Em uma escola ruandesa bem próxima à nascente do Rio Nilo, exclusiva para mulheres, a futura elite feminina de Ruanda está sendo formada (ou deveríamos dizer de-formada?) para aderir sem crítica ao cristianismo, idolatrar com reverência professores franceses, submeter-se em obediência plena a padres e madres-superioras. Vale dizer que todas as figuras de autoridade que exige-se das meninas que obedeçam são eurocêntricas. É a cultura dos caras-pálidas que busca fazer seu domínio imperial usando a educação como meio – grande tema que atravessa não só este belíssimo romance de Scholastique Mukasonga, Nossa Senhora de Nilo, mas também o documentário crucial Schooling The World: The White Man’s Last Burden.
O que primeiro me atraiu para este livro foi o desejo de conhecer melhor a educação africana, tal qual era praticada no período imediatamente anterior ao genocídio de Ruanda em 1994. Este evento traumático – ocorrido quando eu tinha 10 anos de vida – depois seria por mim reconhecido como o primeiro genocídio de que fui contemporâneo e que pôde impactar minha consciência a ponto de atormentá-la.
Ao começar a sorver as páginas fortes de Mukasonga, eu queria entender também como a Pedagogia do Oprimido proposta por Paulo Freire pôde funcionar concretamente (em Cabo Verde ou Guiné-Bissau, onde o “Paulo Freireanismo” de fato se tornou práxis) e que desafios os contextos africanos colocam a uma educação autenticamente libertadora, descolonizadora, que consagre aos povos seu direito sagrado à auto-determinação e à liberdade. Em Nossa Senhora do Nilo, temos não a utopia, mas o anti-exemplo; uma escola maldita, que nenhum pedagogo-do-oprimido pode observar, em suas entranhas, sem soltar alguns gritos de horror.
O exato oposto de uma práxis pedagógica decolonial está em curso nesta escola que parece ter por dogma supremo: honrar a Deus e à família real da Bélgica. Papai-do-Céu deve ser idolatrado lá em cima, assim como o Rei em seu trono cá embaixo, e quem fugir dessa regra vai apanhar no sarrafo. Na verdade, a escola que Mukasonga nos descreve é um instituto neocolonialista, que institui um sistema de cotas étnicas para que as alunas acolhidas sejam 90% hutus e 10% tutsis. A editora Nós, que publicou o romance no Brasil, fez bem em destacar a importância, para a obra, da questão minoria vs maioria. A cota étnica de 10% para tutsis é sintoma de um apartheid, similar aos impedimentos que havia na Rússia tzarista quanto aos estudantes judeus – o próprio Vygotsky, enquanto judeu vítima do anti-semitismo dos tzares, sofreu com os impedimentos e obstáculos que o preconceito interpunha no caminho de quem visava a instruir-se a fundo e ensinar o que aprendeu.
No livro de Mukasonga, repleto de ironias expostas com muita verve, a personagem Gloriosa é emblemática dos efeitos nefastos de uma educação que ponha lenha na fogueira da segregação racial: acreditando que o nariz da estátua da Nossa Senhora do Nilo parece demais com um “nariz tutsi”, ela empreende uma tentativa desastrada de reformá-la. A estátua deve ser reformada para que o nariz tutsi vire um nariz mais hutu. Neste processo, Gloriosa não só manifesta seu preconceito, o horror que nela foi inculcado por tudo que seja como “as baratas” dos tutsis, ela age com base na cegueira do ódio polvilhando o caminho com muitas mentiras nefastas.
É a temática política da mentira com graves consequências que o livro aborda. “O Nariz da Virgem”, por isso, parece-me um dos momentos mais sublimes da literatura contemporânea (p. 209): Gloriosa acaba por destruir a cabeça inteira da Virgem Negra, aquela estátua mesma que ela queria reformar, impondo-lhe seus padrões eugênicos. Ela pretendia reformar a estátua através de uma plástica na pedra para que o feio nariz tutsi pudesse resplandecer, reformado, como uma maravilhoso nariz hutu!
