Este é talvez o livro mais triunfalista e exultante de Nietzsche, mais cheio de uma saúde anunciada com trombetas e rodopios de dança! É talvez o mais solar, o mais primaveril, o mais “leve” dos livros nietzschianos. “Escrito na língua de um vento de degelo”, A Gaia Ciência representa, segundo o próprio Nietzsche, uma “vitória sobre o inverno”. Não se trata somente do inverno da doença, mas de outros invernos “da alma”: o pessimismo, o romantismo, o niilismo… “Tudo superado!” – eis o grito de júbilo que sai destas páginas!
Nietzsche, em A Gaia Ciência, canta como um pássaro que se ergue de uma queda, sentindo o retorno das forças às asas, celebrando uma felicidade alcançada depois de uma longa provação: “nossa beatitude se assemelha à do náufrago que alcança a costa e que põe seus pés na velha terra firme – espantado de não senti-la vacilar” (#46). Depois de longas peregrinações solitárias, em que o único diálogo era entre o viajante e sua sombra, entre o poeta-pensador e a colméia tumultuada de seus pensamentos e vivências, Nietzsche enfim sente-se tão transbordante de vida que quer enunciar ao mundo sua felicidade e descrever os contornos de sua “gaia ciência”. É uma obra que “transborda de gratidão, como se a coisa mais inesperada se tivesse realizado: é a gratidão de um convalescente – pois essa coisa mais inesperada foi a cura.”
Ora, quem conhece como foi a vida de Nietzsche sabe que esta criatura amaldiçoada pela impiedade da fortuna viveu adoentada. Atormentado por dores de cabeça pavorosas, parcialmente cego, isolado socialmente e “nômade” por causa da enfermidade (viveu na Suíça, na Itália, ao sabor de suas melhoras e recaídas…), Nietzsche foi um homem que pensou, escreveu, criou… em meio aos turbilhões infindos do sofrer. Após o colapso nervoso em Turim, em 1889, caiu na demência e sua última década de vida foi praticamente a de um “vegetal”: parou de produzir e ficou de cama, aos cuidados da irmã, até a morte em 1900, 11 anos depois de sua última obra. Nós, que já conhecemos o “fim da história” desta vida, talvez achemos um tanto estranho que Nietzsche se gabe de sua saúde e cante as “saturnálias” joviais que enchem estas páginas de A Gaia Ciência, saturadas da “esperança de sarar” e a “embriaguez da cura”… (p. 15)
É que os homens, quando escrevem, por mais proféticos que tentem ser, por mais que ponham sua fantasia a serviço da imaginação de um futuro plausível, nunca sabem realmente que surpresas e desgostos o futuro trará. Todos nós podemos ter certeza de que o futuro, seja como vier, será surpreendente e surpassará todas as nossas expectativas. Nietzsche, em A Gaia Ciência, dá a impressão de realmente ter atingido uma sanidade que derrama-se pelas páginas que escreve. É que não sabe que, no futuro, a terra vai voltar a vacilar, que certezas adquiridas nunca são tão fixas que ventos não possam vir desenraizar e que a saúde não é algo que se possa possuir indefinidamente…
“Este livro inteiro nada mais é que uma festa depois das privações e das fraquezas, é o júbilo das forças renascentes, a nova fé no amanhã e no depois de amanhã” – celebra Nietzsche. E estas “privações” e “fraquezas” a que Nietzsche se refere são abissais “fundos-de-poço” que ele pensa ter superado e que pretende ensinar-nos como superarmos: “deserto de esgotamento, de ausência de fé, de congelamento em plena juventude, essa senilidade que se introduziu onde não devia, essa tirania da dor, esse isolamento radical…” (16).
Contra todos estes males o espírito nietzschiano se insurge! Sua obra manifesta um intenso desejo de sarar, de superar sua doença, de vencer a força que puxa para baixo, de não ceder à decadência, de não se tornar impotente e ressentido… Em A Gaia Ciência, podemos vislumbrar algumas das espantosas paisagens emocionais e intelectuais deste homem que viveu boa parte da vida doente, mas cuja vontade e intelecto estavam intensamente votados à tarefa de conquista da “grande saúde”.
