pelo nacionalismo hindu.
Uma guerra religiosa permanente, inspirada pela islamofobia ocidental, contra as populações muçulmanas, cristalizada e institucionalizada na Emenda à Lei de Cidadania (CAA) aprovada em novembro de 2019 (12). A repressão aos protestos em oposição à tal emenda já resultaram em 13 mortes pelas mãos do estado, que, naquele momento, proibiu reuniões públicas com mais de quatro pessoas e suspendeu serviços de telefonia e internet na província de Assan.
Sabedorias à parte, o protocolo privatista, de entregar aparelhos públicos às empresas apenas para que se enriqueçam, repete o mesmo processo de desinvestimento e precarização da saúde pública que ocorre por aqui. Assim como no Brasil, na última década, o financiamento do sistema público de saúde indiano foi drenado em favor do sistema privado (13), que hoje, em meio a mais grave crise sanitária do século, se nega a receber pacientes incapazes de pagar pelos serviços de alto custo.
“A partir da época dos Upanishads, a Índia nega o mundo tal como é e desvaloriza a vida tal como esta se revela ao sábio.” Mircea Eliade
“A maquiagem nas estatísticas pode garantir popularidade no curto prazo, mas trará enorme prejuízo humano.” Ramanan Laxminarayan
“A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização.” Walter Benjamin
REFERÊNCIAS:
1) https://veja.abril.com.br/mundo/india-o-novo-epicentro-do-coronavirus/
3) https://undocs.org/A/RES/69/131
4) https://www.un.org/en/observances/yoga-day
5) https://www.mygov.in/covid-19
10) https://www.thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-26-2020-modi-e-bolsonaro/
Publicado em: 13/07/20
De autoria: Renato Costa
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