Quando o projeto reformador fracassa com a catástrofe – a adolescente Gloriosa decapitando a estátua da Santa Padroeira do colégio! -, quando a Nossa Senhora do Nilo pétrea acaba sem cabeça, isto é considerado um sacrilégio gravíssimo pelas autoridades. Estas desconhecem que uma aluna da própria escola é a culpada pela estátua decapitada. Gloriosa pede a palavra para lançar a culpa sobre “comunistas e ateus”, “guiados pelo diabo”, que “como na Rússia, querem queimar igrejas, matar os padres e os religiosos, perseguir os cristãos” (p. 230). Gloriosa, ao invés de assumir a responsabilidade pelo se ato decapitador, aceitando as punições que viessem, preferem levantar o dedo acusador para quem ela sabe que é inocente de qualquer profanação da estátua da santa.
A literatura de Mukasonga alça vôo rumo ao céu aberto de seus melhores efeitos quando Gloriosa, a mentirosa, a caluniadora, aquela que acusa os inocentes do que “delito” que ela mesma cometeu, vê na catástrofe da estátua decapitada uma oportunidade de propor à comunidade uma nova estátua, “com o rosto do povo majoritário, uma Virgem hutu…”. Alguns dias antes, justificando seus atos para sua cúmplice, Gloriosa havia dito:
– Não são mentiras. É só política. (p. 224)
Estes episódios servem como prolegômenos do genocídio perpetrado contra os tutsis em um “processo de purificação” (p. 237) que ceifou mais de 800.000 vidas humanas. Deste horror, em 1994, fomos contemporâneos, mas poucos nos debruçamos sobre aquilo para de fato compreendê-lo. A literatura nos oferta agora excelentes chaves através dos romances de Mukasonga que a Nós trouxe a público. Como busquei expressar nas palavras que acabas de ler, caro leitor, vejo na arte esta “chave” para a compreensão de uma alteridade que precisamos conhecer para ampliar os horizontes estreitos que conduzem a fascismos e racismos – no livro Nossa Senhora do Nilo, a mentira mata – a pequena mentira de Gloriosa mata, mas mata mais a grande mentira, a mentira “cultural”, a mentira alçada a Zeitgeist, a pia fraude que transforma a Terra num banho de sangue. No tempo da proliferação das fake news e das eleições movidas a calúnias odientas (pagas com caixa 2), é importante lembrar que mentiras são mortíferas, que dizê-las é um vício nefasto, e que o líder político cujo único talento consiste em mentir torna-se, apesar de sua presunção de ser o triunfante e o bem-sucedido dominador, torna-se o epicentro de um morticínio: quem vomita mentiras semeia a morte. Nós, que celebramos a vida, estaremos sempre ao lado dos verazes, do que tem a coragem da verdade, dos que em todas as Áfricas e Ásias e Américas Latinas levantam em arte seu protesto sublimado, com a coragem de cantar e contar até mesmo a catástrofe mais funda que já, enquanto povo, viveram.
Em Mukasonga, o genocídio é exposto em suas raízes e em seus frutos. E obra é um dispositivo de compreensão sobre como mentiras consolidadas em ideologias acabando movendo a práxis – alienada, violenta, agressiva, destrutiva, até mesmo niilista – de massas quando estas ainda estão cativas de uma educação que oprime ao invés de libertar, que estreita o horizonte ao invés de o alargar. Precisamos, com um urgência, de uma educação libertadora que entenda as raízes do horror produzido pelo Patriarcado, pela Supremacia Branca, pelo Capitalismo Imperial, e que revide com a resistência transculturalizada em obras que gritam belamente seu testemunho histórico, seu brado de rebeldia, sua adesão inabalável à coragem da verdade diante da vida e da morte, em carne viva diante dos sentidos tumultuados da artista!
Um belo livro, que recomendo vivamente, na expectativa de em breve poder mergulhar ainda mais na obra através de sua adaptação ao cinema:
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Publicado em: 01/06/20
De autoria: casadevidro247
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