Por ter muito aprendido com o sofrimento, por ter dado a luz a tantas de suas ideias em meio a dores de parto excruciantes, Nietzsche não poderia ser um pensador para os “acomodados”, os fanáticos por “conforto”, aqueles que desejam manter a dor à distância de qualquer jeito. Segundo Nietzsche, a dor ensina-nos lições fundamentais que não poderíamos aprender se dela não cessássemos de fugir. A sabedoria de Nietzsche nasce de uma longa convivência – fecunda e frutífera! – com o sofrimento da doença, com a depressividade do pensamento, com tudo o que puxa para baixo e quer nos prostrar e nos reduzir à impotência dos fracos. Abismos de dor e de doença serviram para que Nietzsche se erguesse até os mil achados poéticos e críticas certeiras e passos-de-dança que constitui A Gaia Ciência!
“Retorna-se renascido de semelhantes abismos, de semelhantes doenças graves… retorna-se como se se tivesse trocado de pele… com um gosto mais sutil para a alegria, com uma língua mais sensível para todas as coisas boas, com o espírito mais alegre, com uma segunda inocência, mais perigosa, na alegria… retorna-se mais criança e, ao mesmo tempo, cem vezes mais refinado do que nunca se havia sido antes” (21).
Surge daí uma “visão de mundo” extremamente afirmadora, no sentido de que consiste no esforço consciente da vontade em dizer-sim à realidade, a tudo que se passa, a tudo que o tempo possa trazer, em aceitação jubilosa do existir, incluindo aí os sofrimentos, partes integrantes necessárias do viver.
Nietzsche, no fundo, diz-nos algo de bem simples: não saia correndo do sofrimento como se ele fosse o mal encarnado, a coisa mais horrenda deste mundo, o mais demoníaco satanás . O sofrimento pode ensinar. Pode “aprofundar” nossa percepção. Pode mudar nossa “tábua de valores”. Podemos viver certas experiências sofridas que serão absolutamente cruciais para que nos tornemos capazes de alguma genuína felicidade! Em outras palavras: quem acha que vai ser feliz sem antes ter sofrido um bom bocado… este se ilude, se auto-inebria com uma quimera romântica, se engana no sonho de uma “felicidade perfeita” que só existe nos contos-de-fada.
“E se o prazer e o desprazer estivessem de tal modo solidários um com o outro que aquele que quer saborear ao máximo de um deve saborear ao máximo do outro – que aquele que quer chegar até a “felicidade do céu” deve também se preparar para ser “triste até a morte”? (#12)
O que Nietzsche procura realizar é uma completa “transmutação” no valor conferido ao sofrimento. Nietzsche quer que paremos de considerar o sofrimento como o inimigo e que comecemos a acolhê-lo com mais hospitalidade, como se faz quando vai se receber a visita de um… professor. O sofrimento é maldito pela maioria dos homens, Nietzsche bem o sabe: “se odeia agora o sofrimento mais do que antigamente… dele se diz mais mal do que nunca… e se vai mesmo ao ponto de já nem sequer se poder suportar a ideia dele… disso se faz uma questão de consciência e uma censura à existência em sua totalidade…” (p. 82)
Esta experiência individual de ser “erguido” pelo sofrimento, de aprender com as dores, de sair com “sabedoria” suplementar a cada ferida e cada cicatrização, Nietzsche a generaliza e a aplica à própria “vida das civilizações”, por assim dizer. Salta da psicologia para a sociologia, da experiência poética subjetiva à tentativa de meditar sobre a história da humanidade, ou mesmo sobre a história natural, e alega:
“Examinem a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos, e perguntem se uma árvore que deve elevar-se altivamente nos ares pode viver sem o mau tempo e as tempestades; […] veneno que mata o mais fraco é um fortificante para o forte – por isso ele não o chama veneno.” (#60)
O “juízo dos homens fatigados”, conta-nos a pequena poesia do prelúdio #46, é a seguinte: “Todos os esgotados amaldiçoam o sol: para eles o valor das árvores… é a sombra!” (#46). Nietzsche, portanto, enxerga que estas “maldições”, que lançam os exaustos, contra os sóis da existência, é uma doença. E uma doença que diagnostica como comum aos cristãos, aos budistas, aos schopenhauerianos, aos românticos, a Wagner e Sócrates… O amaldiçoamento da existência é aquilo que Nietzsche quer criticar e superar: quer bradar um grande “SIM!” depois de ter, na história do pensamento, trombado com excessivos, taciturnos e rabugentos “NÃOS”. A todos que queiram sustentar que “esta vida não presta!” e que “seria melhor não ter nascido!”, slogans prediletos dos niilistas de todos os tempos, Nietzsche confronta dizendo que não, o sofrimento não é uma razão para caluniar a existência!
Nietzsche, se queixou-se tão recorrentes vezes de sentir-se “extemporâneo”, estrangeiro em sua própria época, incompreendido por seus contemporâneos, talvez seja pois não conseguia identificar-se com estes “homens de alma cotidiana que à noite, em vez de se parecerem como vencedores no carro do triunfo, têm o ar de mulas cansadas, demasiado fustigadas pelo chicote da vida…” (#111).
Há em Nietzsche um pouco daquilo que nós brasileiros conhecemos por “não reclame de barriga cheia!” Um filosófo que sofreu pra caralho (só um palavrão cabe para sugerir quantias tão colossais de sofrimento!) nos diz que larguemos mão de ficar choramingando e amaldiçoando a existência por ninharias, por dorzinhas, por picadinhas de insetos…
A Gaia Ciência pretende ensinar o riso aos carrancudos. Pois “para rir como conviria os melhores não tiveram até agora bastante autenticidade, os mais dotados bastante gênio! Talvez ainda haja um futuro para o riso!” (#01) Nietzsche sabe muito bem o quanto os “professores de moral”, ou seja, pregadores, padres e pastores, são sérios e pomposos quando “se impõe como professores do objetivo da vida” (#42).
Falam com muita empáfia e solenidade suas doutrinas sobre o “fim último da existência humana”, tentando convencer-nos, por exemplo, que o “sentido” está no sacrifício à uma divindade transcendente, numa vida humilde e retraída, voltada ao extermínio das propensões naturais do organismo, toda voltada ao ódio contra o corpo, a sexualidade e as alegrias terrestres… O “sentido da vida” não é gozar na terra, mas conquistar os céus! Assim dizem estes risíveis papagaios de altar! Riamos na cara deles!
Ora, segundo Nietzsche os “maiores progressos da humanidade” não foram os papagaios moralistas que promoveram! Mas sim aqueles “espíritos que reacenderam sem cessar as paixões que adormeciam – toda sociedade organizada adormece as paixões – despertaram sem cessar o gosto pelo novo, pelo ousado, por aquilo que ainda não foi tentado…” (#4). Ou seja: são os espíritos livres que contribuem para a “derrubada dos marcos fronteiriços”, para uma expansão do horizonte de possibilidades humanas.
Esta “abertura” nova produz temor naqueles que são fanáticos por reduzir tudo ao estado estável e duradouro de conhecido. A humanidade gostaria de adormecer no conhecido. Gostaria de crer que “sabe tudo”. Religiões são tentativas de “explicar tudo”, de tentar convencer os homens a terem fé na lorota de que há explicação para tudo, e que todas as explicações… se encontram na Bíblia, no Corão, na Torá!
Nietzsche nos convida a ir além desta estreiteza de horizonte, desta fé cega na ideia de que um Livro possui todas as respostas e todas as verdades. Quer nos fazer refletir e pensar num “âmbito” bem diferente daquele a que estamos acostumados: quer que pensemos “além do Bem e do Mal”, ou seja, sem maniqueísmo, sem “rachar” o mundo em bandidos e mocinhos, pondo sob suspeita o dogma de que os homens ou vão para o Céu ou queimam como frango-assados no Inferno…
Risível superstição! Que concebe um deus capaz de ser um juiz tão míope e tão injusto que seria como um professor que, diante do “alunado” humano, isto é, diante da Humanidade inteira, distribuiria apenas duas notas: zero e dez. Quão injusto seria este deus, se existisse, que só conheceria os extremos, que seria cego às flutuações, às gradações, aos degradês! Ou você é um santo, ou é um capeta! Ou presta, ou não presta. É 8 ou 80. Com este Poderoso Chefão não tem conversinha: ou você é a perfeição mais perfeita e imaculada, ou você é um calhorda vicioso e funesto que merece arder em chamas eternas e sofrimentos infinitos. Que delírio! Na História, tais delírios, infelizmente, não se restringem a permanecer fantasmas dentro de cérebros humanos, mas servem para motivar ações e influenciar a História.
Nietzsche pode até se referir a si mesmo como um “imoralista”, vez ou outra, mas isto não significa que ele não tenha suas preferências morais, ou seja, um certo ideal de “nobreza” ou de “liberdade de espírito” que ele procura… sugerir, definir os contornos, evocar poeticamente. O “espírito livre” é, certamente, alguém que se libertou das cegueiras e superstições da fé religiosa e que agora está entregue à aventura heróica de buscar, sem Deus, a gaia ciência, a grande saúde, a sabedoria terrena. “O que faz a nobreza de um ser é que a paixão que se apodera dele é uma paixão peculiar, sem que ele o saiba; é o emprego de uma medida singular e quase uma loucura; é a adivinhação de valores para os quais ainda não foi inventada balança; é o sacrifício em altares dedicados a deuses desconhecidos; é a coragem sem o desejo das honras; é um contentamento de si que transborda e que prodigaliza sua abundância aos homens e às coisas…” (#55)
Nietzsche, pois, deseja uma ciência que seja gaia, que alegre, que fortaleça, que dê mais saúde, mais luz, mais potência. Sabe que o sofrimento que às vezes nos atropela, as dores que a vida necessariamente nos reserva, todos os “golpes do destino” e todas as facadas das desventuras, podem contribuir para os aprendizados e as experiências que farão este savoir-vivre, esta sabedoria dionisíaca e afirmativa. Ao fim do Livro I, é como se Nietzsche ousasse abrir um sorriso de orelha a orelha, feliz em seu papel de convalescente e transbordante de saúde: “tive a ousadia de rabiscar no muro minha felicidade!”
Palavras extraordinárias, quando saídas da boca de um… filósofo! Nietzsche bem o sabe: é esta, a dos filósofos, uma “raça” enfermiça. Com tendências a alienar-se em “loucuras metafísicas”, em esquecer dos pés grudados-ao-chão para “viajar” por Cucolândia das Nuvens. É que a perspectiva de Nietzsche em A Gaia Ciência é mais a da exaltação da vida do que do elogio do conhecimento; é o ponto-de-vista de um filósofo que superou a filosofia e que permite-se ser também poeta, dançarino, palhaço, profeta…
Nietzsche foi um dos primeiros que ousou erguer um brado contra os “homens racionais” que estão “encouraçados contra a paixão” (#57): a filosofia nietzschiana poderia ser vista como uma vasta campanha de reabilitação da paixão e tentativa de injetar vida nova às veias da filosofia, retirando-a das mãos dos zumbis e dos pregadores. Paixão deixa de ser vista como “pecado” – não é mais coisa suja, imoral e feia. Não é coisa que deva ser reprimida, podada, exterminada e culpabilizada de modo tão rígido e fanático quanto querem muitos homens-de-fé. Talvez seja… energia vital, utilizável de preferência em mil jorros vulcânicos de criatividade artística, de infindos tipos de passos de dança, de rimas e melodias, de piadas e sorrisos, de uivos e espantos…
Publicado em: 29/03/12
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Oh, sábio Kótchki, onde estão as estrelas goianienses? Intimidaram-se com as potestades da ignorância e da obscuridade?!
“Twinkle, twinkle, little star!
How I wonder what you are!”
Um “silly jingle” que tá lá no Dickens… 🙂
Comecei a ler as obras de F. Nietzsche recentemente e a cada dia fico mais empolgado com ele, é simplesmente sensacional.
Legal, Roberto! Nietzsche é realmente empolgante e fascinante… mergulhe fundo! E espero que os textos nietzschianos desta casinha de vidro te auxiliem nesse labirinto… Volte sempre!
Nooossaaa…me apaixonei…ouví citações sobre essa obra hj e procurei informações e me identifiquei muito com o texto,com essa obra. Vou comprar o livro o mais rápido possível…quero ler mais…ler tudo…ler e reler sempre!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Gisele Toassa
Comentou em 29/03/12